segunda-feira, 26 de outubro de 2020


24 DE OUTUBRO DE 2020
LEANDRO KARNAL

A PACIÊNCIA DA JÔ

Jossylmara nasceu detestando seu nome. Soletrou a vida toda, enfrentou bullying na lista de chamada da escola e, por fim, dia após dia, chegou aos 23 anos sem conseguir responder por qual ódio especial à vida seus pais tinham lhe dado aquele nome. Assumiu-se Jô. Evitava a vogal aberta porque tinha ojeriza a uma vizinha que adotara o Jó como apelido.

Jô tinha crescido infeliz. Era uma insatisfação geral consigo e com o mundo. Tudo era desmedido para ela; ou era pouco (pouca renda, pouca estatura) ou muito (muito trem e ônibus, muita barriga). Seguiu a vida esperada e conseguiu concluir o Ensino Médio. Jô ouvira do pastor que precisava ter a paciência que seu nome indicava na Bíblia. Ela duvidou que houvesse alguma profetisa com o nome que a incomodava. "Deus dá e Deus tira, bendito seja o nome do senhor", citou o líder religioso. Amarga, Jô voltava para casa retrucando: "De mim, só tirou".

A corte celeste está reunida. Satanás chegou sem convite diante do Todo Poderoso. Vangloriou-se dos seus muitos seguidores pelo mundo e anunciou novos planos de expansão de mercado. Deus mostrou-lhe um poço no qual se via Jô voltando para casa e reclamando. "Você consegue derrubar o mais elevado sonho e desgastar a fé mais robusta. Já imaginou tentar fazer feliz essa mulher?". O demônio gostava de desafios. Tinha ouvido no RH do Inferno que precisava sair "da caixinha", que estava muito acomodado nos últimos 40 mil anos no mesmo lugar. Por tédio ou para irritar o Arcanjo Miguel que se postava ao lado do Pai, aceitou. Jô seria uma mulher feliz.

Resmungando como de hábito, Jô desceu do ônibus e, sem perceber, uma mão diabólica a empurrou na frente de um carro de luxo. Calma, queridas leitoras e estimados leitores. O diabo escreve errado por linhas retas. O carro bateu de leve na infeliz e ela caiu. O motorista era um jovem afortunado e, algo raro, recolheu a jovem e a levou ao hospital particular mais próximo. O pai do rapaz era candidato a prefeito e achou que o caso poderia ser um obstáculo à pretensão política. Quando Jô despertou no leito de um quarto privado, viu-se cercada de flores e afetos. Dr. Diogo, o zeloso candidato, tinha pedido que aproveitassem a inconsciência da jovem para restaurar os dentes que ele supunha quebrados no acidente. Na verdade, eram ruins antes, mas Jô foi aceitando sem questionar. A comida do hospital era balanceada e a paciente perdeu bastante peso com fisioterapia. Tinha saído do hospital com uma boca nova e com corpo muito melhor do que entrara. A família do político ofereceu uma pensão e uma viagem para ela descansar do incidente. Supunham que ela processaria a todos. Jô ia aceitando tudo, dizendo obrigados, sem saber que a mão do demônio estava ali, arranjando aquela ventura.

A viagem de Jô foi um impacto. Pela primeira vez ela pegou um avião e viu o mundo. A rotina da pobreza era um torpor, e ela tinha despertado. Descobriu-se ávida de saber. Tinha sido aluna indolente. Era, agora, um prodígio de leitura. O peso perdido no hospital virou uma meta de vida. Treinava diariamente correndo. Os museus foram visitados com sofreguidão. Os cremes do hotel tinham revelado uma pele excelente que apenas se ressentia de um histórico de ausência de cuidados. Voltou ao Brasil dois meses depois. Era uma nova mulher. Como a situação política do segundo turno ainda não tinha se definido, a família do candidato ofereceu a ela um flat nos jardins e uma renda. Tudo era para calar a nova e radiosa boca da vítima. Para selar a felicidade de sua nova protégée, o Diabo inspirou aos advogados do candidato que a situação era delicada e a oferta deveria ser maior.

Meses após o empurrão diante do carro de luxo, ela era outra pessoa. Quem a visse selecionando um vinho nunca imaginaria, magra e sorridente, a moça infeliz de há pouco. O seu mentor infernal não cansava de contar vantagem nas reuniões da firma celeste. Na convenção do fim do ano, o Demônio apresentou o case de Jô com um power point maravilhoso. Foi aplaudido de pé até por Santo Antônio. Deus, CEO de tudo, sorria com certa ironia quase cansada.

A jovem explodia de felicidade. Desejava mais viagens. O corpo estava ótimo, porém poderia melhorar. Tinha conseguido um emprego ótimo. Já nem precisaria da mesada do candidato. Ao deitar a cabeça na fronha de mil fios, Jô começara a imaginar a vida passada. Insinuou-se uma dor: "E se eu voltar a ser pobre e feia de novo?". Afastou a ideia e tentou conciliar o sono... que não veio. Sabia o horror de ganhar o suficiente para chegar ao fim do mês. Trabalhar sem parar e obter o mínimo. Olhou no espelho do banheiro e viu seu novo rosto com dentes perfeitos e se lembrou de tudo. Aquilo era uma máscara. Seu rosto antigo continuava lá sob todos os disfarces. Foi a primeira vez que ela notou que a felicidade tinha sido rápida demais e que o risco de tudo retroceder era real. Chorou muito, como nunca tinha chorado. Era infeliz antes do acidente, porém, sem muita consciência. Agora, era desesperadamente infeliz. Tinha experimentado tudo o que desejava e o medo explodira com a nova fase. Entrou em crise. Desenvolveu síndrome de pânico. Não conseguia mais sair à rua com medo de perder o que tinha conseguido. Temia a velha aparência que dormia sob a capa dourada da nova.

Jossylmara renasceu deprimida. Olhando, invisível, Satanás também estava intrigado. Ele ajudara em tudo. Sondava os anseios dela e atendia. Era bom nisso. Estava tão absorto na análise da depressão de Jô que não percebeu que Deus tinha vindo ao quarto. "Eles aceitam tudo, meu caro, menos a felicidade. Venho tentando desde o Éden..." O Diabo concordou. Voltou a fazer o mal que era algo mais natural e bem aceito. Possuiu mais pessoas, afastou casais e levou muita gente ao vício. Era temido, e todos achavam aquilo natural. Os irmãos de Jô a retiraram do quarto do flat em crítico estado depressivo. Ao retornar ao casebre, ela sorriu pela primeira vez em semanas. "Deus dá e Deus tira, bendito seja o nome do Senhor", sussurrou. É preciso ter a paciência e a esperança do Jó bíblico para as agruras deste mundo...

 


24 DE OUTUBRO DE 2020
FRANCISCO MARSHALL

OS DOIS PARTIDOS 

Em que pese termos hoje 33 agremiações políticas registradas no Brasil, em todo o mundo e desde sempre, no fundo, são apenas dois partidos: do egoísmo e da empatia. O partido egoísta, evidentemente, não se declara como tal, mas o exame da natureza, dos meios e das finalidades políticas esclarece melhor do que quaisquer alegações ou fachadas. Em última instância, que é também um fundamento, ergue-se a pergunta: a ação política visa ao interesse particular ou ao bem comum? Ganhos privados ou interesse público? Benefício de um grupo ou classe ou harmonia social? A sobrevivência e a qualidade de vida de poucos ou de todos?

