sábado, 19 de outubro de 2019


19 DE OUTUBRO DE 2019
OPINIÃO DA RBS

AMEAÇA À GOVERNABILIDADE

A proporção tomada pela conflagração interna do PSL supera em muito o que poderia ser apenas uma crise partidária. A contenda aberta na legenda que abriga o presidente da República, recheada de acusações de traições, vazamentos e xingamentos, é extremamente grave por ser uma ameaça à governabilidade do país. Jair Bolsonaro chegou ao Planalto descartando as alianças típicas do presidencialismo de coalizão, que convencionou chamar de velha política, mas em nenhum momento conseguiu colocar uma alternativa viável em seu lugar e montar uma base sólida para aprovar matérias de interesse do governo. Aos 10 meses de mandato, parece que nem sequer pode contar com o PSL por inteiro, devido à implosão da legenda.

A barafunda eleva a instabilidade política em Brasília e torna ainda mais incerta a capacidade da gestão Bolsonaro de fazer passar, no Congresso Nacional, as reformas estruturais que o Brasil clama para ajustar as contas e se modernizar. Afinal, uma das marcas do atual governo é fabricar as próprias crises. O projeto da Previdência, por ilustração, andou mais pela compreensão dos parlamentares da sua importância do que por mérito palaciano. E, até agora, não teve a votação finalizada no Senado. Com a pancadaria solta, aumentam as interrogações sobre o destino das reformas tributária e administrativa. Se a interlocução com o Congresso já era amadora e errática antes do escancaramento do racha, fica difícil imaginar que a agenda legislativa governamental flua com mais naturalidade daqui para a frente. Um péssimo augúrio para o Brasil.

A erupção no PSL, dividido entre os bolsonaristas e os seguidores do presidente do partido, Luciano Bivar, está longe de ser uma surpresa. Assim como inflou artificialmente na onda conservadora que varreu o país nas eleições do ano passado, o partido murcha rapidamente em meio à beligerância intestina de seus membros, a denúncias envolvendo candidaturas de laranjas e às confusões do clã presidencial.

Há ainda o importante elemento desagregador e motivo de disputa encarniçada: o naco gordo dos fundos político e eleitoral a que o partido tem direito. A instalação da balbúrdia, alimentada pela briga por recursos públicos, deixa claro que o modelo atual é repleto de falhas, se não um desastre completo para o país. Toda essa desordem só reforça a convicção de que a mãe de todas as reformas deveria ser a política.



19 DE OUTUBRO DE 2019
CRISE POLÍTICA

Uma direita em busca de rumo

Após ascensão meteórica ao poder, grupo de oposição ao PT se divide e escancara publicamente as divergências de bandeiras.

Um ano depois de vencer a disputa presidencial, a direita brasileira irrompeu em guerra. Enquanto Jair Bolsonaro se arma contra o PSL e apoiadores de primeira hora racharam com o presidente, seguidores e dissidentes do bolsonarismo se engalfinham na "twittosfera". Na última semana, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) admitiu que o campo político se encontra em momento de "debate".

- Estamos passando por uma fase de depuração, nos identificando. Só que, ao contrário da esquerda, que segura internamente qualquer desavença, a direita faz isso publicamente. Pode parecer um racha, e, por vezes, até é, mas acredito que, no final, se houvesse um segundo turno, todos da direita votariam contra o PT novamente - justificou o parlamentar.

Eduardo respondia a uma pergunta sobre a chance de vitória da esquerda em 2022 por conta dessa divisão na abertura da CPAC, sigla em inglês para Conferência da Ação Política Conservadora. Realizado no último final de semana em São Paulo, o encontro bolsonarista foi armado pela ala da direita que busca se organizar desde que chegou ao poder - ao menos outros quatro eventos semelhantes já ocorreram neste ano.

Para analistas políticos, a leitura do parlamentar está - em parte - acertada. Reunida no guarda- chuva anti-PT, a chamada nova direita chegou ao poder sem tempo de preparo suficiente, com pautas difusas e, em alguns momentos, dissonantes - em outros, sem agenda alguma. À desordem, ainda se acrescentam a dificuldade de articulação e o perfil pouco institucional do presidente, que contribuem para a ausência de liderança e o surgimento de crises.

- PSL e Bolsonaro se aproveitaram de um momento histórico favorável à direita, com um movimento basicamente antipetista, e conseguiram vencer a eleição. Mas muitas das dinâmicas internas, como organização e modo de governo, são problemáticas - avalia Glauco Peres, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP).

Líder dessa direita repaginada desde 2015, quando se destacou como articulador nacional dos protestos anti-PT, o deputado federal Kim Kataguiri (DEM-SP) aponta que "muita gente" se autointitulou direitista e foi eleita no tsunami antiesquerda. Mas o fundador do Movimento Brasil Livre (MBL), que costuma criticar a família presidencial, argumenta que uma parcela desse grupo defende ideias opostas ao que ele considera essencial ao campo político, como protecionismo e soberania nacional.

- Tem pessoas que se colocaram como antagonistas da esquerda, mas que, por princípio, não têm grandes convicções. Aí, é como se fosse um cachorro que só sabe correr atrás do carro. Quando o carro para, não sabe mais o que faz - ilustra Kataguiri.

Descoberta

Diferentemente do PT, que teve mais de duas décadas para se estruturar até alcançar o comando do país, a nova direita brotou das ruas, nas manifestações de junho de 2013, e atingiu o auge cinco anos depois, na figura de Bolsonaro.

- Há muita diversidade naquilo que se chama de direita. Num momento de tensão eleitoral, ocorre um fenômeno de aglutinação política e tudo fica mais simples. Depois, a vida segue o seu curso normal e surgem as divergências. Isso é acentuado pelo poder, que introduz elementos como a distribuição de prerrogativas e recursos e o acesso ao Estado. As disputas internas dentro do PSL, por exemplo, têm muito pouco de ideológico. São disputas pelo controle da máquina partidária - analisa o cientista político do Insper Fernando Schüler.

Hoje, gravitam à direita movimentos diversos: o liberal focado na economia, o conservador que dá ênfase aos costumes, o saudosista da ditadura militar, o lava-jatista e o bolsonarista "raiz", alinhado ao discurso agressivo do presidente e de seus filhos (ver quadro). Porém, de acordo com especialistas, nenhum desses campos está isolado. Vira e mexe, eles transitam entre si.

- Essa nova direita chegou ao poder muito rápido e, claramente, não discutiu o quanto queria ser institucional, democrata e liberal. Tem gente que achava que concordava com o colega e está descobrindo que, na realidade, discorda - pontua Celso Rocha de Barros, doutor em sociologia pela Universidade de Oxford.

DÉBORA ELY


19 DE OUTUBRO DE 2019
INFORME ESPECIAL

Nos palcos da vida

Durante a semana, fui convidado pelo Jair Kobe para participar do Programa do Guri, um show de auditório que faz sucesso às terças-feiras, no Teatro da Amrigs, em Porto Alegre. É um espetáculo divertido e tri família. Plateia lotada. Fiquei ainda mais feliz quando descobri que disputaria um concurso de perguntas com os queridíssimos Claus e Vanessa, dupla pop que voltou há pouco de uma temporada de dois anos nos EUA.

No camarim, além do melhor pastel integral de palmito que comi na vida, rolou aquela conversa gostosa, temperada a adrenalina que antecede a entrada no palco. E aí o Jair, antes de colar o bigodão e se transformar no Guri de Uruguaiana, quis saber por que eles voltaram para esse Brasil tumultuado e inseguro. Lembramos a frase de Tom Jobim: "Morar em Nova York é bom, mas é uma merda. Morar no Rio é uma merda, mas é bom."

Morar em Porto Alegre é mais merda ainda, mas também é mais bom.

Eu estava levemente nervoso, porque teria que responder a perguntas e também enfrentar algumas "provas gaudérias". Fiquei tentando descobrir quais seriam. Ouvido esticado, notei quando alguém do staff falou a um outro colega sobre uma tal prova de chula. Então era isso!!! Gelei. Eu, dançando chula no palco, sob as lentes de centenas de câmeras de celulares. Era o fim.

