sábado, 16 de novembro de 2019



16 DE NOVEMBRO DE 2019
LYA LUFT

O murmúrio do bem é um grito

O texto abaixo me chegou através de minha filha Susana, médica de emergência, que diariamente lida, atende, tenta curar e salvar males terríveis infligidos a pessoas inocentes, sobretudo crianças. Chegou anônimo, mas silenciosamente peço licença a quem o escreveu, tão bom, bonito, tão leve, para o transcrever aqui embaixo, como parte desta coluna. Pois acredito nele. Pois me fez um grande bem. E estamos precisando de coisas, pessoas, palavras, que nos façam bem.

"Para cada pessoa dizendo que tudo vai piorar, existem cem casais planejando ter filhos.

Para cada corrupto, existem 8 mil doadores de sangue. Enquanto alguns destroem o meio ambiente, 98% das latinhas de alumínio já são recicladas no Brasil. Para cada tanque de guerra fabricado no mundo, são feitos 131 mil bichinhos de pelúcia.

Na internet a palavra ?amor? tem mais resultados do que a palavra ?medo?.

Para cada muro que se ergue no mundo, 200 mil tapetinhos escrito ?bem-vindo? se colocam diante das portas de casas e apartamentos. Enquanto um cientista projeta uma nova arma, 1 milhão de mães fazem bolo de chocolate.

Há razões para acreditarmos que bons são a maioria."

E me dei conta, lendo e relendo esse texto despretensioso mas precioso, que estamos demasiadamente queixosos, assustados, negativos e pessimistas. Claro que não é fácil ser positivo com o que se desenrola aos nossos olhos e entra em nossos ouvidos, sobre tragédia, guerra, fome, assassinatos e carnificina ou abandono todos os dias. Mas, diziam as doces freirinhas de uma escola que frequentei por algum tempo quando adolescente, que "o mal grita, o bem murmura". Nesse texto se mostra que esses murmúrios podem ser mais fortes do que os berros malignos que tantas vezes parecem nos cobrir de negras nuvens ameaçadoras.

Assim, vai aqui uma mensagem de ânimo, começando por mim - eu, de coração partido há décadas com os horrores que nossa metade maligna impõe a tanta gente. Respirei fundo, e disse a mim mesma, sim, bons são a maioria, os que trabalham, amam, constroem suas vidas, suas casas, suas famílias, ou ajudam outros nessa tarefa; os que cuidam de doentes, os que assistem os miseráveis, os que se importam, os que dividem, os que buscam mais a harmonia interior do que um Everest de dinheiro. 

Aos decentes, nesta terra nossa, hoje minha cumplicidade amorosa.

LYA LUFT


16 DE NOVEMBRO DE 2019
LEANDRO KARNAL

O passado neva sobre nós

LER PESSOAS QUE PENSAM MAIS E MELHOR DO QUE VOCÊ É UM EXERCÍCIO DE COLOCAR-SE EM PERSPECTIVA. INCESSANTEMENTE HÁ UM ESPAÇO PERSPECTIVO DE COMPARAÇÃO E, CREIA-ME, OS MAIS COMPETENTES SÃO NUMEROSOS.

Régine Robin nasceu de pais judeu-poloneses na França. Atua como professora, escritora e tradutora premiada no Canadá, ou melhor, talvez ela preferisse: no Quebec. Na graduação, conheci um trabalho impactante dela, uma memória do encontro do pai com Lenin na guerra da Polônia (Le Cheval Blanc de Lénine, 1979). É um exercício sobre memórias vividas e denegadas. Tenho fascinação pela reinvenção das memórias familiares.

Em 2016, a editora da Unicamp colocou no mercado outro texto importante de Régine Robin: A Memória Saturada, obra original de 2003, com tradução de Cristiane Dias e Greciely Costa. Os capítulos são variados, indo do Oeste americano à internet, da memória do Holocausto ao uso de fotos nas redes. A primeira parte do livro, Presenças do Passado, é daquelas digressões teóricas sobre memória e história que todo estudante de humanas precisa ler para pensar a pesquisa.

Quando conheço o texto de uma mulher brilhante como Robin, sorrio internamente, ficando feliz, como se eu supusesse, ao longo das páginas, que a vida vale a pena e que a humanidade produz gente que pensa e que, mesmo em meio a tantos tumultos políticos e tragédias, um indivíduo consegue ir além e produzir coisas belas. Ler pessoas que pensam mais e melhor do que você é um exercício de colocar-se em perspectiva. Se alguém achar que a frase anterior é uma retórica vazia de humildade, engana-se profundamente. Incessantemente há um espaço perspectivo de comparação e, creia-me, os mais competentes são numerosos.

O passado cacofônico e inquieto é o objeto da obra. A figura da neve tornada cinzas é forte; o autor é Jean-Christophe Bailly, poeta e dramaturgo francês. Quais neves? A neve queimada de Stalingrado, pensa a autora, a neve suada de Kolyma (um assustador campo de trabalho forçado na Sibéria), a neve fúnebre de Birkenau e até a neve de concreto espatifado do World Trade Center continua silenciosa no ar. O pretérito vira flocos pesados sobre nós com suas dores que precisam ser ressignificadas e enunciadas em um mundo de registros instáveis e passageiros.

"O passado não é livre. Nenhuma sociedade o deixa à mercê da própria sorte. Ele é regido, gerido, preservado, explicado, contado, comemorado ou odiado. Quer seja celebrado ou ocultado, permanece uma questão fundamental do presente" (A Memória Saturada, p. 31).

Memória é fato complexo para a área de humanas. Freud analisou que o ato de lembrar é repetição e um conceito de complexo de "perlaboração", neologismo proposto para dar conta do termo alemão Durcharbeiten. É um percurso interno do indivíduo, superar dificuldades através (Durch) de um trabalho (Arbeit), ou seja, trabalhar-se utilizando alguma tarefa. Como os indivíduos, sociedades discutem e cultuam/negam memórias pelo percurso interno do diálogo com suas feridas narcísicas. Disso decorre a advertência de Walter Benjamin que serve de epígrafe à obra A Memória Saturada: "O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer".

Benjamin (1892-1940) viveu uma época de choques indescritíveis para nós. O horror do nazismo o deslocou da sua Alemanha natal em fuga até que, diante da hipótese de captura e de uma fronteira fechada, acabou cometendo suicídio, em 1940. Era um mundo ainda mais violento do que o nosso e pioraria até o final da guerra. Imagino que a cabeça do genial Benjamin seguiu mais o imanentismo da sua influência marxista e um pouco menos de outro grande luminar do seu pensamento, o especialista em mística judaica Gershom Scholem (1897-1982). A mística costuma retirar o olhar do momento passageiro e atual para uma mirada mais ampla, companheira de desejos permanentes.

Esses são percursos da memória que neva sobre todos nós. De um lado fatos, pessoas, crises e conjunturas que gritam: "Aqui, agora, momento, matéria, ação!". Do outro lado, as colinas mais permanentes que nos superam, que estão além de nós, o tempo em si e o universo sobre nós que proclamam "todo lugar, sempre, eternidade, impermanência". A ponte entre as duas instâncias é parte essencial do nosso equilíbrio. O texto de Régine Robin tenta entender a ponte que criamos de memórias voláteis e coisas permanentes. Benjamin queimou essa ponte e abandonou a possibilidade de sair do momento, que, sabemos, foi passageiro. 