A democracia, melhor fruto de nossa cultura política, foi o resultado de tensão social gravíssima, vivida na Grécia arcaica (séculos VII e VI a.C.) com muitos conflitos e guerra civil, o que exigiu das cidades soluções políticas que pusessem fim à violência. Isso ocorreu quando enfrentou-se uma aristocracia que se amparava no mito para justificar qualidade superior e na posse da terra e das armas para afirmar supremacia. A filosofia, que floresceu naquela época, desmascarou as farsas do mito e apontou caminhos matemáticos e jurídicos para a análise do mundo e para pactuações expressas em leis (nomoi). A sobrevivência da pólis só seria possível com o recuo dos grupos privilegiados em favor de um povo cada vez mais numeroso, relevante e carente. Prosperaram então, em Atenas, homens como Sólon (638-559 a.C.), Pisístrato (607-527 a.C.) e Clístenes (570-492 a.C.), três gerações de líderes que, em que pesem diferenças, agiram para benefício da classe a que não pertenciam, o povo (demos).

No apogeu da democracia (séc. V a.C.), essa linhagem chegou a Péricles (495-429 a.C.), filho da mais tradicional família de Atenas, os alcmeônidas, mas que liderava a luta por benefícios para o povo. Na pólis não havia partidos políticos, mas a aristocracia tradicional mobilizou-se e usou de todos os meios, inclusive violência assassina, para combater democratas; Efialtes, parceiro de Péricles, pereceu em uma emboscada, em 467 a.C.. O grupo aristocrático passou todo o século V a.C. atacando a democracia e, quando pôde, em uma crise durante a Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.), tomou o poder por meio de golpe, em 411 a.C., e promoveu pavorosa matança. Foi difícil a recuperação da democracia, diante de um grupo egoísta, que demonstrou não concordar com aquele regime.

Sabe-se que há na natureza muitos organismos que atuam com empatia, de modo a assistir a espécie com esforço ou sacrifício individual. A sobrevivência da humanidade é fruto de sua ação coletiva, em sociedade, com o difícil primado da empatia sobre o egoísmo, por meio de lutas e opções políticas. Em nosso mundo e neste Brasil de iniquidades inaceitáveis, já passou da hora de perceber-se que a luta dos que precisam requer a sensibilidade dos que podem e que a rainha das ideologias egoístas, a liberal, é uma chaga contra a harmonia social.

Claro que mundo melhor é possível, quando a lucidez guiar nossas opções, e vivermos a graça da democracia.

FRANCISCO MARSHALL

24 DE OUTUBRO DE 2020
COM A PALAVRA

AS FEIRAS LITERÁRIAS DEVEM ESTAR ATENTAS AO QUE OCORRE NO MUNDO

JEFERSON TENÓRIO - Escritor, 43 anos

Autor de "O Avesso da Pele" (Companhia das Letras, 2020), entre outros livros, e patrono da 66ª Feira do Livro de Porto Alegre, que terá início na sexta-feira

Jeferson Tenório é mais do que um patrono. É também o símbolo de uma mudança que a Feira do Livro de Porto Alegre quer inaugurar a partir da 66ª edição do evento, que terá início na próxima sexta-feira, dia 30, estendendo-se até 15 de novembro, com atividades online. Autor de três romances, é o mais jovem escritor escolhido para o posto - e o primeiro negro a ocupar a posição. A opção por Tenório demonstra uma tentativa dos organizadores de realizarem uma Feira alinhada com temas do debate público contemporâneo, como racismo e representatividade. E também valorizar o trabalho de quem vem renovando a literatura com qualidade e consistência. Nesta entrevista, Tenório fala de suas expectativas como patrono e compartilha experiências de sua trajetória como professor e romancista.

Como foi receber a notícia ter sido escolhido patrono?

Foi uma surpresa. Em primeiro lugar, pela importância do posto, mas também pelo perfil, que costuma ser de uma pessoa mais velha, com muitos livros publicados. Geralmente também seria uma pessoa branca, de determinada classe social. Porém há tempos a Feira vinha sofrendo algumas críticas, inclusive de minha parte e de vários outros escritores, não só pela questão de representatividade, mas também por sua estrutura dos últimos anos.

Você avalia que é um momento de mudança para a Feira?

As feiras literárias hoje devem estar atentas ao que ocorre no mundo. Não podem fazer uma programação à parte disso. Foi de grande inteligência a organização aproveitar o momento e provocar uma mudança bastante significativa e simbólica, primeiro por ter uma feira online, e depois por ter mesas, convidados e discussões com grande representatividade. Então acho que seria de fato coerente escolher um patrono negro, pois sabemos que, nessas 66 edições, eu seria o primeiro.

Você é também o patrono mais jovem.

Sim. A escolha tem a ver com a qualidade do trabalho, e não necessariamente com a quantidade de livros lançados. Recebi o convite com muita felicidade. Se fosse em outros anos, eu não seria escolhido, devido à estrutura que estava montada, e talvez eu também não me sentisse confortável em ocupar esse espaço dentro de uma estrutura com a qual não concordava. Agora temos uma curadoria muito bem pensada pela Lu Thomé, dentro de um contexto importante e simbólico. Por isso, fico surpreso, mas ao mesmo tempo muito feliz por estar fazendo parte dessa mudança.

Sua escolha como patrono aponta uma busca por representatividade por parte da organização da Feira. mas essa pode não ser uma conquista definitiva. Você não tem receio de que esse espaço possa voltar a ser silenciado?

Quando pessoas negras ocupam determinados espaços pela primeira vez, algumas pessoas dizem que isso não deve ser ressaltado, como se ressaltasse o racismo. E também há quem pense que, por uma pessoa negra ter chegado a esse espaço, o racismo terminou. Isso é muito perigoso. Podemos dar um passo atrás justamente por achar que o jogo já está ganho e não é mais necessário discutir o tema. Avançar no debate é naturalizar pessoas negras nesses espaços. Quero ver chegar o dia em que não será preciso dizer qual é a cor do patrono, mas a cor do patrono ficou 65 anos sem ser dita. Enquanto houver essa discrepância de ocupação de espaço, ainda será importante frisar isso.

Você disse que os eventos literários precisam estar atentos ao debate público. A polêmica em torno da escolha da poeta norte-americana Elizabeth Bishop para a festa literária de paraty (Flip), que gerou o pedido de demissão da curadora, poderia ter sido evitada, caso houvesse esse tipo de atenção?

Com certeza. A curadoria estava alheia ao que ocorria. A escolhida é uma grande poeta, sem dúvida, mas faltou um timing de olhar o contexto e perceber que havia outras demandas. Acredito que, com a pandemia, a Câmara Rio-grandense do Livro (CRL) colocou uma lupa sobre essa estrutura que já não vinha dando certo.

Como se deu sua formação de leitor?

Comecei a escrever antes de ser leitor. Escrevo diários desde os 13 ou 14 anos. Aos 18, escrevi uma novela, com cerca de 200 páginas em folhas de ofício. Mas minhas referências não eram literárias, e sim de novelas televisivas. Então fiz ali um texto muito ruim, mas que lembrava essas novelas que eu assistia. Me torno leitor quando entro para a faculdade de Letras, com 23 ou 24 anos. Não fazia a mínima ideia do que se estudava lá. Ao entrar no curso, fui apresentado a um novo mundo. No primeiro semestre, tive que ler a Odisseia e Dom Quixote em uma disciplina. Rodei. No segundo, entrei com a ideia de que precisava recuperar tudo que havia perdido como leitor.