Tomado pelo pânico e sem que ninguém visse, enquanto o show rolava e ainda não era a minha hora de entrar, fui ao canto mais escuro dos bastidores e comecei a ensaiar: "tã rãn tan tan tarãn tarãn tãn tan"... e sapateava pra cá e pra lá, feito um ganso desajeitado, sobre uma lança imaginária no chão. O vexame era só questão de tempo.

Dez minutos depois, o Licurgo passou com a maldita lança na mão rumo ao palco. Me preparei mentalmente, mas... o desafio na chula era outro quadro, que nada tinha a ver comigo. Confesso que fiquei frustrado. Depois da quinta tentativa, a minha chula até que enganava bem.

Aproveito para dar os parabéns ao Claus e à Vanessa, que ganharam a disputa, apesar do empenho da minha equipe e da avassaladora vitória no desafio da velocidade de descascamento de bergamotas.

O desempate foi na prova musical. O Claus sacou, com cinco notas, que a música era Vento Negro. "Quero luta, guerra não". A prenda para os perdedores foi um mergulho de cabeça em uma travessa de sagu. Um dos integrantes da minha equipe, voluntário que veio da plateia, se adiantou. Deu tempo de eu enfiar o dedo no prato e provar. Tava muito, muito bom. Se um dia eu for de novo, vou perder de propósito. E dessa vez, não serei bonzinho. O banho de sagu será meu.

Mérito ao quadrado

A Brigada Militar criou oito patrulhas Maria da Penha, reforço importante ao projeto criado em 2012 para prevenir e combater a violência contra a mulher.

Cerca de 2 mil itens foram doados para a campanha Tudo Vira Brinquedo, da prefeitura, pelo Sindilojas Porto Alegre. A ação vai até 31 de outubro e já contabiliza 12,6 mil doações.

A primeira semana da Campanha Nacional contra o Sarampo vacinou mais de 3 mil pessoas de seis meses a 49 anos na Capital. Mais de 1,5 mil imunizações foram para crianças de seis meses a cinco anos, alvos prioritários da campanha.

As expectativas dos empresários são otimistas quanto à economia do país e das indústrias gaúchas. É o que revela o Índice de Confiança do Empresário Industrial. Mesmo tendo ficado estável em 59,2 pontos entre setembro e outubro, o índice - que varia de 0 a 100 pontos - segue bem acima da média histórica de 53,2.

O Instituto Ling oferece neste sábado, às 14h, mais uma oficina gratuita. Intitulado Diversidade Dançada, o projeto utiliza os movimentos para integrar pessoas, com ou sem deficiências, a partir dos 10 anos de idade.

TULIO MILMAN

19 DE OUTUBRO DE 2019
RODRIGO CONSTANTINO

Feminismo é de esquerda

Na última coluna, falei do ambientalismo hipócrita e disse que, tal como o feminismo, que pouco tem a ver com a mulher atualmente, a causa ambiental tem muito mais elo com o esquerdismo do que com o clima. Despertei alguma fúria, e aproveito a ocasião para desenvolver o raciocínio.

Sei que muitas pessoas se dizem feministas e acham que isso significa defender "direitos iguais" para homens e mulheres. Nada mais falso. O feminismo, em sua terceira e mais radical geração, virou mesmo um movimento de ódio aos homens, à família, ao livre mercado. E a hipocrisia salta aos olhos!

Basta pensar em Thatcher, por exemplo. Mulher forte, líder de uma grande nação por uma década, e detestada pelas feministas. Mas não era o "empoderamento" que importava? O problema é que Thatcher era conservadora. Pecado mortal.

Podemos pensar ainda na juíza federal Gabriela Hardt, que interrogou o criminoso Lula. Num trecho que se tornou viral na época, Lula tenta enquadrar a juíza, invertendo os papéis. A juíza era uma mulher independente, num cargo de respeito, determinando a prisão de um homem branco poderoso e milionário. Qualquer feminista adoraria encaixar esse caso em sua narrativa de "mulher empoderada".

Curiosamente, não vimos lideranças feministas fazendo isso. Assim como não vimos reação quando o ex-presidente desrespeitou suas companheiras de partido, aquelas de "grelo duro". O motivo? Lula é de esquerda, e o feminismo tem muito mais a ver com o esquerdismo do que com a mulher.

Quando a ex-mulher de Marcelo Freixo o acusou de agressão, tivemos o mesmo silêncio ensurdecedor por parte das feministas. Freixo é do PSOL. Imaginem se fosse com Bolsonaro! O foco é mesmo a mulher, ou a ideologia?

Por fim, há a questão da "igualdade salarial". É simplesmente mentira que a mulher ganha menos do que o homem para a mesma função e produtividade. O que se faz é comparar laranja com banana. A estatística é torturada até confessar o que a ideologia quer: a discrepância de salários na média é tratada como prova de preconceito machista. O feminismo virou a porta de entrada para o socialismo, que prega igualdade de resultados, não importa o mérito individual.

RODRIGO CONSTANTINO

sábado, 12 de outubro de 2019



12 DE OUTUBRO DE 2019
LYA LUFT

Criancices

Não sei, em minhas tantas memórias que curto e com que me divirto, se gostava de ser criança. Gostava de nossa casa, do jardim imenso, do laguinho no fundo, do pomar (mas tinha de lavar a fruta antes de comer...), dos canteiros de flor, um deles só de rosas de minha mãe, gostava da casinha de meus avós paternos logo adiante, do casarão dos avós maternos no centro da cidade. Gostava da chuva no telhado ou nas lajes do pátio, de meus pais, meu irmãozinho, das empregadas, de todo mundo. Gostava de tudo, da vida, do mundo, embora nem soubesse o que era isso.

Então, fui uma criança feliz numa casa amorosa e alegre. Claro que havia meus medos, minhas imaginações, sempre a mil; havia eventuais impaciências de meu pai por eu desobedecer à mãe, e as implicâncias maternas por minha enorme dificuldade de ficar quieta na hora de ficar quieta, sobretudo parar de fazer tanta pergunta. Lembro de minha mãe, mãos nas têmporas, dizendo em alemão, pelo amor de Deus, menina, para de fazer tanta pergunta, já estou ficando tonta. Vai falar com seu pai.

Criança não pensa, e criança fica quieta, eram uns lemas tão distantes para mim quanto as nuvens, as estrelas. Criança fica quieta às vezes, e era maravilhoso: embalada na rede do terraço, olhando os morros azuis, deitada na grama imaginando figuras nas nuvens, ou vendo algum anjinho gorducho saltando de uma nuvem para outra.

Criança, eu acreditava em tudo, já escrevi várias vezes que, talvez vergonhosamente, acreditei em cegonha até quando num grupinho de amigas, então já com uns sete anos, tentaram me explicar qualquer coisa horrenda sobre um caninho de borracha em que um bebê minúsculo passava do pai pra mãe... achei a cegonha bem mais plausível.

O que eu não gostava nisso de ser criança eram regras, obediência, conselhos. Senta direito. Não fala com boca cheia. Apaga essa luz e dorme de uma vez, chega de ler. Vai lá fora brincar no sol, você vai ficar burra de tanto ler. Olha o jeito com que fez sua cama. Olha esse bordado todo repuxado. Para de rir por qualquer bobagem. Vem, vamos fazer umas visitas: me assustava visitar um tio-avô em cadeira de rodas, nariz adunco, olhos de pássaro, com quem todo mundo falava aos gritos. Levou tempo até me explicarem que o pobre era surdo, mas não perdi o medo dele.

O que eu queria mesmo, na infância, era crescer. Adolescente, adulta, dona de meu pobre nariz e de minha vida, minhas escolhas. Lá, naquele ponto ainda distante, ficava um quase-paraíso na minha fantasia tão ingênua. E as contas a pagar? E os trabalhos a realizar? E os filhos a educar (sendo essa de filhos sempre a melhor parte), e a profissão a escolher, e se a gente não der pra coisa nenhuma - como por muitos anos pensei sobre mim mesma, já adulta? 

Rio sozinha lembrando que, depois de por muitos anos ouvir de minha amorosa, preocupada mãe, que "criança não pensa", escrevi, ilustrado pela minha filha Susana e com colaboração de meu filho Eduardo, um livro infantil, Criança Pensa.

No fundo, como me disse um dia meu amado amigo e compadre Erico Verissimo, às vezes o humor é mais importante do que o amor.