A fronteira que ele viu fechada foi reaberta, horas depois de ele ter tirado a própria vida. Além de pensar muito como Benjamin, é preciso ter esperança sempre. A neve do passado é fria e, com frequência, trágica. Contém restos humanos e histórias de dor. A neve das fábricas da morte de Kolyma ou de Birkenau mostra que somos capazes de coisas absolutamente terríveis. Um dia, depois de muita dor, desponta breve primavera, aquela que Benjamin não conseguiu ou não pôde esperar. Provavelmente, eu teria feito o mesmo que ele... ou não. Impossível saber. Gershom Scholem era especialista em mística e, vendo seu mundo de origem queimar, decidiu ajudar a construir outro país.

Morreu professor em Jerusalém. Sempre é preciso ter esperança e anseio de uma primavera. Sob as calçadas há uma praia (sous les pavés, la plage), diziam os jovens revolucionários de 1968. Régine Robin lembra que é a praia do Club Méditerranée. Bem, faz menos frio do que em Kolyma. Sempre, acima de tudo, a esperança.

LEANDRO KARNAL


16 DE NOVEMBRO DE 2019
TELEVISÃO E STREAMING

APAIXONADA POR ELA MESMA

Entrevista | MONICA IOZZI atriz

Uma filha que despreza a própria mãe e foi presa por assassinato, uma ex-noviça interesseira que sai do claustro para virar dona de fábrica, uma popular influencer digital que foi trancafiada dentro de casa e não pode mais fazer postagens. E uma pobre heroína que ficou rica, perdeu tudo e deu a volta por cima. Nenhuma dessas personagens de A Dona do Pedaço, porém, mostrou tantas oscilações de personalidade quanto Kim, vivida por Monica Iozzi.

Na novela das nove da Globo, Kim é a agente que gerencia a carreira de Vivi Guedes (Paolla Oliveira) e Silvia (Lucy Ramos) e se divide nos romences com o certinho Márcio (Anderson Di Rizzi) e o fanfarrão Paixão (Duda Nagle).

Em entrevista a Zero Hora, Monica fala sobre o sucesso da personagem e os possíveis rumos de Kim nos últimos capítulos da novela.

Vivendo uma agente de influencers digitais na novela, qual sua avaliação dessa atividade nas redes sociais?

Fiquei surpresa com o nível de profissionalização dessas digitais influencers. A gente tem uma falsa impressão de que qualquer um pode pegar o celular e gravar e, se tudo correr bem, alcançar milhões de seguidores. Mas não é assim que as coisas funcionam. Eu aprendi que quantidade de seguidores nem sempre é sinônimo de sucesso, que tem muita gente por trás de uma pessoa que está com a carinha ali na frente das câmeras e me fez entender a necessidade de profissionais como a Kim. Não exatamente como ela (risos), mas profissionais que desenvolvem bem essa função.

Você apagou seu perfil no Facebook após discussões. Teve vontade de voltar? As pessoas mudaram de postura?

Não tenho vontade de voltar, eu realmente acho que estar em todas as redes já tomava muito do meu tempo, então estou satisfeita com o diálogo só no Instagram. Acho que depois de um pico de animosidade, nos últimos dois anos, as pessoas estão conseguindo voltar a dialogar de uma maneira um pouco mais racional, mais serena.

Uma hora, a Kim quer o Márcio, em outra, o Paixão. Com que você acha que a Kim vai ficar?

No fundo, a Kim não quer nenhum dos dois especificamente, ela não é apaixonada pelo Márcio e nem pelo Paixão. Acho que a Kim gosta de se divertir, de estar apaixonada, do frio na barriga, da conquista, do jogo amoroso, não importa com quem esteja jogando, contando que esteja com sentimentos à flor da pele. Gosta da adrenalina que as novas relações amorosas trazem para a nossa vida. No fim das contas, a Kim gosta é dela mesma (risos).

O que você ainda espera dela?

A Kim tem muitas características diferentes, coerente é o que ela não é. Apesar de sempre parecer desesperada, sinto a Kim principalmente sendo uma mulher muito independente, segura, autossuficiente. Gostaria de ver esses traços bem acentuados no final, que foi algo que o público gostou de ver nela. Seria interessante se ela terminasse bem profissionalmente, já que é apaixonada por aquilo, e cercada pelas pessoas que gosta.Temos que rever a ideia de que a felicidade está veiculada a uma relação estável. Muita gente é solteira e é feliz assim, por opção. Vejo muito a Kim assim, se divertindo por aí.

Que impressão passa a você os termos em inglês usados por Kim?

Isso não foi criação minha, foi do Walcyr (Carrasco, autor da novela), mas é uma tentativa da Kim de parecer mais refinada, colocar uma palavra aqui e ali em inglês, mostrar sofisticação que eu acho que não funciona (risos). Acho bem brega, na verdade, mas sendo excêntrica e desregulada, ela acha que tem charme, mais status e no fundo fica engraçado. É impressionante: no aeroporto ou mercado, sempre tem alguém que grita "Kim", ou "honey" e acho maravilhoso. Esses dias, entrei em um táxi e o homem gritou: "Ah, é a honey!" (risos). Virou uma marca, uma assinatura, que eu acho bem legal.

Como sente a amizade da Kim e da Vivi?

Do meio da novela para cá, ficou claro o quanto as duas vão além da profissão e se importam uma com a outra. A Kim conta com ela e vice-versa. Analisando o que a Vivi está passando, acho que a Kim deveria se intrometer mais na vida dela, alertar para a Vivi sair dali (do confinamento imposto pelo namorado) enquanto pode. Em alguns momentos, a Kim até pede, mas na vida real, ela teria que ter uma outra atitude, acionar polícia e a família de forma mais incisiva. Mas estamos falando de ficção e a Kim, apesar de gostar da Vivi, é muito avoada, não sei o quanto é nítido pra ela. Na vida real, existem muitos relacionamentos abusivos e isso é muito sério. Tem que ser denunciado.

No que o papel de Kim a agradou?

A Kim me deu a possibilidade de trabalhar traços de personalidade muito diferentes numa mesma personagem: tem momentos em que ela é caricata e engraçada; em outros, tem um pezinho na loucura ou é dramática; e, de repente, é a mais amorosa do mundo. É uma personagem que nunca foi óbvia, e construir alguém que é tão incoerente e deixar isso crível, que tenha o mínimo de lógica, foi muito difícil. Foi um grande exercício e acho que essa era a vontade do autor, de fazer a personagem, não ser nem bipolar, ela não vai da depressão a euforia, passa por outros mil estágios de pensamentos.