Foi quando começou a montar sua própria biblioteca?

Sim. Entrei em um frenesi de comprar livros. Virei um rato de sebo. Eu era office boy de um escritório de advocacia. Todo dinheiro que recebia, comprava livros, em vez de pagar a faculdade. Fiquei um ano e meio fazendo isso, até que um dia me chamaram na secretaria e me disseram que eu tinha de pagar o que estava devendo. Então tranquei o curso fiz vestibular na UFRGS. Passei e descobri mais um novo mundo, o da pesquisa, e fui refinando minhas leituras.

Você é a primeira pessoa da família com um curso superior?

Sim. Depois teve minha irmã, que se formou em Fisioterapia. Sou natural do Rio de Janeiro. Vim para Porto Alegre aos 13 anos, com minha mãe. Ela chegou desempregada, depois trabalhou como auxiliar de serviços gerais na Trensurb e como diretora de um creche. Mais tarde, tornou-se cartomante e tem um centro de umbanda.

A religiosidade de matriz africana está presente no seu livro Estela Sem Deus. Hoje, há revisões da história do Brasil e do Rio grande do sul que resgatam o protagonismo dos negros. No entanto, talvez ainda falte uma revisão mais subjetiva, ligada à cultura.

Estela Sem Deus é a busca dessa religiosidade de matriz africana, principalmente no Rio Grande do Sul, onde há inúmeras casas de umbanda. É uma situação bastante exótica, porque as pessoas procuram as casas de religião, mas não gostam de dizer que as frequentam. Isso é algo muito estranho. Minha mãe costuma receber pessoas que pedem a ela para manter sigilo. Isso diz muito do nosso Estado e de como ele olha para a questão da religiosidade. Aliás, esta é uma questão que está para além da religiosidade. É também uma preservação de cultura. Toda a vez que um rito acontece em um terreiro, é a recuperação de uma cultura que foi violentada por tantos anos. É o momento de presentificar essa cultura, que é tão rica.

o Avesso da Pele, Seu mais novo livro, lançado neste ano, vem sendo celebrado por expor como é ser negro no Brasil. Trata-se de um livro sobre racismo?

Não exatamente. É um livro sobre uma relação entre pai e filho, mas que também sofrem essa demanda nefasta de ter de lidar com o racismo. É talvez o livro mais próximo de mim, como uma espécie de alter ego, embora não seja uma autobiografia, nem uma autoficção. Mas há elementos no livro bem próximos de coisas que eu vivi.

Como você, o protagonista do romance é também professor. Como encara o ofício de educador no Brasil de hoje?

Os professores já apanharam bastante em toda essa história da educação brasileira. O Avesso da Pele é uma espécie de homenagem a esses professores que ficaram até o fim. O Henrique é um personagem que está desiludido com a educação, ele acha que passou 20 anos na escola e nada do que fez deu certo. Mas o fato de ter continuado é uma espécie de redenção, ou seja, ele não desistiu. Vejo assim meus colegas, não só os os atuais, mas os que já tive. São pessoas que não desistiram, que são apaixonadas pelo que fazem. Muitos tiram dinheiro do bolso para fazer coisas para os alunos. É uma profissão muito bonita.

Há quem defenda que clássicos da literatura não sejam lidos por terem sido escritos por homens brancos em posição privilegiada. Como revisar criticamente a história e não abrir mão do que ela tem de bom?

A revisão da história literária é superimportante. A gente consegue trazer de volta vários nomes que não estavam sendo lembrados. Mas também não posso esquecer de que, como professor e escritor, minha formação é ocidental. Se fui criado nesse contexto, é natural que eu lance mãe de escritores canônicos, que fazem parte do panteão de escritores ocidentais. A questão é que essa ideia de excluir uma coisa em detrimento de outra é um pensamento burguês do século 19, de não entender que as coisas podem coabitar. E aí eu me aproximo de um pensamento mais africano, da antropofagia cultural, que é absorver o que há de melhor em cada cultura para que a gente possa se fortalecer.

Como fazer isso em uma sala de aula, com alunos do Ensino Médio, por exemplo?

Por que não levar Proust para meus alunos se a reflexão que ele faz sobre memória é tão importante quanto as reflexões que as mitologias africanas também trazem? Por que não colocar esses autores e culturas para conversar? Quando ofereço uma Conceição Evaristo para os meus alunos, trabalhamos a questão da memória presentificada. Quando levo Proust, a memória é uma tentativa de presentificar o que passou. Ver a literatura exclusivamente de um ponto eurocêntrico ou de outro afrocêntrico pode ser limitador. Prefiro criar uma ponte, um diálogo, para produzir uma terceira coisa, que ainda não sabemos bem o que é.

Como é ensinar literatura para os jovens? Você se sente acolhido ao falar de livros com os alunos?

Já fui mais ambicioso, de achar que formaria um grande número de leitores ao trabalhar literatura. Com mais lucidez, hoje percebo que a literatura tem muita concorrência. Tem muita coisa envolvida antes de o aluno chegar a um livro e perceber que há nele algo de importante. Meu trabalho hoje é apresentar aos alunos os livros e tentar tirar o que há de melhor nas leituras. Minha intenção é que o aluno ao menos olhe para a vitrine quando passar por uma livraria, por perceber que ali há algo de importante. É o que ensinei para o meu filho. A gente janta em frente a uma estante e, a cada garfada, ele tenta ler as lombadas dos livros. Embora ele não entenda muito bem, porque tem apenas 10 anos de idade, percebe que há ali algo de especial. Quando estamos na rua e passamos por algum camelô que vende livros, ele diminui o passo e olha. É o que tento fazer com meus alunos.

QUAL É SUA AVALIAÇÃO SOBRE A SITUAÇÃO DOS PROFESSORES NESTE MOMENTO DE PANDEMIA?

Falo de um lugar privilegiado, por dar aula em uma escola particular. Os alunos têm acesso à internet, têm computador, estão bem instalados em casa. É um contexto diferente do professor que está na linha de frente da guerrilha da escola pública. Dentro do meu contexto, é uma adaptação praticamente semanal. A cada semana me adapto a um modo diferente de dar aulas, por enfrentar problemas que não existiam na aulas presenciais. Mas também é importante dizer que essa experiência ajudou a criar um vínculo com algumas turmas que não havia nas aulas presenciais. Conseguimos aprofundar alguns debates que não conseguíamos antes. Por outro lado, há turmas com pouca gente interagindo. O que eu quero dizer é que a sensação de "vou dar a minha aula e, se eu conseguir que um ou dois prestem atenção, já estou feliz" continua.

Porto Alegre é festejada por ter uma cena literária ativa, com muitos escritores, editores e oficinas. Qual é sua opinião sobre esse cenário?

Nosso meio passou por uma ampliação no que diz respeito aos perfil dos escritores que ganham projeção nacional. A gente tinha, no final da década de 1990 e no início dos anos 2000, determinados tipos de autores, de determinada cor e classe social. Todos muito bons, sem dúvida. De 2010 em diante, começaram a aparecer autores que fogem a esse perfil, mas também têm grande qualidade. Houve um enriquecimento, com novas experiências literárias. E isso é o mais importante, a possibilidade do leitor ter acesso a mais pontos de vistas ficcionais, que de certo modo também contam a história do Rio Grande do Sul.