LYA LUFT


12 DE OUTUBRO DE 2019
MARTHA MEDEIROS

Uma oração para os novos tempos

Que honremos o fato de ter nascido, e que saibamos desde cedo que não basta rezar um Pai-Nosso para quitar as falhas que cometemos diariamente. Essa é uma forma preguiçosa de ser bom. O sagrado está na nossa essência, e se manifesta em nossos atos de boa-fé e generosidade, frutos de uma percepção profunda do universo, e não de ocasião. Se não estamos focados no bem, nossa aclamada religiosidade perde o sentido.

Que se perceba que quando estamos dançando, festejando, namorando, brindando, abraçando, sorrindo e fazendo graça, estamos homenageando a vida, e não a maculando. Que sejam muitos esses momentos de comemoração e alegria compartilhados, pois atraem a melhor das energias. Sentir-se alegre não deveria causar desconfiança, o espírito leve só enriquece o ser humano, pois é condição primordial para fazer feliz a quem nos rodeia.

Que estejamos sempre abertos, se não escancaradamente, ao menos de forma a possibilitar uma entrada de luz pelas frestas. Que nunca estejamos lacrados para receber o que a vida traz. Novidade não é sinônimo de invasão, deturpação ou violência. Acreditemos que o novo é elemento de reflexão: merece ser avaliado sem preconceito ou censura prévia.

Que tenhamos com a morte uma relação amistosa, já que ela não é apenas portadora de más notícias. Ela também ensina que não vale a pena se desgastar com pequenas coisas, pois no período de mais alguns anos estaremos todos com o destino sacramentado, invariavelmente. Perder tempo com picuinhas é só isso, perder tempo.

Que valorizemos nossos amigos mais íntimos, as verdadeiras relações para sempre.

Que sejamos bem-humorados, porque o humor revela consciência da nossa insignificância - os que não sabem brincar se consideram superiores, porém não conquistam o respeito alheio que tanto almejam.

Que o mar esteja sempre azul, que o céu seja farto de estrelas, que o vinho nunca seja racionado, que o amor seja respeitado em todas as suas formas, que nossos sentimentos não sejam em vão, que saibamos apreciar o belo, que percebamos o ridículo das ideias estanques e inflexíveis, que leiamos muitos livros, que escutemos muita música, que amemos de corpo e alma, que sejamos mais práticos do que teóricos, mais fáceis do que difíceis, mais saudáveis do que neurastênicos, e que não tenhamos tanto medo da palavra felicidade, que designa apenas o conforto de estar onde se está, de ser o que se é e de não ter medo, já que o medo infecciona a mente.

Que nosso Deus, seja qual for, não nos condene, não nos exija penitências, seja um amigo para todas as horas, sem subtrair nossa inteligência, nosso prazer e nossa entrega às emoções que nos fazem sentir plenos.

A vida é um presente, e desfrutá-la com leveza, inteligência e tolerância é a melhor forma de agradecer - aliás, a única.

* Coluna publicada originalmente em 3 de novembro de 2013- MARTHA MEDEIROS

12 DE OUTUBRO DE 2019
CARPINEJAR

Alma antiga

Tenho hábitos de velho, extravagantes para os filhos e a esposa. Eu curo tristezas comprando material em tabacaria. Levo aqueles lápis muito apontados, que se assemelham a cavaleiros medievais, de armadura e lanças, prontos para o combate. Arrebato ainda caderninhos bonitos, portáteis, próprios ao tamanho dos bolsos, para me perder desenhando e escrevendo. 

O cheiro do grafite e do papel me dá novo ânimo. Ter folhas em branco é uma lição de esperança: como se estivesse adquirindo dias que nunca foram usados. Retorno à época em que era estudante e o ano letivo começava cheio de pressentimentos. Cadernos são calendários inéditos. Amplio a extensão de meu coração deixando algo a ser preenchido para depois.

Eu também encarno aquele tipo que escuta música clássica para boiar nas lembranças. Deito no sofá com Mozart, Beethoven e Olivier Messiaen tocando alto na vitrola. Fico pensando à toa, sem mexer em mais nada, sem sentir mais nada, a não ser a minha respiração soletrando os compassos. Quando a família me encontra assim, acredita que estou mal. Pelo contrário, a solidão só me faz bem. Reviso os meus atos, os últimos acontecimentos, cochilo e acordo em alguma fantasia, peço desculpa a alguém em segredo no passado, agradeço por ser sincero comigo.

Gosto igualmente de cuco, para me certificar de que está vivo e funcionando. Eu me divirto conferindo a corda dele ao longo da noite. Um relógio que tem uma estatura maior do que a minha passa a segurança de mais um parente dividindo o teto. O tempo não deixa de ser uma pessoa.

Não abro mão dos casaquinhos de lã ao entardecer. Mesmo que não combinem com o que venho vestindo, aprecio essas mantas de botões cobrindo os meus ombros. A brisa nunca me pega desprevenido.

Prefiro um brechó a uma grande loja de novidades, prefiro um museu a uma praça lotada. Sou cada vez menos filho de meus pais, cada vez mais irmão deles. Acredito que sempre fui uma alma antiga, a diferença é que me encontro mais parecido por fora com o que levo dentro.

Mas todo mundo de casa acha que exagerei em meu envelhecimento precoce quando comecei a pedir tônica com limão e gelo nos restaurantes.

- Não conheço gente com menos de 60 anos que tome tônica - reclamou Beatriz. Tentei explicar para a minha esposa que ela apenas tem a ganhar com o meu gosto amargo. Perto de mim, ela vive rejuvenescendo. Já é uma adolescente.

CARPINEJAR


12 DE OUTUBRO DE 2019
LEANDRO KARNAL

ROTULO, LOGO EXISTO

PENSAR EM APROFUNDAR, DAR UMA SEGUNDA OLHADA, FUGIR DO RÓTULO: PARECEM SER ATITUDES QUE EXIGEM O DESAFIO DA VONTADE FÉRREA. DEIXAR QUE SENTIDOS MAIS AMPLOS INVADAM SUA PERCEPÇÃO SEM JULGAR E ENGAVETAR DE IMEDIATO É UM ATO DE RESISTÊNCIA. ABRIR ESPAÇO PARA COMPLEXIDADES É BOA META.

Nosso cérebro é uma complexa estrutura forjada por milhões de anos de evolução. Por outro lado, é também primitivo e foi lapidado para seres trogloditas que viveram há milhares de anos. É curioso pensar que o mais refinado, erudito e urbano dos moradores deste planeta tenha o mesmo hardware que um caçador coletor que passou a vida errando em uma pequena área de algum lugar em busca de comer, aquecer-se e garantir a reprodução.

Estou sendo injusto em minha descrição. Nosso primitivo ancestral era capaz de realizar pequenas cirurgias, tecer, fazer ferramentas de pedra. Tente criar algo assim em casa e você verá que somos menos autônomos do que um coletor do Paleolítico. Mas estou sendo preciso quando comparo nossos cérebros.

Desenvolvida para uma chave amigo-inimigo, nossa mente tende a rotular tudo o que vê, julgando a novidade de acordo com seu conhecimento prévio. Isso garantiu nossa vida por muitas gerações: se eu comer algo que me faz mal, toda vez que olhar para algo semelhante, sentirei repulsa. Nosso cérebro rotula de acordo com a percepção de nossos sentidos. Isso pode ser bom para evitar perigos, porém, cria problemas para nossa atualidade

Se eu tivesse que arriscar um esboço do que seria o pensamento médio das pessoas, hoje em dia, ele seria similar ao da mente primitiva dos antepassados paleolíticos. Formamos bandos com facilidade. Yuval Harari chama a atenção para como a detração é uma poderosa cola social. Fofocando, crio laços, forjo alianças, consigo favores, ganho poder. Desde sempre, nossa espécie previamente classifica o que vê antes mesmo de buscar compreender o que tem na sua frente. O pavor instintivo da novidade me faz rejeitá-la. Repetir o que é conhecido foi estratégia evolutiva para que o homem primitivo continuasse andando pelo planeta.