JÚLIO BOLL

16 DE NOVEMBRO DE 2019
MARTHA MEDEIROS

Assim é a vida

Árvores caem. Celulares ficam sem bateria. Canetas perdem a tinta bem na hora da assinatura. Iogurtes esquecidos na geladeira passam do prazo de validade. Crianças gritam durante o recreio. Fones de ouvido estragam logo. Sofás desbotam se expostos ao sol.

Folhagens murcham. Gatos afiam as unhas no tapete. Óculos entortam dentro da bolsa. Chove às vezes por quatro dias seguidos. Esmaltes descascam. Consultas médicas são desmarcadas e transferidas. Abdominais custam a dar resultado. Vizinhos escutam música ruim que entra por nossas janelas.

Pontas de lápis quebram. Copos também, pratos lascam. Números não identificados ligam para nossos celulares. Motoristas de aplicativos não conhecem as ruas da cidade. Roupas velhas emboloram. Garçons erram pedidos. Vinho mancha. Botões não fecham quando a gente engorda. A gente engorda.

A diarista adoece e falta. Carros enguiçados atrapalham o trânsito. Cachorros fedem quando não tomam banho. Chaves são perdidas. Voos atrasam. Serviço de quarto de hotel é demorado. Políticos mentem. Times empatam em 0x0. Horóscopos não acertam. Discursos se arrastam. Churrascos queimam se o assador se distrai.

Violões desafinam. Amigos somem. O dólar sobe na véspera da viagem. Histórias não batem. Sites de bancos emperram. Ninguém compra o apartamento que colocamos à venda. Chatos nos alugam. Idiotas apertam em todos os andares do elevador. Motores apagam no meio do engarrafamento. Os convidados erram no presente.

Malas extraviam. Tomates apodrecem. Testes de bafômetro dão positivo. Filhos não comem direito. Terapias demoram. Salsichas são suspeitas. Roda-se em provas de autoescola. Corretores de WhatsApp nos constrangem. Infiltrações na parede se repetem. Prédios altos tapam a visão. Filmes saem de cartaz. Baratas aparecem.

Chatices acontecem. E os resmungões nos alugam.

Mas novidades aparecem. Coisas boas se repetem. Testes de gravidez dão positivo. O beijo é demorado. Reuniões de condomínio são desmarcadas e transferidas. Pessoas interessantes ligam para nossos celulares. Tiranos caem. Pessimistas não acertam. Dá praia por quatro dias seguidos. Cachoeiras não fecham. Preconceitos somem. Recordes são quebrados. Amantes se conhecem no meio do engarrafamento. A temperatura sobe na véspera da viagem. Vizinhos escutam música boa que entra por nossas janelas. Homofóbicos saem de cartaz. Espumantes são abertos bem na hora da assinatura. Amores não acabam quando a gente engorda. A vida se renova se exposta ao sol.

MARTHA MEDEIROS


16 DE NOVEMBRO DE 2019
MÔNICA SALGADO

Casa de vó

Só tem um lugar no mundo mais delicioso do que nossa própria casa: casa de vó. Nossa própria casa pode até saber de quem somos hoje, mas casa de vó sabe de quem fomos ontem, e nós sabemos que o hoje não seria o hoje sem o ontem. Sem aquele tombo que me rendeu uma "janelinha" de anos na boca, sem aquele Natal em que descobri que o tio Paulo era o Papai Noel, sem aquela gemada com vinho do Porto, aquele primo distante que foi o primeiro amor, aquele "meinho" quentinho e protetor da cama, entre a vó e o vô, o clima festivo e permissivo que (viva a redundância!) permitia que a gente fizesse quase tudo... Sem todas as anteriores, como eu poderia ser esta que vos escreve?

Tenho sorte: tive quatro avós maravilhosos. Nino e Nice do lado paterno. João e Neide do materno. Presentes, importantes, aconchegantes, dínamos de amor. Tenho muita sorte: vovó Neide segue aqui neste plano, 91 anos, saúde boa apesar do Alzheimer que lamentavelmente a retirou de algumas atividades corriqueiras. 

A avó mais avó que se pode imaginar. Me ensinou a cozinhar (eu só quis aprender os doces), a tricotar (produzi toscos, porém bem-intencionados, cachecóis para a família), a servir (a ironia disso tudo é que ela é a única que está entre nós, como se vivendo sua merecedora fase de ser servida por todos aqueles a quem se doou). Mais do que tudo: vovó Neide me ensinou, do seu jeitinho, a ver poesia em todas as lições acima. Poesia no café com leite vespertino pro vovô, no frango assado pra família aos domingos, no arroz de amêndoas de tantos Natais... Ela cuidava sobretudo cozinhando. Era o seu "eu te amo".

Vó Neide viveu uma vida à moda antiga. Não se rebelou contra o status quo. Não foi exatamente visionária. Não lutou contra as convenções. Seu valor maior está naquilo que é, na sua essência que traz paz, no seu colo morninho e macio, no seu cheiro suave de canela, nos dedos gordinhos que fazem carinho. Na sua casa que é, para nós, templo.

E ela mora, até hoje, no mesmo lugar. A casa da vó Neide é um Xangri-lá. Tem aroma de especiarias, temperatura amena (25º C, curiosamente não importando a estação do ano), o conforto emocional dos móveis no mesmo lugar de sempre, a história da família nos porta-retratos, os vizinhos que nos viram crescer.

Por ali, coisas mágicas acontecem. O sofá, por exemplo, tem sonífero. Sentou, deitou, dormiu. O tempo passa mais devagar. Os sapatos se recusam a ficar nos pés. A água do velho filtro de barro bateria qualquer Evian da vida. Na cristaleira, sua famosa coleção de "bibelôs" se mantém estranhamente intacta, imune a quatro bisnetos bisbilhoteiros que já até armaram por ali uma partida de pebolim - fazendo de jogadores peças de presépios antigos, galinhas d?Angola compradas em Porto de Galinhas e objetos de murano adquiridos naquele cruzeiro pela Itália com o vovô. Milagre: nenhuma baixa entre os bibelôs! E não conto nem sob tortura de qual bisneto estou falando, cof, cof. cof.

Tem mágica, muita mágica. Mas também uma tristeza ou outra. Nem Xangri-lá escapa dos ciclos da vida. De uns anos pra cá, as especialidades gastronômicas da Dona Neide foram ganhando ora muito sal, ora nenhum açúcar, às vezes forno demais, às vezes forno de menos. Maldito Alzheimer. No início, fingíamos que nada notávamos. "Que delícia, vó, a senhora cada vez melhor, hein?". Porém, o perigo iminente a que ela estava exposta bem ali, no seu cômodo preferido da casa, nos fez abrir os olhos. Detalhe: vovó jura que prepara todos os almoços em família e fica ofendida quando encomendamos fora a ceia de Natal. Bendito Alzheimer.

Na garagem/quintal, os brinquedos que já foram dos netos se misturam aos dos bisnetos. Relíquias como um Pogobol autêntico já foram encontradas onde antes ficava o Escort azul. Carro já não se faz necessário. Melhor que o portão sirva de gol pros meninos jogarem. Desde que eles não quebrem o vidro, né, vó? O quê? Quebraram de novo? Não, vó, a senhora confundiu. Já consertamos, está tudo perfeito. Agora descansa. Quer um chazinho de camomila pra chamar o sono? Não saio daqui até a senhora adormecer. Te amo, vó. Mãe, qual é mesmo o contato do vidraceiro? Zzzzz....