Pode dar exemplos nesse sentido?

Quando eu tenho um livro do José Falero como o Vila Sapo, tenho a visão de um bairro que ainda não havíamos visto na literatura gaúcha. Se pegarmos o Marrom e Amarelo, do Paulo Scott, há o Partenon e mais uma conjunção de cenários originais. Já o livro do Luiz Maurício Azevedo, A Manipulação das Ostras, trata de Pelotas. Então, há uma série de novos pontos de vista. E também são autores que não vêm de oficinas literárias. Eu mesmo não fiz oficina. Isso não é pior nem melhor, mas demonstra formas diferentes de se formar um escritor. A diversidade é a melhor forma de manter a qualidade literária, em qualquer lugar.

Atualmente, há também uma cena forte slam poetry, que mistura poesia com a linguagem do hip-hop. Esse movimento te cativa?

Sim. Como não fui um leitor na minha juventude, acabei indo para o lado do rap e do hip-hop. Fiz parte até de um grupo, o Magma. Ainda bem que o grupo não foi adiante, porque não éramos bons (risos). Gosto do slam por ter um apelo aos jovens no contato com a palavra. A performance também remonta à ideia de uma africanidade perdida. É a poesia passando pelo corpo. A minha única ressalva é, talvez, o excesso de realidade em alguns momentos. A literatura não aguenta muita realidade. Quando tenho muitos textos próximos da realidade, eles caem em falta de qualidade.

Também podem se tornar repetitivos.

Exatamente. Isso serve não só para o slam, mas para qualquer tipo de texto que se coloca em uma posição de dizer a verdade. Mas não estou dizendo que o slam não tem qualidade. Tem muita coisa boa sendo feita, como os Poetas Vivos, por exemplo, que conseguem equilibrar discurso político e estético.

Como pretende marcar sua passagem como patrono?

Hoje fiz fotos na Praça da Alfândega. Caminhar ali sem a estrutura da feira é uma coisa muito diferente. Não é uma tristeza nem um vazio, mas é estranho. Justamente quando me tornei patrono não haverá esse espaço físico. Mas também penso que há outro ganho dessa Feira online, que é o de chegar a mais pessoas. Minha expectativa é interagir online e prestigiar esses momentos de leitura, reflexão e indicação de leitura. O mais bonito dessa edição da Feira é que ela saiu da Praça e vai entrar nas nossas casas.

ALEXANDRE LUCCHESE

 24 DE OUTUBRO DE 2020
DRAUZIO VARELLA

ATIVIDADE FÍSICA PROTEGE ATÉ CONTRA AVANÇO DO CÂNCER 

Panaceias foram tratamentos tão populares no passado que chegaram até o século 21. O nome deriva da deusa grega que teria o remédio capaz de curar todas as doenças e prolongar indefinidamente a vida humana.

Muitos alquimistas se dedicaram a descobrir uma panaceia que, além dessas características, levasse à miraculosa pedra filosofal, dotada do poder de transformar qualquer metal em ouro. Na Idade Média diversas panaceias foram empregadas para tratar febres das mais variadas origens, tumores, reumatismo, convulsões e muitos outros problemas de saúde.

Nos dias de hoje, no meio do lixo da internet são apregoados tratamentos inacreditáveis: pílulas do câncer, água sanitária para curar autismo e outros males, água oxigenada para tratar câncer e inúmeros chás e infusões que asseguram devolver a saúde a todas as pessoas enfermas. Quando os menos incautos perguntam por que razão os médicos não receitam remédios tão maravilhosos, os charlatães que os prescrevem apelam para a teoria da conspiração: são baratos, portanto lesivos aos interesses dos médicos mancomunados com a indústria farmacêutica, para promover a venda de medicamentos caros.

No entanto, leitor, na medicina moderna existe uma medida que remete às antigas panaceias: a atividade física. Ela protege contra ataques cardíacos, derrames cerebrais, obstruções arteriais, diabetes, doenças respiratórias, câncer em diversos órgãos, problemas articulares, transtornos psiquiátricos, perda de massa muscular, osteoporose, reduz o risco de quedas acidentais e fraturas ósseas na velhice, além de preservar por mais tempo as funções cognitivas.

Acabo de assistir a uma palestra no Congresso Americano de Oncologia sobre o papel da atividade física na redução da velocidade de progressão dos tumores malignos, na resposta ao tratamento quimioterápico e na tolerância aos efeitos indesejáveis provocados por ele.

O mecanismo envolvido é complexo, mas começa a ser elucidado. Por exemplo, está demonstrado que o exercício aumenta a oferta de oxigênio ao coração e aos músculos, altera o metabolismo da glicose e promove a formação de novos vasos sanguíneos. Essas alterações melhoram a circulação, aumentam a oferta de oxigênio e facilitam a penetração dos quimioterápicos e da radioterapia nas células situadas no interior da massa tumoral.

Ao lado dessas alterações, a atividade física interfere com a resposta imunológica. Durante ou logo após o exercício, aumentam na circulação o número de linfócitos e de células NK (Natural Killers, envolvidas na imunidade natural), fenômeno sugestivo de intensificação da atividade imunológica.

Como nem todos os exercícios são iguais, os estudos procuram definir o mecanismo de ação das formas aeróbicas e anaeróbiacs, bem como as implicações terapêuticas da intensidade, duração, frequência e do timing entre a realização da atividade física e a administração do tratamento quimioterápico ou radioterápico.

Está mais do que na hora de vocês, prezados leitores, deixarem a preguiça de lado.

DRAUZIO VARELLA

24 DE OUTUBRO DE 2020
ESPIRITUALIDADE

PAN 

A palavra Pan, em grego, quer dizer tudo. Dela surge o panteísmo, uma filosofia que se torna crença religiosa para alguns. Teísmo vem de Theos, que significa Deus. Para o pPanteísmo, tudo e todos compõem um Deus abrangente e imanente.

Houve um filósofo racionalista, filho de judeus portugueses que fugiram da Inquisição para a Holanda, Espinosa (1632-1677), que escreveu sobre a unidade de todas as coisas, o monismo, defendendo que Deus é substância única e que nada existe fora de Deus.

Monos dá origem à palavra monge ou monja, que significa único ou só.

A leitura do primeiro caractere do meu nome, em japonês, é Co. Esse caractere significa órfão, único, só, monos.

Tudo é um, também escreveu outro filósofo, Nietzsche (1844-1900), que acreditava no não crer nos valores das crenças da época. Segundo ele, o ser humano pode ser livre através da transmutação dos valores tradicionais, criando novos valores. "Não há fatos eternos e não há verdades absolutas.".

No Zen Budismo, uma das vertentes da tradição Mahaiana (Grande Veículo), falamos de "não dois". Alguns autores consideram esse não dois como uma forma de monismo, de tudo ser um, ou de haver a crença de que a Natureza Buda se compararia ao conceito do Deus que é o todo em tudo.

Não dois se refere à nossa capacidade de transcender as dualidades e perceber que se completam: luz e sombra, noite e dia, por exemplo.