É claro que nós também somos conhecidos por sermos uma espécie que foge da natureza animal e que cria e modifica culturas. Portanto, há também um instinto inquisitivo, que gosta de descobrir coisas novas, explorá-las. No entanto, a sensação é que ele anda em baixa em nossos tempos. Nosso software quer novos programas; o hardware se apega à classificação empobrecedora de bom/ruim e desconhecido/conhecido.

Retorno ao ponto central: o que faz alguém ler uma manchete, ouvir um trecho de uma fala e, instantaneamente, apontar o dedo e dizer "Fulano é liberal", "Esse é comunista" etc.? No geral, quem afirma isso nem sequer tem clareza do que é liberalismo ou comunismo, tampouco consegue passar da superfície do que diz seu interlocutor, seja um texto, imagem, pessoa, vídeo ou áudio. Classificar, para o cérebro primitivo que se contenta em viver na caverna, é mais importante do que entender. Por quê?

Encerrar em caixas herméticas dá segurança. Começamos com a minha tribo e a do outro. Se é da minha, diminuem as chances de ataque. Classificar é a primeira forma de dominar e de se defender. O vício entrou em nós. Da tribo, passamos a gostos musicais e sexuais ou escolas artísticas. Será que a peça é rococó ou maneirista? Art Déco ou Nouveau? Primeira ou segunda fase do Romantismo? Naturalismo ou Realismo? Classificar não é ruim ou errado. Supor que algo esteja controlado mentalmente por estar etiquetado é, no fundo, estupidez.

Há pelo menos duas formas de entender o fenômeno. E elas não são excludentes. Talvez até se complementem. Vejamos. A primeira corrente vê na estupidez da rotulação imediata um traço humano. Sempre fomos estúpidos, violentos. A sociedade ficou mais complexa, criamos leis que dificultam ser assim, mas, em nossas essências, somos os mesmos de sempre: estúpidos. Por outro lado, há quem afirme que o tempo curto da internet, o imediatismo atual, produz superficialidades, impede o raciocínio profundo, pois este requer o questionamento de bolhas epistêmicas e, mercadoria cada vez mais rara e cara, tempo de reflexão, ponderação. 

Há idiotas que encontram eco em bandos de pessoas como eles e isso potencializa os danos. Não seria uma essência, necessariamente, todavia um feitiço, uma tentação oferecida por algoritmos do universo digital. O canto de sereia nos atrai para a morte. Ambas as teorias podem se juntar numa poderosa, mas talvez equivocada explicação: somos todos primitivos e temos tendência ao preconceito; quando nutrimos o oposto, escapamos da caverna; mas, quando sucumbimos ao tentador de grupos de redes sociais, o verniz vai embora e o troglodita volta a comandar nosso cotidiano.

Trata-se de um treinamento reverso. Tudo pede que você classifique continuamente. Resistir à tentação é um desafio. Pensar em aprofundar, dar uma segunda olhada, fugir do rótulo: parecem ser atitudes que exigem o desafio da vontade férrea. Deixar que sentidos mais amplos invadam sua percepção sem julgar e engavetar de imediato é um ato de resistência. Abrir espaço para complexidades é boa meta. O resto? O rema-rema de frases superficiais, senso comum e a celebração da boçalidade. Talvez, um dia, descubram que se trata de uma bactéria específica transmitida pela digitação. O remédio continua sendo ler com atenção, duvidar como método, analisar possibilidades fora do que está posto e nunca ser o representante da verdade na Terra. Ah, e ajuda abandonar as redes sociais por pelo menos uma hora por dia. É preciso ter esperança.

LEANDRO KARNAL


12 DE OUTUBRO DE 2019
FRANCISCO MARSHALL

A MORTE DE SÓCRATES

Em 399 a.C., Atenas cometeu um dos mais sórdidos crimes da História, a execução de Sócrates. Como pôde uma cidade democrática, em que há lugar precioso para a liberdade, a vida das ideias e as garantias judiciais, condenar um homem de pensamento, bom cidadão?

O evento foi examinado por Platão em quatro obras: Êutifron, Apologia de Sócrates, Crítias e Fédon. Na Apologia, Sócrates apresenta sua defesa diante do júri de cidadãos da Heliaia, o tribunal popular, acusado de perverter a juventude e de impiedade, por introduzir novas divindades. A Apologia é o primeiro monólogo da história da literatura, diverso do estilo que consagrou Platão, o diálogo. É um texto trágico, onde vemos o homem debater-se diante de destino incontornável. 

Em grande parte ficção composta por Platão, é nesse livro que apareceria a frase atribuída a Sócrates, "só sei que nada sei", paradoxo que põe em contradição saber e não saber, pois se nada sabe, não pode saber nem que não sabe. A sentença original, todavia, não contém paradoxo, apenas refere o principal argumento da defesa, de que ele se tornou antipatizado ao tentar encontrar, sem sucesso, algum ateniense que detivesse saber verdadeiro. Diz então que um de seus arguidos: "Sem saber nada, imagina que sabe, mas eu, sem saber, de fato, coisa alguma, não presumo saber algo" (Apologia, 21d).

Sócrates sabe, sim, que nada pode diante da opinião pública adversa, e que seu julgamento é uma farsa, em que triunfam alegações sem evidência, para saciar aos rancores de homens ultrajados por sua virtude. Para piorar, o réu provoca os jurados com sua insolência (hybris), dizendo que deveria ser, ao invés de condenado, sustentado pela cidade. O monólogo termina mostrando um filósofo que aceita o destino trágico e prepara-se para a morte, tema do diálogo Fédon, em que Sócrates bebe cicuta enquanto argumenta acerca da imortalidade da alma. Antes disso, no Críton, discute sobre a justiça e recusa a chance de sair da prisão indevidamente.

Há fatos políticos graves por trás da condenação de Sócrates. O regime democrático enfrentou, desde sua origem, a oposição de parte da aristocracia ateniense, os eupátridas (bem nascidos). Sócrates vivia sustentado por esse grupo, que realizou o golpe de Estado de 411 a.C., instituindo um regime tirânico, liderado por Crítias, aluno de Sócrates, e que executou sem julgamento centenas de atenienses. Com a restauração da democracia, e após Atenas perder para Esparta a Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.), iniciou-se a caça às bruxas, e o mestre era visto como o guru do grupo antidemocrático. O clima era contra Sócrates, que já havia sido ridicularizado por Aristófanes como líder de alienados e promotores de cacoetes, na comédia As Nuvens (423 a.C.), origem do discurso antiacadêmico.

Anos depois, revoltado com o que Atenas fez com seu mestre, Platão escreveu seu célebre ataque à democracia, a República, em que defende o governo autocrático do rei filósofo, a resposta ao regime que matou pensador. Quem morreu com aquela condenação injusta, o réu ou a democracia?

FRANCISCO MARSHALL


12 DE OUTUBRO DE 2019
COM A PALAVRA - leonardo.vieceli@zerohora.com.br

SOMOS IGNORANTES EM RELAÇÃO À CHINA.


ENTREVISTA COM: RICARDO GEROMEL, Administrador, 32 anos Chama a atenção o fato de ele ser o irmão caçula do ídolo do Grêmio Pedro Geromel. Mas Ricardo, que hoje vive na China e acaba de lançar livro sobre o país asiático, é bem mais do que isso. Ele esteve em Porto Alegre no dia 1º para uma palestra.

Logo depois de pegar o microfone, o palestrante faz questão de reforçar:

- Me apresento como Ricardo Geromel. Sou o irmão do Pedro.

A declaração espalha sorrisos na plateia que o aguarda para o início de um evento cujo tema é a economia da China, durante um almoço em um restaurante de Porto Alegre. Ricardo, 32 anos, vive no país asiático desde 2018. Do outro lado do planeta, acompanha o sucesso de seu único irmão, Pedro Geromel, 34 anos, com a camisa do Grêmio.

Além do laço familiar com o ídolo do futebol, a trajetória profissional de Ricardo também chama atenção. Formado em Administração pela Farleigh Dickinson University (EUA), trabalhou no mercado financeiro, já investiu em dois clubes de futebol dos Estados Unidos, mapeia bilionários para o ranking da revista Forbes e atua como CEO da StartSe na China - a plataforma busca fomentar o empreendedorismo por meio de cursos, eventos e viagens ao Exterior.