MÔNICA SALGADO

16 DE NOVEMBRO DE 2019
CARPINEJAR

Toda a vida

Sempre que preciso justificar uma compra cara, busco na memória o que a minha mãe falava para calar a desconfiança de meu pai:

- Mas vai durar toda a vida. É a melhor desculpa para o consumismo, para assinalar que fez um excelente negócio, para espantar questionamentos secundários.

Não há como derrubar a alegação de que se arrebatou um aparelho eterno ou uma roupa imortal. Assim como ninguém vai ficar fiscalizando no armário ou no cabide a duração do objeto e da peça. Por mais que desfie ou estrague, as pessoas já terão esquecido a cobrança.

Justificar o valor pela longevidade é a saída para vencer a resistência e a acareação sobre os gastos excessivos no cartão de crédito. Dizer que é lindo ou que é único ou que é de um estilista famoso ou que nos serviu bem nunca acalma os ânimos de nossa família zelosa pelo orçamento doméstico.

Enfrentei um longo processo para incorporar a panaceia dessa explicação. Não desejava plagiar a minha mãe, mas não teve jeito.

Antes eu chegava em casa com um mundaréu de sacolas, despertando a inveja e o olho gordo de quem estava na frente da televisão. Era aparecer com as mãos ocupadas que filhos e esposa me rodeavam para saber se havia presentes. "Presentes para mim", retrucava, e perdia imediatamente o apoio e a linha de crédito. Argumentava que não devia ser confundido com uma criança inconsequente, que desfrutava de consciência dos meus limites, que partiu de meu salário e que merecia gastá-lo com o que eu quisesse, longe do constrangimento de prestar contas. Só recebia a fama de egoísta.

Depois, passei a guardar as aquisições em minha mochila, para não chamar atenção no momento de abrir a porta. A discrição funcionava até estrear os mimos: "Não conhecia isso, andou comprando?"

A resposta milagrosa também me salvou além do comércio, quando pedi a mão de Beatriz em casamento ao sogro.

Não aguentava mais a maratona de perguntas sobre os meus projetos, a minha atividade e as minhas reais intenções. Suava frio, emparedado num beco: como convencer um advogado que poeta tem estabilidade financeira?

Foi quando, sem controlar mesmo, soltei a pérola: - Mas vai durar toda a vida. Ele não resistiu, e acho que se conformou comigo.

CARPINEJAR


16 DE NOVEMBRO DE 2019
DRAUZIO VARELLA

FUTEBOL E NEURÔNIOS

PESQUISADORES ESCOCESES COMPARARAM OS ÍNDICES DE MORTALIDADE DE 7.676 EX-JOGADORES PROFISSIONAIS COM OS DE UMA POPULAÇÃO MASCULINA

Praticar esporte faz bem à saúde, mas bater a cabeça traz problemas. Na década de 1990, foi publicado o primeiro estudo a mostrar que atletas profissionais de futebol americano, que haviam jogado pelo menos cinco anos, apresentavam índices mais baixos de mortalidade do que homens da mesma faixa etária, na população geral.

A mortalidade por doenças neurodegenerativas, no entanto, era 3,2 vezes mais alta. Os riscos de morrer por Alzheimer ou por esclerose lateral amiotrófica (ELA) - doença que causa paralisia progressiva dos músculos - praticamente quadruplicavam.

Apesar da relevância desses achados, houve poucas pesquisas até a última década, quando surgiram casos de ex-profissionais com quadros de disfunção cognitiva grave e atrofia cerebral, classificados como "encefalopatia traumática crônica".

Resultante de concussões repetitivas e assintomáticas na prática de esportes de contato, esse transtorno se instala no decorrer de décadas, levando ao comprometimento da função mental, depressão e dificuldades motoras, como a falta de equilíbrio. Nas situações mais dramáticas, há aumento do número de suicídios.

O risco de encefalopatia traumática é maior nos jogadores de futebol americano escalados para as posições que os obrigam a correr com mais velocidade e a se chocar com maior impacto, contra os adversários.

Agora, acaba de ser publicado na prestigiosa The New England Journal of Medicine, um estudo realizado, desta vez, com atletas profissionais do futebol que praticamos.

Pesquisadores escoceses compararam os índices de mortalidade de 7.676 ex-jogadores profissionais de futebol com os de uma população de 23.028 homens, numa pesquisa patrocinada pela Football Association and Professional Footballers? Association, da Escócia.

Depois de 18 anos de observação, foram contados 1.180 óbitos entre os ex-jogadores e 3.807 no grupo-controle.

Até os 70 anos de idade, a mortalidade por todas as causas reunidas foi mais baixa nos ex-jogadores, provável reflexo da redução da prevalência da obesidade e do fumo, entre eles. Daí em diante, houve inversão: a mortalidade do grupo-controle se tornou mais baixa.

Mortes por infarto do miocárdio e câncer de pulmão foram menos frequentes entre os ex-jogadores, mas a mortalidade por doenças neurodegenerativas mais do que triplicou (1,7% contra 0,5%).

Os ex-futebolistas profissionais receberam cinco vezes mais medicações para tratamento de demências do que os participantes do grupo-controle. O índice de mortalidade por neurodegenerações em goleiros não foi mais baixo do que entre os demais defensores e os atacantes, posições mais sujeitas a choques e cabeçadas.

Encefalopatias traumáticas crônicas já foram descritas em boxeadores e praticantes de diversas modalidades esportivas que envolvem contato e pancadas na cabeça. O trabalho conduzido com futebolistas profissionais na Escócia confirmou os achados de outros estudos que encontraram mortalidade geral mais baixa em ex-atletas, porém maior prevalência de mortes por Alzheimer, ELA e encefalopatias traumáticas.

Em algumas séries de autópsias realizadas em profissionais de futebol e de rúgbi, alterações patológicas consistentes com esse tipo de encefalopatia foram diagnosticadas em 75% dos ex-jogadores, mas a relação desses achados com a instalação de quadros demenciais não está clara.

Calcula-se que um jogador profissional cabeceie a bola de seis a 12 vezes por partida, eventos que somados aos dos treinamentos podem chegar a mais de mil durante a carreira. Há evidências de que choques repetidos da bola de futebol contra a cabeça podem modificar a bioquímica cerebral, interferir com a integridade da substância branca e a espessura da substância cinzenta, camada encarregada das funções nobres que nos diferenciam dos outros animais.

Futebol é o esporte mais popular do mundo, praticado em mais de 200 países por centenas de milhões de pessoas que se beneficiam da redução do risco de doenças cardiovasculares e câncer, duas das principais causas de morte. Não há demonstração de que a prática amadora tenha repercussões neurológicas.

As conclusões do estudo escocês não valem para mulheres nem para boleiros de fim de semana. Não existe motivo para preocupação dos pais: as atividades esportivas - inclusive a do futebol - devem ser incentivadas, por causa dos inúmeros benefícios à saúde.