Os textos da Sabedoria Completa, deixados por Xaquiamuni Buda (600 anos antes de Jesus), insistem em negar qualquer identidade existencial. Se nada possui uma identidade substancial fixa, permanente e independente, tudo está interligado, mas em constante movimento e transformação. Esse movimento segue a lei da Causalidade, ou seja, causas e condições geram efeitos. O efeito pode ser causa ou condição de outro efeito, formando uma trama de interpenetrações e interrelacionamentos em constante mutação. O que fazemos, falamos e pensamos mexe na trama da vida e acaba retornando a nós mesmos. Imediata ou posteriormente.

Quem compreende isso percebe que estamos intersendo com tudo que foi é e será, logo cuidamos com respeito e dignidade. Não abusamos de nada ou ninguém, respeitamos as sociedades nas quais estamos inseridos, seus valores temporais e procuramos criar harmonia nos relacionamentos.

Mas a impermanência ser permanente não é desculpa para criarmos sofrimentos, desavenças, rancores, tristezas para que possamos ter um prazer temporário e fugaz. Reflitam.

Hoje, a palavra Pan tem sido usada para identificar pessoas que amam tudo e todos: árvores, insetos, animais, seres humanos. Alguns declaram que sendo Pan não podem se fixar em um único relacionamento, pois seu amor e atração por todas as formas de vida (e talvez de morte também) não pode ser cerceado. Assim, se você espera ter um relacionamento com uma pessoa que se declara Pan, lembre-se: não haverá voto de fidelidade nem de continuidade.

Budismo não é panteísta nem monista. Budismo se baseia em sunyata, no vazio dos cinco agregados, em nada fixo ou permanente.

Budistas fazem alguns votos, entre eles o de manter relações sexuais corretas - isso significa seguir os acordos legais de um país, os valores culturais e éticos de uma sociedade, os acordos feitos entre casais, comunidades, mantendo sempre o compromisso de nunca fazer o mal, não provocar desagravos e tristezas, sempre fazer o bem a todos os seres.

Mãos em prece

MONJA COEN

24 DE OUTUBRO DE 2020
J.J. CAMARGO

A SOLIDÃO DOS AVÓS 

O envelhecimento biológico traz uma desaceleração inevitável no ritmo da vida associativa, o que diminui o ímpeto para a comemoração vadia e estabelece uma priorização, algumas vezes rabugenta, do que é realmente importante.

O cansaço mais fácil nos deslocamentos, a falta de colaboração dos joelhos, a audição prejudicada, a intolerância com quebras de rotina e a irritação com o improviso já tornavam o nosso velhinho um sério candidato ao distanciamento social, muito antes que isso se tornasse uma recomendação médica para um pretenso retardo na disseminação do vírus. Felizmente, esta marcha rumo ao ostracismo é muito lenta, com exceção daqueles eventualmente acometidos de doenças cerebrais degenerativas. Essa decrepitude gradual é, em geral, percebida com mais facilidade pelos convivas esporádicos, e compreensivelmente ignorada pelos familiares, por caminharem juntos com a mudança, processada ao longo dos anos. De tal modo que as falhas ocasionais são generosamente atribuídas às coisas da idade.

O que essa pandemia fez com a determinação de isolar os velhos por serem considerados população de maior risco foi acelerar o processo de distanciamento social, agora como uma imposição sanitária, trazendo para o cotidiano do idoso o convívio com insônia, depressão e irritabilidade. (Um velho paciente meu, sempre gentil e cordato, me confessou o constrangimento de ter xingado um vizinho do elevador: "Ou tiras esta máscara para que eu possa te ouvir, ou ficas quieto!")

A solidão embutida nessas medidas protetoras apanhou a todos desprevenidos, e com o passar dos meses o isolamento foi empilhando tristeza, até que para muitos, minou a razão de viver. A reação a estas perdas afetivas foi variável, dependendo do temperamento de cada um: alguns, gregários incontroláveis, com a solidão ficam doentes de morte, e se deprimem, bebem, se desesperam. Outros se bastam, e até festejam a oportunidade de não terem que explicar suas excentricidades.

Um dia desses, no final de uma aula virtual, trouxe para discussão os critérios que os cirurgiões usam para eleger o tipo de paciente que justifica o investimento emocional de uma cirurgia de risco, com intenção de alongar um tempo de vida que a doença encurtaria. Todos concordaram que o pré-requisito mais importante é a qualidade da vida mental do paciente. Por consequência, argumentei que o grande compromisso médico nessa situação é devolver o idoso à sua família, com a mesma atividade cerebral que justificou que ele fosse um candidato cirúrgico. E de passagem, para reforçar a minha tese, comentei o significado de um avô, de boa cabeça, no contexto familiar.

E então, precisando muito interagir com uma plateia virtual silenciosa, interroguei o primeiro aluno visível no alto do visor se ele ainda tinha avô. Havia uma história comovente à minha espera:

- Eu tenho um avô maravilhoso, de 82 anos, e que, tendo enviuvado no início do ano passado, passou a viver sozinho. Como as minhas visitas escassearam na pandemia, ele mandou me chamar e disse "Meu neto querido, você precisa cuidar desse teu velho avô que está se sentindo muito sozinho". Então, professor, eu tentei argumentar que frequentando hospitais, entre pessoas doentes, a minha visita seria um risco pra ele. E ele contrapôs: pois se eu não puder te ver, não tenho nenhuma justificativa pra continuar por aqui. Venha, pelo menos, três vezes por semana, nem que seja para me trazer a doença.

O aluno completou:

- Agora, eu tenho feito os testes dia sim, dia não, para três visitas semanais. Não posso permitir que meu vôzinho morra de tristeza!

J.J. CAMARGO

24 DE OUTUBRO DE 2020
DAVID COIMBRA

Depois de meses, o primeiro gole de chope 

Fui tomar um chope no Tuim, outro dia. É importante contar isso, esse chope representa muito, é o prenúncio da volta da liberdade. O confinamento está relaxando, para a maioria incauta já acabou e, assim, calculei: estarei em uma mesa ao ar livre, na base da Rua da Ladeira, olhando para a cúpula imponente da Catedral que foi plantada lá em cima, na mais bela praça do sul do Brasil, podendo caminhar alguns passos até contemplar os clássicos na vitrine do Beco dos Livros, podendo também deslizar até a histórica Rua da Praia, ali embaixo, estarei sob a luz da Lua, portanto, na calçada, rodeado de oxigênio sempre renovado, o que significa que não haverá perigo. Quer dizer: perigo, há. Sempre há. Vírus são bichinhos traiçoeiros. Mas, às vezes, na vida, temos de correr riscos, e eu precisava daquele chope.

Assim, fui. Quando falo em chopes cremosos, amigo leitor, falo de uma experiência como a do chope do Tuim, que não é apenas um chope; é uma musse. Porque o chope, o verdadeiro chope, se bem tirado e bem servido, é a melhor bebida do mundo. Não me venham com champanhes borbulhantes, não me venham com vinhos densos, não me venham com scotches de 25 anos, prefiro chopes gelados como os corações das mulheres que me esqueceram e dourados como as pernas das que não esqueci.

Então, lá estava eu, finalmente sentado a uma mesa de bar, depois de sete meses de reclusão, e bem na minha frente foi colocado um copo de chope.

Eu olhei para aquele copo de chope. Eu sorri. Eu peguei aquele copo de chope.