Ao longo da faculdade, Ricardo jogou futebol universitário, na posição de meio-campo. Como não se destacou no esporte, deixou a bola de lado e concentrou seus esforços nos estudos. Fluente em cinco idiomas, acaba de apresentar seu novo livro, O Poder da China, lançado pela editora Gente. A publicação detalha os processos de inovação e a capacidade da economia chinesa, que representa cerca de 15% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial.

Após desembarcar em Porto Alegre, no dia 1º, véspera do jogo entre Grêmio e Flamengo pela Copa Libertadores, Ricardo conversou com ZH. A entrevista ocorreu entre uma garfada e outra de seu almoço e incontáveis paradas para atender ao público que assistiu a sua palestra. A agitação, diz ele, faz parte de seu dia a dia no mundo oriental.

- A imagem que os brasileiros têm da China é do passado. O país é uma potência tecnológica. O que está por trás disso é a formação de cérebros - explica Ricardo.

COMO É A RELAÇÃO COM SEU IRMÃO?

A gente se fala bastante. Antes de chegar aqui (no local da palestra), fui vê-lo no Centro de Treinamentos do Grêmio. É o meu melhor amigo. Meu irmão foi a primeira pessoa a ler meu novo livro. Ele me sacaneou (risos). Mandei para ele a primeira versão, para depois corrigir eventuais erros ortográficos. A parte que está como anexa é culpa dele. Antes, era o primeiro capítulo, e meu irmão pediu para confiar nele e mandar esse trecho para o final do livro. Achou erros e me ajudou muito.

COMO SURGIU A IDEIA DE ESCREVER O LIVRO SOBRE A ECONOMIA DA CHINA?

É fato: somos ignorantes em relação à China. Ponto. O livro traz um pouco, o mínimo, o básico, para pensarmos no país como superpotência inovadora. Serve de ponto de partida para conseguirmos mergulhar mais profundamente no assunto. Entendemos e compramos o sonho americano, mas nem sabemos qual é o chinês. O país asiático é o nosso principal parceiro comercial. Os brasileiros não pensam muito na China. Têm preconceito, ideias errôneas.

POR QUÊ?

Não chega muita informação de lá. Não temos jornalistas daqui trabalhando no país asiático. O que chega ao Brasil são informações regurgitadas de The Wall Street Journal, Financial Times. A China deveria fazer parte do currículo básico de estudos aqui no Brasil. Há um consenso entre economistas de que a economia chinesa será a maior do mundo, só não se sabe quando. O Fundo Monetário Internacional (FMI) estima que isso vá ocorrer em 2030.

VOCÊ DESTACA EM SEU LIVRO O POTENCIAL DE INOVAÇÃO DOS CHINESES. HÁ CHANCE DE O BRASIL ALCANÇAR NÍVEL SEMELHANTE NA ÁREA?

A gente pode desconhecer a China, só que a tecnologia chinesa está chegando aqui, está cada vez mais presente entre nós. O AliExpress, uma plataforma do Alibaba (gigante que atua no setor de vendas), já é um dos 30 sites mais visitados do Brasil. A Huawei (do setor de telecomunicações) tem grandes operações aqui no país. Faz a infraestrutura de vários bancos e empresas de telecom. A China é o maior parceiro comercial do Brasil. Há traders (investidores) do mercado financeiro que chamam o Brasil de derivativo da China. Ou seja, um ativo que tem seu preço atrelado a outro. O Brasil é dependente da China, mas ainda não entendemos isso.

O PRESIDENTE JAIR BOLSONARO AFIRMOU QUE OS CHINESES PODERIAM COMPRAR NO BRASIL, MAS NÃO O BRASIL. QUAIS FORAM OS IMPACTOS DESSA DECLARAÇÃO?

Acho que, na ocasião, os chineses deram uma esperada para ver se Bolsonaro se aliaria totalmente a Donald Trump. Quando o (vice-presidente) Hamilton Mourão foi para a China, Xi Jinping (presidente do país asiático) o recebeu. Ele foi muito bem recepcionado. Mas não há clareza ainda. É esperar para ver.

COMO VOCÊ ANALISA O CENÁRIO DE INOVAÇÃO NO RIO GRANDE DO SUL?

Não acompanho o tanto que gostaria, porque moro em Pequim. Mas pessoas daqui, como o José Renato Hopf (criador da GetNet e da plataforma 4all) são visionárias. Quando ele me explicou o que está querendo fazer com a 4all, fiquei de queixo caído, porque é uma visão de longo prazo impressionante. Acredito no potencial do Estado por conhecer pessoas daqui, como os sócios da StartSe. Acredito nas pessoas em primeiro lugar. Na primeira vez em que estive no Tecnopuc, achei que estava na Califórnia. É impressionante, maravilhoso. Um ecossistema empreendedor e maduro precisa de bons empreendedores, de empresas grandes, do governo, da academia. Não sei como todos esses papéis estão no Rio Grande do Sul. Mas pessoas que conheci daqui, como Pedro Englert (sócio da StartSe) e o José Renato, são de classe mundial.

TANTO O GOVERNO FEDERAL QUANTO O GAÚCHO ENFRENTAM DIFICULDADES FISCAIS. COMO O PODER PÚBLICO PODE ESTIMULAR A INOVAÇÃO?

No Brasil, temos de começar pelo básico. A educação é a base de tudo. Sem melhora em educação, não dá para ter esperança. Não dá. Nessa área, o que posso fazer é trazer um pouco da experiência na China, que não teria tirado mais de 800 milhões de pessoas da extrema miséria (desde a década de 1980).

VOCÊ DIRIGE AS OPERAÇÕES DA STARTSE NA CHINA. QUAL É O OBJETIVO DESSE PROJETO?

A StartSe é uma empresa de educação, focada em trazer a nova economia para o Brasil e os brasileiros. Já levamos mais de 400 pessoas à China para conhecer empresas, em busca de oportunidades de negócios e investimentos. É educação executiva. Organizamos isso. Temos base em Xangai e outra em Pequim.

COMO É FEITO O MAPEAMENTO DOS BILIONÁRIOS PARA O RANKING DA REVISTA FORBES?

Trabalho ainda para a revista. Agora, como freelancer. Antes, como full-time. Cubro os bilionários para o ranking anual. Mapeio eles. Analiso, por exemplo, o valor de mercado de suas empresas. Tem a parte legal que você pode sentar e entrevistar os caras. Às vezes, fala com as ex-esposas (risos). Tem um cara sensacional, que é gremista, o Alexandre Grendene, presente na lista há muito tempo. O legal é a possibilidade de conviver com eles. Comecei a trabalhar na Forbes em 2011. Foi quando conheci minha esposa.

TEM IDEIA DE QUANTOS BILIONÁRIOS VOCÊ CONSEGUIU MAPEAR?

Não. Fiz alguns na Argentina, na França, na África, mas meu foco é o Brasil. Para aparecer na lista, a regra é ter US$ 1 bilhão ou mais de patrimônio. É uma tarefa engraçada. Já me peguei mandando vários e-mails para minha chefe dizendo que o cara "só tinha" US$ 500 milhões como fortuna pessoal. O país que mais cresce em bilionários hoje é a China. Se a Califórnia fosse um país, seria o terceiro da lista. No mundo, são 2,1 mil bilionários. No Brasil, há 66, segundo dados do ano passado.

VOCÊ JÁ INVESTIU EM DOIS TIMES DE FUTEBOL NOS ESTADOS UNIDOS, O FORT LAUDERDALE STRIKERS E O SAN FRANCISCO DELTAS. POR QUE RESOLVEU ATUAR NESSA ÁREA?

A liga à qual esses times pertenciam deixou de existir, e eles não tiveram onde jogar. Lembro que um amigo meu estava comprando um time em Phoenix. Quando eu trabalhava na Forbes, me mudei para lá para ver se valia a pena ter um clube. Fiz um plano para o país inteiro. Vi que o ideal seria montar um time em Fort Lauderdale, do ladinho de Miami. 

O número um seria San Francisco, mas era muito mais caro. Na equação de um novo time de futebol nos Estados Unidos, a principal variável é o estádio, que tem de ser confortável, com boa cobertura contra a chuva. As pessoas não vão a todos os jogos lá. Recomendei Fort Lauderdale e fui atrás de investidores. Depois que compramos o time, o Ronaldo Fenômeno entrou como sócio. Aprendi muito com essa experiência. Depois, pensei em tirar da gaveta o plano de San Francisco e encontrei investidores de Apple, Google, PayPal, Facebook e Yahoo!.