DRAUZIO VARELLA

16 DE NOVEMBRO DE 2019
BEM-ESTAR

QUERER E NÃO QUERER


Dias atrás, depois de uma palestra, conversei com um grupo de estudantes sobre escolhas. A preocupação deles é não saber ainda com clareza o que querem e nem pra onde se direcionar. E, ao mesmo tempo, ter que lidar com tantas pressões e obrigações que a sociedade vai nos impondo no caminho.

Muitos não se sentem bem com as opções que se apresentam, e a insegurança aumenta.

A gente não precisa, logo de cara, saber o que quer. Aliás, essa é uma grande tarefa para a vida toda. A cada minuto a gente tem de fazer escolhas e em cada momento de transição parece que a liberdade da gente fica por um fio.

Mas liberdade não significa necessariamente saber o que a gente quer. Ser livre não implica ter descoberto todos os desejos. A gente vai conquistando a liberdade a cada passo, mesmo sem saber pra onde se vai, e é fundamental não sermos obrigados a seguir direções que não queremos de jeito nenhum.

Liberdade significa não aceitar caminhos impostos, padrões impostos, rótulos, papéis, comportamentos e regras com as quais não nos identificamos. Não ser o que não nos traduz.

Começar sabendo o que a gente não quer e sacando o que a gente não é, já tira da frente um monte de coisa que não nos interessa. E vai facilitando as nossas escolhas.

Uma boa parte da felicidade resulta dessa liberdade de poder fazer o que se gosta e de gostar do que se faz. De poder descobrir quem a gente é e trabalhar para se tornar essa pessoa.

Essa é uma escolha primordial e uma maneira da gente se orientar na vida.

Em qualquer situação, temos essa possibilidade, independentemente das circunstâncias em que vivemos.

Alguns podem alegar que isso é um privilégio, mas é preciso compreender que isso é simplesmente uma perspectiva, um jeito de olhar a vida, seja sua vida qual for.

O poeta português José Régio, em seu maravilhoso Cântico Negro, diz:

"Não sei por onde vou.  Não sei para onde vou

Sei que não vou por aí."

Esse poema traz a rebeldia de não aceitar a direção que nos obrigam a ir, de não deixar que nos transformem naquilo que não queremos ser.

Somos todos interdependentes e nossas vidas são conectadas. Mesmo assim, não precisamos nos tornar aquilo que os outros querem que a gente seja, se essa não for a nossa verdade.

Temos que resistir a ser empurrados para um caminho que não queremos ir, temos que respeitar o que somos e sentimos para poder achar a nossa felicidade.

Nossa missão é essa, encontrar isso tudo: decifrar o que somos e queremos, nossas emoções, crenças, desejos, vontades, nossas loucuras, nossos medos, toda a complexa teia de sensações que nos envolve.

Seguimos caminhos difíceis, vamos errando, nos enrolando, complicando, porque é assim mesmo que vamos descobrir aos poucos nossa verdadeira identidade.

A gente embarca numa jornada mesmo sem ter ainda uma ideia do nosso rumo. Se joga sem ter noção de onde isso nos leva.

Mas quando a gente sabe o que não quer, fica mais simples encontrar tudo o que somos e podemos ser.

Lembrando o verso de Antonio Machado que resume isso: "Caminhante não há caminho, se faz caminho ao andar?".

Bruna Lombardi escreve a cada 15 dias neste espaço. Na próxima semana, leia a coluna de Monja Coen.

BRUNA LOMBARDI


16 DE NOVEMBRO DE 2019
JJ CAMARGO

A DESCONFIANÇA

SE A QUESTÃO FOR DINHEIRO, É BOM FICAR DE OLHO, BEM ABERTO, PARA QUEM NOS CONHECE MAIS, POIS ESSES SABEM, COMO NINGUÉM, NOS FAZER SOFRER

Se considerarmos que somos jogados no mundo, sem nenhuma noção de que inimigos vamos enfrentar nem de que armas precisaremos, a vida será sempre um exercício assustador de tentativa e erro.

E como desembarcamos sem um manual de instruções para cada situação, interagindo com pessoas sempre tão diferentes, não há a possibilidade de que se estabeleça uma estratégia de defesa, e fica muito claro que o máximo que podemos fazer é tentar não repetir os erros, na expectativa generosa de que a maturidade nos encontre sábios e serenos.

Uma fantasia precoce na vida moderna é de que seria muito bom se tivéssemos alguém com quem compartilhar nossas dúvidas ou, idealmente, alguém para copiar. Sem ombros e sem modelos, nosso viver assume ares de um videogame em que estamos eternamente tentando desviar de inimigos impiedosos e traiçoeiros, as vezes reais, em outras imaginários.

Sem airbags emocionais confiáveis, saímos de casa todos os dias, de peito aberto ao que o mundo ofereça, de melhor ou pior, e sem aviso prévio.

Os otimistas considerarão que este é o lado mais excitante da vida, enquanto os pessimistas se consagrarão ao verem que tudo o que previram como desastre desastrou.

O nosso "modelo de fábrica" original traz a desconfiança como único e precário recurso de proteção, e, sem saber como utilizá-la, incorremos com frequência no exagero de desconfiar de todos, e é certo que não precisamos chegar a esse extremo, porque não é tão raro assim que encontremos pessoas genuinamente boas.

É certo que, se confiarmos muito, algumas vezes nos quebraremos, mas os que desconfiam sempre se tornam amargos pela escassez de reciprocidade de afeto, e essa é matriz da mesquinhez.

Quem tem tempo de ouvir as histórias ricas que brotam nos ambulatórios pobres descobre formas ainda mais deprimentes de mau-caratismo, como aquele que, sem a barreira da desconfiança, prospera na boa fé.

Conheci a Marialva quando a operei no final dos anos 1990. Na época, ela era classe média, mas morava em casa própria, com o marido aposentado, e tinha um plano de saúde. Recentemente, quase não a reconheci ao entrar na minha sala, trazida pela secretária com o alerta de que precisava muito me ver, mas não era uma consulta.

- Viuvei há quatro anos e, uns tempos depois, minha irmã pediu que acolhesse meu sobrinho que arranjara um emprego na Capital - ela contou. - Sempre oferecido para me ajudar, foi tomando o controle das minhas contas, e no ano passado descobri que ia ser despejada se não vendesse a casa para pagar as dívidas, que nem entendi ainda de onde brotaram. Agora só tenho SUS e moro de favor com uma prima, em troca de cozinhar e limpar a casa. Às vezes penso que foi bom ter ficado sozinha. Se o Anselmo ainda estivesse vivo, eu teria morrido de vergonha dele. Agora estou aqui para ver se o senhor me consegue umas amostras grátis de antibiótico. Qualquer antibiótico!

Desconfiar de quem não conhecemos parece mais ou menos espontâneo, mas se a questão for dinheiro, talvez seja recomendável desconfiar também, e muito, de quem nos conhece mais, pois esses sabem, como ninguém, nos fazer sofrer.