O copo de chope ficou firme entre meus dedos. Nada faria com que me distraísse e o deixasse cair no chão da Rua da Ladeira, nada, nem o trovão dos céus, nem a ordem do guarda, nem o ataque do tigre.

Uma vez que o copo de chope estava seguro, o passo seguinte seria conduzi-lo aos meus lábios. Da mão para a boca. Foi o que fiz. Durante esse trajeto, precisos 48 centímetros de distância, um filme passou na minha cabeça. Os sete meses de sacrifício voltaram à minha mente. Lembrei que, em março, nos diziam que a data-chave, o pico da pandemia, seria 6 de abril. Com o que, pensei: "Voltarei a tomar chopes cremosos tipo duas semanas depois, ali pelo dia 20". Ledo Ivo engano. O dia 6 veio, o dia 7 se sobrepôs a ele, chegamos até o dia 20, e nada do pico. E os dias foram passando e minhas ilusões se esfarelando. Neste tempo todo, tenho me lambuzado com álcool gel, tenho dado banho nas compras, tenho lavado as mãos com muito sabão, esfregando entre os dedos, como ordenam os especialistas em lavação de mãos. Neste tempo todo, tenho usado máscaras de pano e papel, e meus óculos têm se embaciado quando respiro. Neste tempo todo, pronunciei palavras que nunca havia pronunciado, como "comorbidade". Neste tempo todo, fiz perguntas que nunca havia feito, como: "Ele está assintomático?". Neste tempo todo, engordei.

Neste tempo todo, sonhei com chopes cremosos, gelados e dourados. Como aquele que estava à minha frente.

Quarenta e oito centímetros e sete meses foram percorridos, por fim, e senti o frio da beira do copo em meus dentes e... sorvi o primeiro gole.

O que posso dizer sobre esse primeiro gole?

Direi que ele rolou docemente pela língua e desceu aveludado pela garganta e aí olhei para cima, para a ponta da cúpula da Catedral, e juro ter visto um raio de luz que lá brilhava e julgo ter ouvido o som de fanfarras e meus olhos se encheram d?água e pensei que a vida é boa e balbuciei, como numa oração: "Obrigado..."

Foi lindo. Foi lindo.

DAVID COIMBRA


24 DE OUTUBRO DE 2020
ARTIGOS

Professor, professor? 

Quando assumi a direção da Escola de Medicina da PUCRS, em 2013, recebi o desafio de qualificá-la e torná-la uma referência no ensino médico. A decisão de investir e canalizar todos os meus esforços em um único foco teria que ter uma conotação de continuidade e que um legado fosse deixado à escola. Na época, por todas as análises que eu possuía, acreditei cegamente que tudo devia ser investido em uma figura, o professor.

Tinha e tenho a convicção de que o bom professor consegue transmitir o conhecimento independentemente do espaço físico, dos meios disponíveis, condições sociais ou até da capacidade cognitiva dos seus alunos. O professor possui uma característica muito peculiar, que é a adaptabilidade a qualquer situação adversa. Ele se reinventa diante da adversidade. O professor seria a chave-mestra da qualificação do ensino médico.

Duas premissas básicas deveriam ser contempladas: qualificar e selecionar.

Qualificar: através de uma avaliação longitudinal. Ela foi construída, discutida e aceita pelos professores. Essa avaliação contemplaria toda a atuação de assistência, ensino e pesquisa do professor. Ela seria longitudinal porque abrangeria um período de tempo. Não seria punitiva ou excludente, mas permitiria a evolução e o progresso do professor em todas as suas atividades. O professor não teria que obter somente a capacitação, mas se aperfeiçoar e evoluir em todos os quesitos avaliados.

Selecionar: os melhores professores com critérios ? das necessidades da escola e as exigências seriam aquelas da avaliação longitudinal. Depois de sete anos e por todas as avaliações pelas quais a Escola de Medicina da PUCRS passou - em 2018 o MEC avaliou com o grau máximo de 5; em 2020 obtivemos a segunda melhor nota no Enade em nível de Brasil e a única entre as Escolas de Medicina do RS com grau máximo de 5 -, comprova que o maior patrimônio que possuímos não são prédios ou laboratórios, e sim os professores, professores, professores... e esse legado foi deixado à Escola de Medicina da PUCRS.


24 DE OUTUBRO DE 2020
FLÁVIO TAVARES

O vinte e oito 

Existem amigos que estão acima da amizade e são parte de nós mesmos. Não são nossa extensão porque nunca chegamos a ser o que eles foram, como Carlos Amaral Freire, que nos deixou há uma semana.

Gaúcho de Dom Pedrito, o conheci como colega de aula no Colégio Júlio de Castilhos em 1950, quando ele iniciava a caminhada que o tornou o maior linguista do mundo. Carlinhos não era apenas um poliglota que dominava idiomas com total facilidade, mas um linguista completo que penetrava no idioma e conhecia sua literatura e, até, os hábitos e cores ocultas dos falantes. Modesto, não se gabava nem se exibia e, por isto, é modelo às novas gerações.

Quando ganhou a primeira bolsa numa universidade estrangeira, em Madri, na Espanha, ao final dos anos 1960, era conhecido como "el veinte y ocho", ou "o vinte e oito", por falar 28 idiomas. Anos depois, quanto me contou do apelido, perguntei quantos idiomas dominava "agora", naquele momento.

- Todos! - respondeu, das línguas indígenas ao árabe, hebraico, chinês e japonês, mais os idiomas indo-europeus. Uns 150 no total. Ia estudar o aramaico dos tempos de Cristo, "por curiosidade", pois não era religioso.

Em 1954, presidindo a União Estadual de Estudantes, levei-o comigo à reunião do Conselho da União Internacional de Estudantes, na Universidade de Moscou, e dispensei os intérpretes. O russo fora o primeiro idioma não corriqueiro que ele dominou, abrindo porta às línguas eslavas.

Mas, por saber russo, após o golpe militar de 1964, foi demitido da Refinaria Alberto Pasqualini (onde ensinava inglês) e apontado como "subversivo comunista". Mesmo assim, depois dirigiu o setor cultural do Brasil no Uruguai e na Bolívia. Em La Paz, aprofundou-se nas línguas quéchua e aimara e mostrou as semelhanças fonéticas com o georgiano, lá no Cáucaso europeu, descoberta que revolucionou a linguística e as migrações do mundo antigo. "Até a cor roxa dos vestidos aimaras é similar à da Geórgia", explicou-me.

Sem jamais exibir-se, Carlinhos morreu em Canela, onde morava, quase esquecido. Imitou assim seu ídolo maior, o tcheco poliglota Francisco Valdomiro Lorenz, que difundiu no Brasil o idioma esperanto e morreu em pobreza extrema no interior gaúcho.

Babel de Poemas, livro que Carlinhos traduziu de 60 línguas (de Shakespeare a poetas macedônios, romanches, armênios e, até, suaílis e bascos), é o legado maior que nos deixou. Supera, até, ter sido apontado pela Universidade de Cambridge como um dos 2 mil intelectuais mais notáveis do século 21.