QUAL SUA ATIVIDADE PROFISSIONAL PREFERIDA?

Quando estou aprendendo, estou feliz. Tem o empreendedor. Na verdade, sou um "aprendedor" profissional. Meu negócio é aprender.

Qual é o seu time do coração?

O time do meu pai é o Corinthians. Até hoje, quando o Corinthians enfrenta o Grêmio, ele torce contra o filho. É uma coisa louca. Põe a camiseta do Corinthians. Meu irmão fica chateado, minha mãe fica chateada, eu dou risada (risos). Eu era são-paulino, mas, quando fui aos Estados Unidos, teve uma confusão no Campeonato Brasileiro com arbitragem (em 2005, quando reportagens da revista Veja denunciaram a chamada Máfia do Apito). Na época, perdi o tesão de torcer. Agora, torço para o Grêmio e para o Pedro Geromel. Peguei um carinho gigantesco pelo Grêmio. Gosto de futebol, não de times, tirando o Grêmio e a Seleção Brasileira.

TEM IDEIA DO QUANTO A TORCIDA GREMISTA IDOLATRA SEU IRMÃO?

A gente fica feliz. Realmente, ele atingiu um nível de excelência. No Brasil, geralmente o jogador fica por um ou dois anos em um clube e sai. Meu irmão teve várias propostas para deixar o Grêmio, mas não quis. Ele queria jogar a Copa do Mundo, gosta de Porto Alegre. É louco pelo Grêmio. É legal que o clube conseguiu mantê-lo por tanto tempo. Isso traz um retorno que é difícil tangibilizar.

LEONARDO VIECELI


12 DE OUTUBRO DE 2019
DRAUZIO VARELLA

MENARCA E MENOPAUSA

Meninas que começam a menstruar cedo correm risco mais alto de entrar na menopausa prematuramente. O risco é maior ainda naquelas que nunca tiveram filhos. Essa relação foi documentada num estudo do International Collaboration for a Life Course Approach to Reproductive Health and Chronic Disease Events (INterLACE consortium), que reuniu 50 mil participantes arregimentados no Reino Unido, na Escandinávia, na Austrália e no Japão.

O inquérito mostrou que mulheres sem filhos (nulíparas), que menstruaram pela primeira vez (menarca) antes dos 11 anos de idade, apresentam risco cinco vezes mais elevado (risco relativo = 5,64) de entrar em menopausa antes dos 40 anos (menopausa prematura), quando comparadas àquelas com menarca depois dos 12 anos e que deram à luz dois ou mais filhos.

Quando as que menstruaram antes dos 11 anos foram comparadas às que o fizeram depois dos 13, o aumento do risco de menopausa prematura foi de 80%. Na comparação de todos os grupos, a nuliparidade aumentou em 32% o risco de menopausa prematura, em relação às que tiveram dois ou mais filhos, independentemente da idade em que ocorreu a menarca.

Já sabíamos que a menarca precoce está associada a alterações da função reprodutiva, como irregularidade dos ciclos menstruais e incidências mais altas de endometriose e da síndrome do ovário policístico, mas havia dados contraditórios sobre a duração da fase fértil em função da idade na primeira menstruação.

Essas diferenças podem ser atribuídas ao emprego de metodologias diferentes e à variabilidade das análises estatísticas. No estudo australiano, foram avaliadas 50 mil mulheres, número capaz de detectar diferenças significantes.

A última menstruação ocorreu, em média, aos 50 anos. Menopausa antes dos 40 anos (prematura) foi documentada em 7% das mulheres; menopausas precoces (entre 40 e 44 anos), em 2%.

Esses achados não são mera curiosidade científica. Menopausa é fenômeno fisiológico acompanhado de sintomatologia característica (crises de calores, ressecamento vaginal, depressão, fadiga, perda de libido, labilidade emocional etc.), que predispõe e aumenta o risco de outras doenças (infarto do miocárdio, acidente vascular cerebral, osteoporose, fraturas ósseas, obesidade, infecções ginecológicas e urinárias, entre outras).

Saber que uma mulher de 30 anos teve a primeira menstruação antes dos 11 permite adotar medidas preventivas para contrabalançar os problemas de uma possível menopausa em idade prematura: planejamento familiar, aumentar os níveis de atividade física, evitar a obesidade, não fumar e reduzir o risco de doenças cardiovasculares.

No passado, as mulheres tinham um filho atrás do outro, a menarca acontecia aos 16 ou 17 anos, e a menopausa pouco depois dos 40.

Calcula-se que as mulheres do século 19 não menstruassem mais do que 40 a 50 vezes, na vida. Hoje, que as menstruações começam mais cedo, terminam mais tarde e o número de filhos não passa de um ou dois, a mulher menstrua 400 a 500 vezes.

DRAUZIO VARELLA


12 DE OUTUBRO DE 2019
J.J.CAMARGO

A RADICALIZAÇÃO ÉUM ATALHO PARA A INFELICIDADE. Mantenha uma distância saudável dos fanáticos, esses que sabem tudo que precisa ser feito para consertar o mundo

Os muitos conselhos de como viver melhor, que fazem a essência dos livros de autoajuda, usualmente traduzem apenas uma pretensão desmedida do autor. Por outro lado, muitas dessas recomendações são impraticáveis porque contrariam de tal forma hábitos e costumes do paciente que ele as perceberá como reservadas a outra pessoa, em outras circunstâncias. Como, por exemplo, comer brócolis e berinjela em todas as refeições. 

Ninguém merece submeter-se a essa punição. Portanto, seja razoável e não radicalize na alimentação. Coma o que sentir vontade, com moderação. O seu corpo saberá das suas necessidades. Quando sentir uma vontade incontrolável de comer laranja, pode apostar que seu nível de vitamina C está baixo. Não fantasie viver 100 anos comendo folhas. Pense na advertência de Ariano Suassuna: na Idade Média, homens e cavalos viviam 20 anos. Passados esses séculos todos, os homens estão ultrapassando os 80, e os cavalos, com sua dieta capim, seguem vivendo 20 anos.

Curta o seu vinho predileto, e aproveite o relaxamento prazeroso que um cálice nas refeições pode garantir. Ah, e tema os abstêmios que provavelmente têm segredos tenebrosos, que defendem no limite da sobriedade. Mantenha uma distância saudável dos fanáticos, esses que sabem tudo que precisa ser feito para consertar o mundo, que só está do jeito que está porque nunca lhes deram ouvidos. 

Não tente argumentar com os raivosos radicais, porque, como donos da verdade, eles habitam uma bolha, impermeável ao diálogo e à razão. Então seja esperto, e comece assumindo que sua parte é fazer o que fazes da melhor maneira possível. Portanto, fuja de heroísmos delirantes, esses que, irrealizados, só vão aumentar a produção de substâncias orgânicas que azedam o humor e aumentam a acidez gástrica.

Como se sabe bem, toda a forma de estresse é prejudicial. Então, vamos evitar o gratuito, concentrando-nos em conviver com o inevitável. Ouvir música clássica, por exemplo, é mais inteligente do que buzinar no engarrafamento. Evitar os pessimistas tem igual benefício, especialmente porque há evidências de que má sorte também se constrói.

Agora que está todo mundo empenhado em viver mais, priorize viver melhor. Talvez a regra mais importante nesta direção seja eliminar, na medida do possível, o convívio com pessoas ou circunstâncias que não lhe tragam prazer. Admito que isso é impossível na fase ascendente da vida, em que estamos criando o nosso espaço no mundo, e rompantes nesta fase podem ser contraproducentes. Mas guarde esta informação para a maturidade, e saberá que ela finalmente chegou quando levantar e ir embora, não mais será visto como insubordinação, mas como excentricidade saudável. E pode crer que os resignados com a chateação invejarão a tua coragem.

Tenha hábitos variados, preserve a musculatura, estimule a atividade cerebral, e durma bem. Não esqueça que o ronco significa má oxigenação, e não ajudará nada na velhice ter sacrificado um monte de neurônios em cada noite mal dormida. Eles farão falta no futuro, esse que todo mundo só pensa em alongar, sem atentar que a cabeça não pode ser a primeira a morrer, e que a longevidade só se justifica para quem for capaz de perceber a diferença entre viver e simplesmente durar.