JJ CAMARGO

16 DE NOVEMBRO DE 2019
DAVID COIMBRA

O grito de pizza

As bancas do centro de Novo Hamburgo estão renovadas e resplandecentes, contou-me o Beto Nielsen. Fiquei feliz.

O Beto Nielsen é jornalista. Trabalhamos juntos no NH quando o editor-chefe era o Emanuel Mattos, grande amigo, que já morreu. Na época, o jornal não tinha lancheria, nem cafeteria, nem nada. Então, lá pelo fim da tarde nos assaltava, a todos nós, repórteres e editores, uma fome antiga, como diria o deputado Pinheiro Machado. Por coincidência, mais ou menos nessa hora as luzes da redação eram apagadas por uns 10 segundos para troca de gerador ou coisa que o valha.

Aí, nós gritávamos "pizza".

Sério. Era um grito primevo, ancestral, um grito que vinha da alma, que clamava, também ela, não apenas o estômago, por pizza.

Confesso que fui eu quem começou aquilo. Um dia, as luzes se apagaram e eu, já faminto, aproveitando-me do anonimato da escuridão, gritei bem alto:

- Pizza! Todo mundo riu.

No dia seguinte, repeti: - Pizza!

E os outros ecoaram: - Pizza! Pizza! Pizza!

Tornou-se uma tradição. Sempre que as luzes se apagavam, ou, às vezes, mesmo que não se apagassem, alguém gritava:

- Pizza!

Não era uma reivindicação. Não era um protesto. Era mais uma forma de expressão, praticamente uma manifestação artística:

- PIZZA!!!

Eu era repórter especial. Assim, estava sempre fazendo matéria na rua. Por isso, podia ir às bancas do centro no meio da tarde, e ia a fim de evitar, exatamente, a fome do anoitecer.

Contei a história do meu lanche naquelas banquinhas dia desses, no Timeline Gaúcha. Causou rotunda repercussão a minha história, devido ao cardápio. É que eu pedia o seguinte: uma fatia de pão caseiro de dois dedos de espessura, encimada por uma camada de schmier e outra de nata, tendo sobre elas, dispostas lado a lado, rodelas de salsichão. Para acompanhar, uma caneca generosa de café com leite.

Oh, como era bom!

O café da tarde, já disse e repito, é um hábito civilizatório que nós perdemos miseravelmente.

Havia outra razão para eu gostar tanto daquela composição aparentemente contraditória, schmier, nata e salsichão. É que lembrava do meu avô, o velho sapateiro Walter, que, como bom representante da colônia alemã, adorava misturar doce com salgado nas refeições.

Assim, encostado no balcão de um dos quiosques do centro de Novo Hamburgo, eu desferia uma decidida dentada no pão e me vinha à memória a imagem do meu avô sentado à mesa do jantar, diante de um prato de comida fumegante e aromático. A minha avó, então, fazia aterrissar ao lado dele uma compota de pêssego ou figo em calda que ela mesma havia preparado. O meu avô abria o vidro, metia lá dentro uma colher e colhia o caldo doce, que espalhava sobre o arroz. Eu ficava fascinado, olhando aquilo. Um dia, experimentei. Bem. Não posso dizer que seja o meu prato preferido, mas ruim não é.

Em todo caso, eu mesmo, com minhas próprias mãos, inventei uma iguaria que mistura sabores doces e salgados e, como sou generoso, vou partilhá-la com você. É simples de fazer. Porém, como diria Da Vinci, a máxima simplicidade é a máxima sofisticação.

Vamos lá. Ingredientes:

Bananas

Canela em pó

Manteiga

Queijo gouda

Modo de preparo

1. Arranque do cacho quatro bananas, de preferência já maduras e no entanto ainda douradas, como se apresenta hoje a Jennifer Aniston.

2. Amasse as bananas criteriosamente com um garfo.

3. Coloque a frigideira no fogo e, sobre a superfície da frigideira, um tablete de manteiga do tamanho de uma caixa de fósforos Pinheiro.

4. Quando a manteiga estiver derretida, acrescente a banana. No momento em que ela estiver da cor do chope que é servido no Posto 6 de Copacabana, polvilhe a canela.

5. Em seguida, cubra a banana com finas fatias do queijo gouda e misture docemente, para fazer com que o queijo derreta.

6. Espalhe sem pejo ou economia esse amálgama sobre uma fatia de pão.

7. Coma com café preto.

8. De nada.

Depois de experimentar essa guloseima que lhe dou de presente, faça uma saudação ao meu avô, aos quiosques do centro de Novo Hamburgo e a todo aquele para quem basta uma boa refeição para ser feliz.

DAVID COIMBRA


16 DE NOVEMBRO DE 2019
MÁRIO CORSO

Cão de raça ou vira-lata?

Nem todos que gostam de cachorro gostam de cães de raça. Existe uma tensão entre os cinófilos sobre o tema. Eu sempre me mantive neutro. Gostava das incríveis variações que foram feitas a partir do primeiro lobo domesticado. Através dos criadores, a plasticidade genética mostra toda a sua possibilidade. Dá para acreditar que um mastim e um chihuahua partilham a mesma carta genética?

Mas, quando saímos da estética e paramos para pensar no custo em sofrimento animal do nosso prazer em fabricar raças, o pêndulo vai para o outro lado. Claro, existem feitos maravilhosos, não é qualquer cão que pode ser guia para deficientes visuais. Uma seleção e um trabalho incrível aconteceram nesse e em outros casos.

Minha questão é outra, por exemplo, as pernas curtas dos dachshunds, resultado de uma má-formação na estrutura óssea advinda de cruzamentos endogâmicos. Geralmente na meia-idade, eles têm sérios problemas de coluna. Bem o contrário, em outras raças, o alongamento das pernas pode resultar em displasia coxofemoral precoce.

Ou seja, vale a pena o sofrimento pelo prazer estético de obter uma criatura bizarra? Para termos animais de bolso, que cabem em qualquer apartamento, vale miniaturizar nossos companheiros de planeta para serem bibelôs vivos?

Ainda, você já se perguntou por que cachorro de raça dá muito mais veterinário do que o vira-lata? Porque o outro lado dos cruzamentos consanguíneos é aumentar as chances das doenças recessivas, que todos os animais portam, mas o acaso genético dissolve.

Quem compra cachorros de raça raramente sabe que pode estar comprando a fixação de uma deformação genética. Alguns animais só existem pela teimosia dos criadores e são inviáveis para a vida sem cuidados veterinários. Na juventude já começam os problemas, como se fossem precocemente velhos, são cardiopatas, respiram mal, possuem incontáveis problemas de pele, otites crônicas, corrimento lacrimal persistente, epilepsia, diabete, torção estomacal, enfim, a lista é longa... Você não compra um cão, e sim um mico. É cara para todos a ideia de parecer chique que o cachorro de raça supostamente emprestaria.

Não vamos generalizar, existem raças que foram planejadas por aptidões específicas, como as que trabalham no campo ao lado do homem, por exemplo, que levam uma boa vida e não perderam a necessária rusticidade natural. Minha crítica endereça-se às raças de cães de companhia.