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES

14 DE OUTUBRO DE 2020
OPINIÃO DA RBS

Trapalhada ambiental 

Em meio ao aumento dos focos de queimadas no país ao longo de 2020, o Brasil mais uma vez dá munição às críticas mundiais de falta de cuidado com a Amazônia e o Pantanal ao patrocinar um atrapalhado episódio de uma desavença interna no governo que levou à ordem para que todos os agentes de combate a incêndio do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) voltassem imediatamente para suas bases, paralisando a luta contra o fogo. Por trás da determinação está um impasse com o Ministério da Economia envolvendo verbas que estariam sendo contingenciadas pela pasta de Paulo Guedes. Menos mal para proteção dos biomas que a situação foi revertida com a promessa de repasse de recursos. Mas, ao permitir que divergências políticas mal resolvidas bloqueassem mesmo que por um curto período as ações do órgão, o governo federal dá novamente um sinal na direção errada e agrava os prejuízos à imagem já chamuscada do país no Exterior.

A questão ambiental está no centro das preocupações globais e é o tema que mais desgasta a marca Brasil, não apenas por força dos desmatamentos e queimadas, mas pelo insistente discurso do Planalto de negação de uma realidade expressa em números e dados consistentes gerados por instituições de grande credibilidade, como o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Os prejuízos para o país e para as empresas brasileiras são potencialmente imensos, a começar pelas chances cada vez maiores de o acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia não ser mais efetivado.

Em junho do ano passado, quando os dois blocos deram um passo decisivo após 20 anos de negociações arrastadas, os cálculos governamentais indicavam a possibilidade de o incremento dos negócios gerar, em 15 anos, um acréscimo de US$ 125 bilhões no PIB nacional. A cifra vultosa mostra o quanto o país pode deixar de gerar de riqueza por uma visão equivocada. Há riscos de boicote a produtos nacionais e alertas reiterados de fuga de investimentos. Especialmente nos países desenvolvidos, os consumidores estão cada vez mais atentos a pontos como a rastreabilidade, para se certificarem de que os alimentos adquiridos não estão associados a degradação do ambiente. Perdem todos, inclusive o moderno agronegócio, inclusive do Rio Grande do Sul, que já mostrou saber conciliar produção e preservação ambiental. O desflorestamento acelerado, alerta a ciência, ameaça inclusive o regime de chuvas, pondo em xeque a produção agropecuária.

É lamentável que uma queda de braço entre dois ministérios - Meio Ambiente de um lado e Economia do outro - tenha reflexos negativos em uma área essencial para os interesses do Brasil. Cuidar do planeta há muito deixou de ser uma questão de ideologia. A preservação está cada vez mais enraizada como um dos sustentáculos do capitalismo de vanguarda.

Um mal-estar semelhante, no final de agosto, quase levou também à paralisação de operações contra o desmatamento ilegal. Agora, foram cerca de 1,4 mil agentes que chegaram a cruzar os braços por falta de recursos, enquanto o país assiste a uma escalada dos focos de incêndio. Espera-se que o governo solucione de forma permanente o embaraço, assegure as verbas necessárias e restaure um mínimo diálogo entre os ministérios e órgãos envolvidos, para as equipes voltarem a campo sem risco de novas paralisações. Apesar de o recolhimento das brigadas de combate a incêndio ter sido revertido, todo o imbróglio fortalece a percepção externa de que a proteção do ambiente não é uma prioridade do Planalto.

OPINIÃO DA RBS

24 DE OUTUBRO DE 2020

MARCELO RECH

O purgatório de Mourão

No início dos anos 1970, o livro Amazônia: Paraíso e Inferno, escrito por Renato Ignácio da Silva em cooperação com a Força Aérea Brasileira (FAB), ajudou a educar gerações de militares e civis para a sobrevivência na selva. A Amazônia, ensinava o escritor, pode ser ao mesmo tempo "bela e cruel". Sobreviventes de acidentes aéreos, lembrava ele, podiam extrair da floresta alimento e água, se soubessem como fazê-lo, mas também encontrar ali sua perdição.

Meio século depois, em um rasgo de raposice política, o presidente Jair Bolsonaro desvencilhou-se da incômoda sombra de um vice-presidente repleto de energia, ideias e prestígio e entregou a Hamilton Mourão o seu paraíso e inferno. O general sorridente que tinha tempo e conhecimento de sobra, falava de tudo e acalmava os mercados corrigindo as mancadas do chefe, agora atravessa os dias a se esquivar do tiroteio interno e externo sobre os incêndios e o desmatamento na Amazônia.

Ao assumir a coordenação do Conselho Nacional da Amazônia em abril passado, o vice articulado em diferentes idiomas e habituado a palmilhar de trilhas na selva a salões de palácios passou de flecha para alvo. Como descobriram muitos inquilinos do Planalto, um vice em estado de ócio é fonte constante de conspirações palacianas. Pois agora Mourão tem os cinco sentidos abduzidos pela urgente e espinhosa questão amazônica, escreve artigos e dá entrevistas na defesa, poupando o presidente de se explicar, dentro e fora do país, pelo crescimento dos focos de incêndio - 68 mil até meados de setembro, 13% a mais do que em 2019. Militar não escolhe missão, e a do vice converteu-se numa fogueira ardente no Planalto.

Desconfortável pela desenvoltura do general-vice, o capitão-presidente vem dando sinais de que terá outro companheiro na chapa de 2022. Se Mourão seguisse livre e desimpedido, ou viesse a ter sucesso em tornar a Amazônia um aplaudido case mundial de gestão ambiental, ele se credenciaria a concorrer contra Bolsonaro. Como até as pedras da Praça dos Três Poderes reconhecem a inapetência do presidente para a defesa de índios e árvores, quando não para sabotá-la, as chances de Mourão conhecer o paraíso têm se esfumaçado a cada nova estatística sobre o desmatamento. A Amazônia, tão bela e cruel, é agora sua antessala do inferno.

MARCELO RECH

24 DE OUTUBRO DE 2020
J.R. GUZZO

A democracia da cueca

Imagine por um instante - mas só por um instante; tente pensar em alguma outra coisa o mais rápido possível - que o senador que foi pego em flagrante escondendo dinheiro na cueca tivesse sido mais esperto do que foi e, com isso, pudesse ter enganado o rapa da polícia. Ninguém teria ficado sabendo de nada, não é mesmo? Imagine, então, o que teria acontecido na vida real.

Esse homem, por mais demente que a coisa possa parecer, teria votado na aprovação do novo ministro do Supremo Tribunal Federal, a "corte" ótima e máxima da Justiça brasileira. É isso mesmo: um indivíduo acusado de ser ladrão, e ladrão de dinheiro que deveria ter ido para o combate da covid-19, nomeia o supremo magistrado que tem de julgar, justamente, os acusados de ladroagem. É essa a regra, no Brasil. São essas as "instituições".

O senador da cueca só não votou porque os colegas, que estão fechados com ele, acharam que assim também já seria demais; arrumou-se uma "licença de 90 dias" para o homem e a safadeza, como acontece em 10 a cada 10 vezes no Senado Federal, foi toda para baixo do tapete.

Os 81 senadores da República, agora, vão esperar que a história esteja esquecida daqui a três meses; aí, quando ninguém estiver mais lembrando, o Sr. Cueca volta de fininho para a sua cadeira, é cumprimentado afetuosamente pela companheirada por ter escapado dessa e pode dedicar-se em paz à retomada de seus projetos.

Não pode ser de outro jeito: há senadores brasileiros que são, pura e simplesmente, a favor de meter a mão em dinheiro público - embora possam preferir outros lugares para escondê-lo da polícia. Se são a favor do roubo, não podem ficar contra quando um colega é pego roubando.

A coisa está fechada pelos sete cantos - não há mínima possibilidade de que o público pagante possa se defender do Senado e da Câmara de Deputados que estão aí, nem do STF e do resto da tribunalzada que se espalha do Oiapoque ao Chuí.

Se por algum motivo o senador da cueca tiver de ficar afastado do cargo por mais de 120 dias, nossas instituições sagradas mandam que o lugar seja entregue ao "suplente". E quem é esse "suplente"? O filho do próprio senador que foi flagrado enfiando dinheiro nas roupas íntimas. Ou seja: é rigorosamente impossível, pelo que está estabelecido na Constituição Federal, qualquer incômodo real para os delinquentes do Congresso. Sai o pai, entra o filho, e a verba da covid-19 continua à disposição da família.

O mais chato é que o cidadão ainda tem de aguentar a discurseira dos grandes vultos da nossa vida pública exigindo o "respeito às instituições" - e as caras aflitas dos locutores de telejornais do horário nobre, em seu surto permanente de defesa da "democracia". Instituições e democracia no Brasil são o senador da cueca, seu filho e tudo o que vem junto. O resto é conversa.

*Conteúdo distribuído por Gazeta do Povo Vozes

J.R. GUZZO

sábado, 17 de outubro de 2020


17 DE OUTUBRO DE 2020
LYA LUFT

A boa senhora

Não tenho sido otimista quanto à Peste que assola o mundo, nem quanto a suas interpretações, boazinhas, irônicas, apavoradas ou talvez afoitamente racionais.

Não sei bem o que pensar, como boa parte das pessoas, aliás. Às vezes me queixo da longa fase de isolamento em casa, mas obedeço fielmente, com máscara, distanciamento, álcool gel, porque nem quero adoecer, nem quero fazer outros adoecerem. Oscilo entre bem-humorada e um pouco emburrada, ah, sim, aquela criança está em nós com qualquer idade, que bom.

Mas assisti a um documentário que me encantou e me animou, e quero transmitir para vocês: era sobre ilhas e resorts maravilhosos na Tailândia, onde tudo cessou com a chegada da pandemia. Zero ou quase zero turista, restaurantes, bares, lugares de dança e animação vazios, praias desertas - de onde viria o dinheiro que sustentava não apenas os luxos e alegrias dos turistas, mas as famílias dos moradores?

Aos poucos, porém, começaram a sair do susto paralisante e a reparar em alguns benefícios, coisas com que há muito não contavam: o mar sem nenhuma poluição, praias limpas (poucos restos, garrafas vazias ou sacos plásticos), peixes retornando, sossego, silêncio, sensação de unidade com aquela natureza incrível que não conseguiam mais curtir. Pois antes viviam correndo, trabalhando, servindo a milhares de turistas que na verdade os sustentavam.

Perceberam, lentamente, que podiam viver sem a invasão permanente de estrangeiros felizes e encantados dançando ao som de hábeis DJs. Começaram a plantar suas hortas, a cuidar uns dos outros, e se reunir, a ser uma comunidade. Com menos coisas, menos pequenos luxos, mas muito mais tranquilidade e alegria. Os turistas que recomeçaram a aparecer muitas vezes não vinham só por alguns dias agitados, mas ficavam semanas ou mais, fugindo da contaminação para algo mais seguro.

E, assim, ressurgiram hábitos, talentos, possibilidades, que haviam esquecido na correria diária com as manadas de turistas, boas mas não essenciais.

De alguma forma, esse vídeo me alegrou, me trouxe a velha Senhora Esperança, tão necessária, que em geral fundamentou minha vida, mas andava meio frágil nestes dias. Me fez pensar que talvez meu relativo pessimismo quanto a uma humanidade pós-pandemia - se houver um pós-... - não seja de hostilidades pessoais, ou países e cidades fechados, caras fechadas também, suspeita, desconfiança, acusações mudas ou não, "não chegue perto, não venha, não me traga a doença". Mas, aos poucos, ao menos em alguns lugares, a gente será mais gentil, mais tranquilo, mais modesto, menos competitivo, menos louco, menos cobiçoso, menos inquieto e menos infeliz. Que os imensos edifícios se transformem de formigueiros frenéticos em moradias, com terraços cheios de plantas, e crianças nos pátios. Quem sabe alguns se dividam entre escritório e lar. Quem sabe, quem sabe, tudo não vá ser tão melancólico ou perigoso como, nos meus pressentimentos menos cor-de-rosa, tenho receado.

Senhora Esperança, bem-vinda. Fique comigo um pouco mais.

LYA LUFT

17 DE OUTUBRO DE 2020
MARTHA MEDEIROS

A terceira pessoa 

Escrever ficção é sempre uma aventura pra mim. Acostumada a textos curtos e à prosa acelerada, a tarefa de mergulhar nas águas caudalosas de uma história longa é um desafio que exige tempo, foco e, no meu caso, coragem. Mas me atrevi, de novo. E, para tornar a façanha ainda mais emocionante, pela primeira vez escrevi um romance na terceira pessoa, essa entidade invisível.

A terceira pessoa é uma espécie de síndico contratado por fora. Alguém que vai dizer para o leitor o que o personagem está pensando e sentindo, se a água que bebe está envenenada, se seus medos o paralisam, se começou a chover. É quem faz a cobertura completa dos fatos objetivos e subjetivos da história. Craques da literatura dominam bem esse modo de contar.

Talhada pela poesia confessional e pelos 26 anos de colunismo de opinião, a experiência que tenho é outra. Minha fala escorre pelos dedos no teclado, mas, antes, passa pelo umbigo: o pronome "eu" me é muito familiar. Então, quando comecei a publicar narrativas longas, estreando com Divã, naturalmente dei minha voz à personagem principal, e me entusiasmei com a possibilidade de sentir o que ela sentia, de entendê-la por dentro, de ser ela. Escrever ficção na primeira pessoa se equipara ao trabalho de uma atriz que é desafiada a ser outro alguém, a agir como nunca agiu, com permissão para ser perigosa, imoral, alucinada, entre outras facetas que costumamos reprimir na vida real. E sem ser julgada por isso.

É, também, uma forma simplificada de fazer com que o leitor acredite no personagem, e só nele. Quando publiquei o livro de cartas fictícias Tudo que Eu Queria te Dizer, fui um padre quebrando o voto do confessionário, uma mulher ficando cega, uma prostituta casada, uma moça que descobria tardiamente que era adotada, um louco preso no hospício, o viúvo de uma suicida, um adolescente que provocou uma morte. A recompensa: os leitores se comoveram com as dores desses estranhos, sem me enxergar por trás.

Agora, ao escrever na terceira pessoa, enfrentei obstáculos que não conhecia. Foi difícil manter distância da cena. Me aproximei o máximo que pude, fui solidária a cada um dos meus personagens, mas eu não era eles: ainda era uma escritora olhando pelo buraco da fechadura daquela história - criada por mim, narrada por mim, mas sem a promiscuidade adorável a que eu estava habituada.

O resultado acaba de chegar às livrarias: chama-se A Claridade Lá Fora. A boa notícia é que nem o narrador nem os personagens dão um pio sobre pandemia ou política. Conto com sua leitura para descobrir do que se trata o livro e para me dizer se valeu o esforço. Agora que já expus minhas dificuldades dissertativas, a única pessoa que me importa é você.

MARTHA MEDEIROS