J.J.CAMARGO

12 DE OUTUBRO DE 2019
DAVID COIMBRA

Um vale para tornar o fim de semana feliz

Quando entro em uma galeria que tem aqui perto de casa, parece que entrei no túnel do tempo. É uma galeria antiga, com escadarias de mármore, paredes de madeira e lojas saídas direto dos anos 1950.

Esse lugar me dá saudade do meu amigo Sérgio Lüdtke. Porque eu e o Sérgio passamos um bom período das nossas vidas em uma galeria semelhante, no prédio que era sede da Livraria Sulina, na esquina da Borges com a Demétrio.

Foi uma época divertida. Conheci pessoas interessantes. Além de escritores, editores e professores, muitos de nossos colegas eram personagens impagáveis. Na nossa sala trabalhava um jornalista veterano que, na verdade, não trabalhava. Ele ia lá às vezes, sentava-se atrás da máquina de escrever e, não raro, dormia na cadeira. Não era demitido porque tinha uma larga história na empresa e o dono, o Leopoldo Boeck, era um homem de lealdades. Mesmo assim, se o pegasse cochilando, o Leopoldo aproveitava para sacanear: enrolava um jornal e dava uma violenta pancada na mesa. O velho jornalista levava o maior susto, saltava da cadeira e o Leopoldo, gargalhando, convidava-o para tomar um café.

Eu e o Sérgio tomávamos vários cafés durante o dia, aliás. O mais importante era o clássico café da tarde: íamos à lanchonete da dona Maria e pedíamos uma média com pão que ela mesma preparava, uma delícia. O povo brasileiro perdeu muito ao abandonar o hábito do café da tarde - perdeu em nutrição, sim, mas bem mais em convivência. A pausa para o café da tarde servia para distensionar. Hoje, em vez de ir à lanchonete da dona Maria, as pessoas vão para o Twitter.

Uma vez, foi contratada para o nosso departamento uma moça, uma morena que, nossa!, ela porejava sexo. Não era uma beleza agressiva, era uma sensualidade macia, meio preguiçosa. Uma dessas morenas douradas, sabe como é? Seus olhos eram amendoados, com um brilho de malícia infantil que perturbava os homens. Ela sabia que exercia esse poder e gostava de se valer disso. Acabamos nos tornando amigos e ela me contava o que fazia com seus apaixonados. Foi então que aprendi que uma mulher muito bonita pode ser muito, muito cruel.

Uma vez, um importante editor do centro do país foi passar uma semana em Porto Alegre, a negócios. Ele chegou ao nosso departamento e viu a moça. Conversou com ela por cinco minutos, não mais. Foi o que bastou para ficar enfeitiçado. A partir daquele momento, começou a cercá-la. Mandava-lhe flores, presentes, doces, e ela só negaceando. Depois de dias de jogo, ela finalmente aceitou sair com ele. Jantaram em um restaurante caro e tal. De madrugada, ela topou ir até o cinco estrelas em que ele estava hospedado. Subiu ao quarto. Eles trocaram breves carícias. Ela levou a mão ao cinto dele. Abriu a fivela. Baixou-lhe as calças até os joelhos. E começou a rir. Apontava para o membro do coitado, ria e dizia:

- Desculpa, mas ele é tão pequeninho?

Claro que nada aconteceu naquela noite, nem jamais. O poderoso empresário voltou para casa sentindo-se nada poderoso.

Era má, a minha amiga.

Mas no final da galeria havia uma amiga boazinha. A dona Edith, ninguém menos do que a mãe do presidente, fundadora da empresa. Dona Edith era amada por todos. Eu às vezes ia à salinha dela e ficava fazendo perguntas sobre o passado da livraria. Ela, surpreendentemente, dava importância ao pirralho que eu era e respondia com paciência e doçura.

Dona Edith me salvou inúmeras vezes. É que, às sextas-feiras, a Sulina dava vales - nós podíamos pegar adiantado um determinado percentual do salário. Eu pegava todas as semanas. Gastava tudo em três dias e, na sexta seguinte, lá estava eu, no Departamento Pessoal, implorando por outro vale. Meus adiantamentos foram aumentando de valor, até que, um dia, recebi só uma moedinha de salário. Aí, o horror!, a direção da empresa me proibiu de tomar novos empréstimos. Só que a Dona Edith era A DONA e gostava de mim. Assim, eu escorregava até a salinha dela e miava:

- Dona Edith, será que a senhora me consegue um valezinho para tornar o meu fim de semana feliz?

Ela assinava o vale e eu ia vitorioso para o DP.

Depois que saí da Sulina, não vi mais a dona Edith. E agora, numa sexta-feira de 2019, entrei nessa galeria aqui dos Estados Unidos e, já ao passar pela primeira loja, lembrei-me do Sérgio Lüdtke. Continuei caminhando e, logo a seguir, parei em frente a uma sapataria e recordei de outra pessoa importante para mim, o meu avô, que era sapateiro. Mais um pouco e deparei com o relojoeiro, um chinês. Ele estava debruçado sobre um relógio no qual operava uma minúscula chave de fenda. Nunca vi esse chinês de cabeça levantada. Nunca. E, no fim da galeria, havia uma salinha de escritório meio escura. 

Olhei lá dentro e, atrás de uma mesa, vi uma senhora de cabelos brancos. Ela ergueu os olhos e me fitou. Abri a boca de espanto: era a dona Edith! Não a própria, óbvio, mas uma pessoa muito parecida. Ela, me vendo ali parado, sorriu, simpática. Sorri de volta. E segui meu caminho, pensando na coincidência: a dona Edith me socorria sempre às sextas e aquele dia era uma sexta? Estaquei. Tive vontade de voltar e conversar com ela. Mas não havia o que lhe dizer, ela não entenderia a abordagem. Em todo caso, fiquei contente. O sorriso daquela senhora americana, afinal, foi o valezinho que tornou o meu fim de semana feliz.

DAVID COIMBRA



12 DE OUTUBRO DE 2019
MÁRIO CORSO

Os carros do meu tio

Existem diferentes formas de amar os automóveis, a mais excêntrica é a do meu tio Jorge. Não pensem que ele é obsessivo, meticuloso. Ao contrário, acha que carro muito cuidado pega balda. Melhor é um tratamento rústico e impessoal, manutenção básica, lavar e faxina só no Natal.

Alguém desavisado pensa que o carro para ele é ferramenta. Só que não. Ele viaja muito, por necessidade de trabalho e por deleite. Não pode ver uma estrada, que se atira. Desenvolveu um gosto pelo asfalto, engole quilômetros com prazer. Seus carros são tanto testemunhas quanto companheiros dessas cotidianas travessias solitárias. Minha mãe, sua irmã, tem a tese de que ele, assim como meu pai, bebeu gasolina por acidente quando criança, tal o apego a essas máquinas e o gosto pelo volante.

O drama chega na troca de carro. Depois de tantas andanças, ele se apega como quem adota um animal de estimação. E, como bom gaúcho, não é porque o cavalo ficou idoso que pode virar salsicha. O que fazer quando o carro velho já não passa segurança para as lides de estrada? O tio reforma e passa para um filho usar na cidade, ou fica como carro reserva em Ijuí, ou, ainda, deixa na casa de praia em Garopaba. O fato é que ele não os descarta, os velhos camaradas não ficam longe de seus olhos e cuidados.

Em um acidente sério que teve, a camionete ficou irremediavelmente destruída. Acha que ele aceitou o diagnóstico? Arrumou um mecânico tão cabeça-dura como ele e a refez. Portanto, seus carros podem reclamar de que não tiveram os melhores carinhos, mas nunca faltou fidelidade.

Porém os anos passam e tudo vira sucata, por melhores que sejam os reparos. Enquanto isso, a família pressiona, pois as casas tornaram-se um estacionamento de supermercado.

Hoje desapego é chique. Livrar-se dos objetos com os quais tentamos impedir que nosso passado nos abandone é sinal de saúde. Fazer balanço da vida e descarte de excessos se equivalem. Sua outra irmã, que tem pares de sapato para as próximas cinco encarnações, o aconselha quanto ao desapego automotivo. A contragosto, meu tio se desfez dos mais acabados.