Quando for a vez do próximo mascote, pense no bem-estar do seu amigo peludo, e em seu bolso, que vai alimentar a cadeia de cuidados que ele vai exigir. Reflita se não vale mais a pena adotar um cãozinho que teve a sorte de receber genes misturados, portanto mais chance de estar longe da nossa brincadeira de ser Deus e editar a vida.

MÁRIO CORSO


16 DE NOVEMBRO DE 2019
TE MOSTRA RIO GRANDE

Estância amplia ramo de atuação e investe em vinícola sustentável

A cada geração da família Pötter, Guatambu aposta em transformações sem deixar de lado a tradição que move os negócios.

De Dom Pedrito, no coração da Campanha, vem uma lição: inovação rima com tradição. Aos 67 anos, o Grupo Guatambu começou em uma aposta na agricultura, abraçou a pecuária e, chegando à terceira geração da família de Valter Pötter, hoje investe em vitivinicultura e sustentabilidade.

- Sempre tivemos foco na inovação e na diversificação, buscando qualidade. Nós temos mais de mil prêmios na agropecuária, sustentabilidade, produtividade, rentabilidade - diz Valter Pötter, empresário de 70 anos, sócio-proprietário e administrador do grupo.

Na década de 1950, quando o pai de Pötter começou o trabalho na terra, o foco era a produção de arroz. Quando assumiu o comando da fazenda, em 1971, Pötter, recém-formado em Veterinária, inovou implantando a pecuária. Hoje, a Guatambu é referência em rebanhos das raças Hereford e Braford.

No sistema de rotatividade no campo, que integra lavoura e pecuária, a Guatambu também é pioneira. A meta é tirar o melhor do que a terra tem para oferecer em todos os períodos do ano.

- Não tenho dúvida de que a diversificação no campo é um dos fatores muito importantes para a gente ter sucesso, porque, se um produto não está bem, tipo o arroz hoje, o soja está bem, está valendo bem - explica.

Familiar

Valter administra o negócio em parceria com a esposa, Nara, e com as filhas Gabriela, Raquel e Mariana. E a terceira geração da família já está deixando sua marca na Guatambu. Em 2003, deu início ao projeto de plantação de uvas viníferas, aposta baseada em estudos que apontam a região da Campanha como excelente para produção de uvas, em função do clima e do solo.

Em 2009, o primeiro vinho produzido já mostrava que a aposta tinha dado certo. O sucesso de vendas do vinho e a quantidade de medalhas que o rótulo ganhou serviriam de incentivo para ampliar a ideia. Em 2013, começava um novo projeto: o enoturismo, com a inauguração da Guatambu Estância do Vinho. Hoje, a marca já é reconhecida e se destaca em salões e concursos pelo mundo.

- A vinícola oferece serviços à clientela, ou seja, piquenique, almoço harmonizado, cursos de harmonização, isso cada vez mais atrai clientes e nos deixa mais entusiasmados - afirma Pötter.

ROBERTA MERCIO


16 DE NOVEMBRO DE 2019
FLAVIO TAVARES

O TRAMPOLIM

Governar é ato de confiança mútua, seja qual for o tipo de governança. Numa casa ou escola, no trabalho e em qualquer atividade humana, governantes e governados estão unidos por um objetivo comum. Podem divergir quanto ao modo ou a forma, e até reclamar ou divergir, mas confiam entre si.

O poder político, porém, quebrou essa norma de confiança e convivência. Surgiram diferentes déspotas governando contra os governados e até impondo o terror. Hitler, Stalin e as ditaduras sul-americanas foram modelos de horror no século 20.

Nas democracias como a nossa, no Brasil, é comum o governante destruir a confiança recíproca e impor regras de vida aos governados. Os que mandam (sejam presidentes, governadores ou, até, prefeitos) imitam os velhos reis absolutistas ou os recentes ditadores e jogam no lixo a regra básica da convivência democrática - a confiança recíproca.

Agem como se o povo fosse um monturo de lixo apodrecido. Com pose de justos, impõem modos e estilos que perpetuam a ignorância, cultivando e expandindo a violência.

Os anos de Lula-Dilma (com o PT escorado na voraz "base-alugada" do MDB de Temer e do PP de Maluf) abriram as portas à corrupção. A frase de Lula - "nunca os bancos lucraram tanto" - gabava-se do que devia sentir vergonha. As migalhas da "Bolsa Família" (R$ 80 por filho) eram confundidas com riqueza.

O vice-reinado de Temer & Cia. notabilizou-se pela correria. Exemplo do "corre-corre, senão o bicho pega", foi o assessor presidencial Rocha Loures, filmado pela Polícia Federal na rua, correndo com uma mala com R$ 500 mil, parcela inicial da "ajuda" de R$ 20 milhões destinada ao vice-rei.

Neste horror, o candidato que pregava a violência e, com dedos e braços, imitava revólver e fuzil "contra os bandidos" elegeu-se presidente da República.

Agora, no 15 de Novembro, 130 anos da República, foram exatos 10 meses e meio do novo governo. O modo de governar saiu do esboço e virou realidade, mas parece, até, que voltamos à monarquia.

Quem governa é "a família real". Ou a prole, com os três filhos-homens à frente, pois no quarto (como disse o próprio Bolsonaro) "o pai fraquejou e veio mulher"...

A intolerância começou com o lulismo-petista, mas virou visão fanática com o bolsonarismo. E (já disse aqui) o fanatismo permite tudo. Quanto mais cruel, sibilino e perverso for, mais a cegueira fanática se regozija.

A soltura de Lula mostrou que a prisão só lhe serviu para copiar o que Bolsonaro tem de pior, nunca para meditar e pensar num país sem ódio, construído por todos. O torneio de palavrões entre ambos culmina, agora, com Bolsonaro mudando de partido de novo, pela quinta ou sexta vez, como se trocasse cueca ou camisa suada.

Ou como se partido fosse trampolim para o poder único do chefão, como Hitler e Stalin?

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES

16 DE NOVEMBRO DE 2019
OPINIÃO DA RBS

MAIS PRAGMATISMO, MENOS IDEOLOGIA

Um dos diferentes aspectos positivos a se extrair da reunião de cúpula do Brics, que transcorreu sem percalços, é a sensação de que o governo Bolsonaro começa a se portar de maneira mais pragmática quando o assunto são as relações exteriores com parceiros comerciais importantes ou de grande potencial. Foi assim na visita do presidente Jair Bolsonaro à China, em outubro, e a postura se repetiu no encontro realizado em Brasília, que reuniu também os líderes de Rússia, Índia e África do Sul. Chineses e russos, como se sabe, estão no lado oposto das crenças ideológicas do atual inquilino do Palácio do Planalto. Mas questões comerciais e estratégicas, pelo jeito, vêm prudentemente falando mais alto e ganhando espaço de bravatas.

Como anfitrião, Bolsonaro seguiu os protocolos. Não se ouviu nada sobre comunismo, globalismo, climatismo ou planos mirabolantes do Foro de São Paulo. Nem publicamente emergiu qualquer desconforto em relação às posições diferentes sobre as questões que envolvem, no continente, Venezuela e Bolívia. Tratou-se de negócios e integração e, ao final, uma declaração conjunta que abordou apenas conflitos distantes do Brasil, a defesa do multilateralismo e a condenação a protecionismos. A reivindicação de Bolsonaro de que o Novo Banco de Desenvolvimento, a instituição financeira do grupo, deveria aportar mais recursos no Brasil é justa e não é motivo de qualquer controvérsia.

É de se ressaltar que, apesar de reiteradas manifestações do presidente de apreço aos Estados Unidos e a Donald Trump - até um pouco ausentes nas últimas semanas -, o governo vem se comportando bem em tentar fortalecer os laços com a China e manter-se distante do conflito entre Washington e Pequim. Que, aliás, ainda deve ir longe. Além de ser o principal cliente dos embarques do Brasil, a China acaba de colocar à disposição do país US$ 100 bilhões em capital para financiar a melhoria da precária infraestrutura nacional.

No grupo de países que forma o Brics, há potencial para elevar substancialmente as exportações para a Índia. Assim como a China, é uma nação que vê sua economia crescer de forma acelerada nos últimos anos. As projeções da ONU indicam, inclusive, que a população indiana será maior do que a chinesa até 2027. Ao mesmo tempo, a África do Sul pode ser a porta de entrada para uma maior inserção no continente africano, que, a exemplo da Ásia, seguirá com forte aumento no número de habitantes nas próximas décadas. O que não deve significar, por outro lado, qualquer desleixo na busca por estreitar conexões com a Europa e os Estados Unidos. Quanto mais plurais e pragmáticas forem as relações brasileiras, melhor. 

Editado por: Suzete Braun ? 3218-4317 leitor@zerohora.com.br ? Instagram@gauchazh ? WhatsApp (51) 99667-4125 Facebook facebook.com/gauchazh ? Twitter@gauchazh
OPINIÃO DA RBS


16 DE NOVEMBRO DE 2019
MAIS ECONOMIA

Ensino de apps

Criada em junho passado, a escola Ctrl+Play pretende intensificar sua atividade em Porto Alegre a partir do reinício do ano escolar, em março de 2020. É focada no universo digital, com ensino de robótica e programação para computadores. Ensina a criar softwares, aplicativos, jogos e vídeos. Resultado de R$ 400 mil em investimento, é uma franquia da empresa fundada em 2015, em Campinas (SP), pelo engenheiro de computação Henrique Nóbrega, hoje com cerca de 2 mil alunos no país.

A visita dos Embaixadores dos países da União europeia ao Estado ocorre de 4 a 8 de Dezembro. O objetivo é falar de projetos bilaterais, perspectivas de ampliação dos contatos comerciais e de cooperação em diversos setores.

R$ 2,7 BI

é o valor corrigido da dívida da Avianca Brasil, que teve falência recomendada à Justiça pela atual administradora judicial Alvarez & Masal , porque o plano de recuperação judicial não seria viável.

CRISE? QUE CRISE?

A Construtora Tedesco, que ergueu o novo prédio de internação do Hospital Moinhos de Vento, agora vai ampliar o Bloco C, que terá duas novas ressonâncias magnéticas e emergência cardiológica. O prazo de entrega é maio de 2020.


O hub de soluções G5 e a DBServer, prestadora de serviços de convergência, uniram-se para criar o Gtech/DB Innovation Lab. Vão atuar em pagamento móvel e "self checkout" (autopagamento).


A Vento Sul Turismo inaugurou na quarta-feira sua terceira unidade em Gramado, o Colina Lagos Hotel.

A SEMANA QUE EU VI

KINDER OVO

Deveria ser a resposta do governo ao principal problema do Brasil, o desemprego. Mas a Medida Provisória 905, que permite dar vagas mais baratas a jovens de 18 a 29 anos, tem 70% de seu texto voltado para mudanças na CLT. Também subsidia empresas com desconto no seguro-desemprego.

ICMS E COLAPSO

Capítulo tenso na novela da cobrança antecipada de ICMS: donos de revendas de carros estariam sob risco de "colapso" por não poder compensar descontos a clientes. Segundo a Fazenda, como o segmento já tem corte de alíquota, de 18% para 12%, não tem direito mesmo. Há novo impasse.

EFEITO 'VECINOS'

Só com a queda do presidente da Bolívia, Evo Morales, os conflitos na América do Sul impactaram o mercado financeiro nacional. Um motivo é a renegociação do fornecimento de gás, suspensa à espera do sucessor oficial da autoproclamada presidente, Jeanine Áñez (foto).

SPRINT DO PIB?

Bons resultados de setembro - serviços com alta de 1% ante agosto, varejo com avanço de 0,7% na mesma comparação, e a alta de 0,44% no IBC-Br - provocaram uma rara onda de revisões positivas para o PIB de 2019. A melhora de cenário para o final do ano se estendeu às projeções para 2020.

MARTA SFREDO

16 DE NOVEMBRO DE 2019
RODRIGO CONSTANTINO

República de mentirinha

Talvez o leitor ainda esteja de ressaca por conta do feriado dessa sexta, mas caberia dedicar uns minutos à reflexão sobre mais este aniversário da proclamação de nossa suposta República. O presidencialismo no Brasil nasceu com um golpe militar positivista que derrubou a monarquia e proclamou a República em 15 de novembro de 1889. Desde então, tivemos sete Constituições, vários golpes, inúmeros escândalos de corrupção e dois casos de impeachment.

Digo suposta República pois uma República de verdade pressupõe o império das leis isonômicas, a "coisa pública" separada da mafiosa "cosa nostra" que trata o Estado como um puxadinho familiar, uma extensão de casa, bem ao estilo patrimonialista. Em outras palavras, exige um governo de leis, não de homens, ou seja, República não combina com arbítrio. E poder arbitrário é tudo o que vemos em nosso país.

No livro A História das Constituições Brasileiras, o historiador Marco Antonio Villa disseca os maiores absurdos das várias Constituições que tivemos. Na sua apresentação, a síntese é perfeita: "Não é exagero afirmar que os últimos 200 anos da nossa história têm como ponto central a luta do cidadão contra o Estado arbitrário. E, na maioria das vezes, o Estado ganhou de goleada".

Os britânicos sabem que a liberdade não vem de graça. Sua Carta Magna data de 1215 e impôs restrições ao poder do monarca. A América foi fundada como uma legítima República, protegendo direitos individuais dos cidadãos, contra o risco de "tirania da maioria" alertado por Tocqueville.

Já no Brasil, temos um presidente do Supremo Tribunal agindo como uma espécie de imperador absolutista, fora tantos outros abusos de poder por parte da classe dirigente. Roberto Campos escreveu: "Continuamos a ser a colônia, um país não de cidadãos, mas de súditos, passivamente submetidos às ?autoridades? - a grande diferença, no fundo, é que antigamente a ?autoridade? era Lisboa. Hoje é Brasília".

Está mais do que na hora de a população acordar para este lamentável fato, e passar a exigir mais respeito da elite governante. São nossos servidores, não nossos mestres ou senhores!

RODRIGO CONSTANTINO