Será? Minha tia Zaia descobriu uma enigmática caixa com molhos de chaves e meu tio desconversou sobre um recibo de depósito alugado. Surgiu na família a suspeita de que ele de fato nunca vendera os carros. A hipótese é de que os teria levado para longe de nós, intrometidos, onde curtem sossegadamente a merecida aposentadoria.

Conhecendo meu tio, não duvido. Consigo imaginá-lo feliz frente a sua coleção de lembranças, encabeçada pelo seu primeiro fusca bege, lendo seu diário de vida inscrito em lata e pneus. Suas lembranças são maiores do que isso, mas que culpa tem se o afastamos de seus amuletos das outras épocas, de suas armaduras de guerras passadas, de seus velhos companheiros de aventura?

MÁRIO CORSO



12 DE OUTUBRO DE 2019
NO ATAQUE

PODER, SOLIDÃO E SAPOS

Presidente do Inter, Marcelos Medeiros me contou como foi especialmente triste para ele demitir Odair Hellmann. 

A quinta-feira foi um dos piores dias da vida de Marcelo Medeiros como dirigente, embora o lugar comum que forjou o apelido "cartola" para presidentes de clubes indique o oposto. Coube a ele demitir o técnico Odair Hellmann. Frente a frente. Olho no olho.

A derrota na Copa do Brasil também machucou, mas aí é do esporte. Duro estar tão perto e, de uma hora para outra, tão longe da conquista que mudaria sua vida para sempre, neste império do resultado chamado futebol brasileiro. Ser campeão a bordo de um timaço e dinheiro no cofre é obrigação. Na escassez, pagando dívidas dos outros e metido numa realidade espartana para contratar, esgrimando com elencos milionários, seria façanha - mesmo contra o Athletico-PR. Nem o contagiante otimismo do Mallenoti acreditaria em título lá atrás, vamos combinar.

O Inter não mandou Odair embora por entender que ele é fraco. Tanto Medeiros o considera promissor que não entregou sua cabeça em situações piores, ainda sem as boas campanhas de Libertadores e Copa do Brasil. Demitido antes, Odair teria problemas para se colocar no mercado. Agora, é barbada. Existe a certeza de que ele, um dia, voltará mais maduro e capaz de dar o salto que faltou na hora decisiva.

Quantos são campeões estreando em um grande clube? Renato ergueu taça só em sua terceira passagem pelo Grêmio como técnico. A avaliação foi de que o vestiário e o próprio Odair foram engolfados por uma nuvem de tristeza e insegurança pós-Copa do Brasil que afetou o desempenho coletivo e tisnou as decisões de todos.

O papo do intervalo, em vez de melhorar e incendiar, não surtia mais efeito. As soluções táticas se repetiam, sem resultado, sobretudo fora de casa, com uma postura inadequada para o tamanho do Inter. A direção entendeu que, com o G-4 sumindo faltando 14 rodadas e sinais de esgotamento, esperar tudo voltar ao normal era mais arriscado do que agir. Se for para trazer um técnico tampão, menor do que Odair, a demissão terá sido temeridade.

Aí era melhor ter exorcizado demônios em uma grande sessão de terapia com os jogadores, nos corredores do Beira-Rio. Todos sairiam unidos e fortes para encarar as críticas da torcida e da imprensa. Trocar de técnico após dois anos só se justifica por outro em patamar adiante na carreira, mirando 2020. Parece-me ser o caminho do Inter, ao menos por enquanto.

Voltemos ao instante da demissão, tema desta crônica. Todos gostam de Odair no Beira-Rio. Funcionários, jogadores. Todos. Trabalhava no seu time do coração desde 2009. Medeiros sabe que ele foi vítima de uma expectativa exagerada criada por seu próprio trabalho surpreendente, tirando de uma equipe média rendimento coletivo além do material humano à disposição. Como dizer-lhe, frente a frente, em outras palavras: seu trabalho bateu no teto?

Ameaças

Dirigentes carregam aquele estigma pejorativo do cartola ávido por ostentação e poder. Alguns são assim mesmo, com direito a negócios obtusos, conforme nos ensina a história recente, mas a maioria trabalha por abnegação. A partir do fenômeno das redes sociais e das fake news, lidam com ameaças pessoais e a familiares. Como envolve paixão, o universo web no futebol vira coquetel molotov.

Romildo Bolzan, por exemplo. Hoje, é semideus. Dá autógrafos parelho com Renato. Mas, em 2015, quando o Inter era semifinalista da Libertadores e o Grêmio seguia na fila, neófito e poste eram elogios, perto de outras pancadas impublicáveis que ele absorvia com paciência budista. Por tudo isso, acreditei quando Medeiros me disse como foi especialmente ruim dispensar Odair, em tese um ato de rotina. No futebol, técnicos caem como chuva de verão: a qualquer hora.

Entre glórias possíveis ou não, há uma dose de solidão no exercício do poder que eu dispenso. Prefiro ficar por aqui mesmo, sossegado, obedecendo a ordens dos meus muitos chefes, engolindo um ou outro sapo com sorriso de retrato no rosto.

DIOGO OLIVIER


12 DE OUTUBRO DE 2019
FLÁVIO TAVARES

FUTURO DO FUTURO

O dia 12 de outubro é de tríplice festa, mas nem sempre foi só assim. Não era ainda o Dia das Crianças nem o de Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil, quando a data mudou a face do mundo numa mistura de espanto, alegria e medo.

Há 527 anos, a 12 de outubro de 1492, as caravelas de Cristóvão Colombo chegaram ao Caribe seguindo os mapas marítimos de Américo Vespúcio. E o que eles pensavam que fosse a Índia Ocidental chamou-se América.

Anos depois, em 1500, Pedro Álvares Cabral aportou mais ao Sul, em terras semelhantes e o medo se confirmou: haviam chegado ao Paraíso. Mas, por que medo, se ali a exuberante natureza convivia com gente sem maldade nem cobiça, que andava nua sem perversão e cheirava bem até sem sabão?

Aqueles europeus que não se banhavam mas conheciam o crime, sentiram-se no Éden, o paraíso do livro sagrado. E a rígida teologia da época entrou em transe e em crise. A tradição religiosa ocidental tremeu.

A Torah judaica e a Bíblia cristã seriam inexatas ou mentiam? O "pecado original" que extinguiu o Paraíso e nos fez "amassar o pão com o suor do rosto" era invenção? O Éden ainda existia e só havia mudado de lugar?

Na época, a teologia dominava o mundo. Era como os economistas que hoje assessoram os políticos e preveem o passado com exatidão sem apontar qualquer trilha do futuro. Atônitos com a ideia de que o Éden ainda existisse, os teólogos deixaram o dia a dia assimilar o que eles não explicavam.

E cada vez mais nos distanciamos da sacralidade da vida, destruindo o planeta, como se tivéssemos raiva de habitá-lo.

Agora, a tríplice data quase só se festeja pelo trivial - o Dia das Crianças, criado para presentear, nunca para fazer a criança brincar, dialogar e entender o mundo. Esquecemos até o dia de 1717 em que um pescador encontrou a imagem de Maria no Rio Paraíba do Sul e surgiu, então, Nossa Senhora Aparecida. Hoje, como outros, o rio envereda rumo à poluição.

Se, alheios a tudo, não avaliamos sequer o passado, por que iremos nos preocupar com o futuro?

Ou com "o futuro do futuro", majestoso título do debate que juízes estaduais e federais, membros do Ministério Público (através de suas associações) e a OAB promovem no dia 14, sobre as leis de proteção ambiental. O painel das 14h, presidido pela juíza Patrícia Laydner, avaliará as mudanças ao Código Estadual do Meio Ambiente propostas pelo governo de forma impositiva, a serem votadas "em urgência", praticamente sem debates. Será correto que nosso código (hoje modelo no país) facilite destruir a natureza?

Em nota aos deputados, o Sindicato dos Engenheiros repudiou (sim, repudiou) que as mudanças se votem sem ampla discussão e apelou ao governador para que modifique a proposta. De fato, além do presente, está em jogo o futuro do futuro.

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES