sábado, 21 de novembro de 2020


21 DE NOVEMBRO DE 2020
FRANCISCO MARSHALL

AMAZONAS

Em fevereiro de 1542, o explorador espanhol Francisco de Orellana partiu de Quito, atravessou os Andes e, a bordo de um veleiro, singrou águas que o levaram, após seis meses, à foz do rio que hoje chamamos Amazonas. Esse nome vem do relato do frei Gaspar de Carvajal, membro da expedição de Orellana, que contou terem visto na selva guerreiras Amazonas defendendo o Eldorado. Assim veio do velho mundo esse nome para batizar o rio e a floresta que hoje brasileiros insensatos destroem. Mas quem são as Amazonas, onde habitam, do que se alimentam?

Entre os gregos, o nome Amazonas designava uma tribo de mulheres guerreiras habitando os confins do Mar Negro, junto aos montes Cáucaso, e que teriam atacado cidades do Mediterrâneo, como Tróia e Atenas. As métopas (placas em mármore com esculturas em baixo relevo) do Partenon mostram Teseu, rei mítico de Atenas, repelindo ataque daquelas mulheres, para salvação e orgulho nacional. Muitos poetas e artistas ilustraram o mito das Amazonas, das quais não há notícia arqueológica e provavelmente nunca existiram, senão na fantasia de lendas e artes. 

Em sua tribo, diziam, não havia homens, mas elas encontravam-se anualmente nas montanhas com os guerreiros Gargáreos para fins reprodutivos; bebês homens seriam rejeitados. O nome "amazona" vem da tese de que mutilavam o seio direito para ganhar força no braço combatente; após o alfa privativo (como em anormal), vinha a palavra mazós (eventualmente mastós) que, em grego, significa seio. Pobres das canhotas, que perdiam um seio e ainda lutavam com braço fraco!

O mito das Amazonas é uma das formas com que homens gregos elaboraram imagens do mundo feminino, que tanto temiam. Desde Homero (séc. IX a.C.), hostilizaram as mulheres como se fossem feiticeiras sedutoras, como Circe e, na tragédia de Eurípides (413 a.C.), Medéia, ou monstros letais, como as Sereias e Medusa, ou traidoras que conspiram e tomam o poder, como Clitemnestra, ou cujos encantos provocam a guerra, como Helena. A deusa Palas Atena, conta o mito, nasce da cabeça de Zeus, é casta e defende homens como Ulisses e Orestes, a quem absolve do crime de matricídio (originando o voto de Minerva e o in dubio pro reu, pois dá empate), na tragédía Eumênides (458 a.C.), de Ésquilo: "Depositarei este voto a favor de Orestes./ Não há mãe nenhuma que me gerou./ Em tudo, fora núpcias, apoio o macho,/ com todo ardor, e sou muito do Pai." (v. 735-8, trad. Jaa Torrano), o argumento mais machista da literatura grega. Essas memórias ilustram o pavor chauvinista com que autores homens da idade do ferro (primeiro milênio a.C.) representavam e combatiam as mulheres e seus poderes. É o temor agressivo de machos covardes contra fêmeas e também a fonte de fantasias que, conquanto históricas e simbólicas, merecem também o nome reverso das mitologias: mentiras, ou, no jargão atual, fake news.

Eis as mulheres. Hoje, quando troteiam ou galopam com elegância, são amazonas, mas no tempo das ruas, das opções e do futuro que se ergue com amor e inteligência, são mulheres que mudam o mundo para bem melhor.

FRANCISCO MARSHALL

21 DE NOVEMBRO DE 2020
COM A PALAVRA - ROSALY LOPES

A TECNOLOGIAE A CIÊNCIA VÃO NOS SALVAR

Astrônoma e vulcanóloga, 63 anos Cientista brasileira que chefia uma equipe da Nasa, a agência espacial dos EUA, em investigações sobre a existência de vida em outros planetas

Uma das cientistas brasileiras de maior destaque internacional, Rosaly Lopes carrega as memórias da praia de Ipanema, no Rio de sua juventude, para fora da Terra. Integrante das missões não tripuladas Galileo e Cassini, da Nasa, a pesquisadora se dedica a estudar atualmente as condições habitáveis da lua Titã, a maior de Saturno e a segunda do sistema solar. Há 45 anos morando fora do Brasil, ela está no Guinness Book por ter descoberto o maior número de vulcões ativos no universo - 71 apenas em Io, uma das luas de Júpiter. 

Como integrante da União Internacional de Astronomia, que nomeia acidentes geográficos em planetas e luas, ela batizou de Heitor Villa-Lobos e Tom Jobim duas crateras de Mercúrio. Rosaly é a primeira mulher a assumir o cargo de editora-chefe da conceituada revista Icarus, fundada por Carl Sagan, um dos maiores astrônomos da história. Em outubro, ela falou para 1,7 mil ouvintes em evento virtual promovido pela embaixada e pelos consulados dos EUA no Brasil. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida a ZH.

EM ENTREVISTAS ANTERIORES, A SENHORA AFIRMOU QUE SER ASTRÔNOMA É ALGO QUE MEXE COM A IMAGINAÇÃO DURANTE A INFÂNCIA DAS CRIANÇAS. MAS QUE, AO CHEGAR À ADOLESCÊNCIA, MUITAS PESSOAS PERDEM ESSA CURIOSIDADE PELA CIÊNCIA. O QUANTO SUA VIVÊNCIA INFANTIL COM OS TEMAS DO ESPAÇO FOI DETERMINANTE PARA CHEGAR À NASA?

Foi muito determinante porque eu acompanhava muito o programa Apollo (conjunto de missões espaciais da Nasa, entre 1961 e 1972, com o objetivo de levar os primeiros seres humanos à Lua). Eu me interessava muito sobre aquilo. Quando tinha 12 anos, os primeiros homens pisaram na Lua. Foi emocionante. Um ano depois, vi uma reportagem em um jornal brasileiro sobre Frances "Poppy" Norhtcutt, a única mulher trabalhando no controle de missões em Houston (EUA). Mostraram uma fotografia que até hoje muitas vezes exibo em palestras. Me inspirei muito nela. Naquela época, a gente só via homens trabalhando no centro espacial. Ela, sendo mulher, me inspirou muito. Na adolescência não perdi o interesse: gostava muito de ficção científica, lia livros desse gênero, gostava de ciências. O que comentei em uma entrevista é que não são todos os adolescentes que perdem o interesse por ciências. O problema é maior com as meninas, que começam a se interessar por namorar e acham que aquilo não é muito feminino. Os tempos estão mudando, mas ainda há algo disso. Inclusive a primeira astronauta americana, Sally Kristen Ride, tinha um programa educativo para meninas pré-adolescentes, porque é nessa etapa que elas começam a perder o interesse.

O AMBIENTE NA NASA AINDA É MUITO MASCULINO?

Já melhorou bastante. Entre os jovens, há muito mais mulheres do que antes. Mas, em ciências planetárias nos EUA, por exemplo, há mais ou menos 30% de mulheres. Na fase jovem, deve ser um pouco mais. Na minha idade, há mais do que havia 10 ou 20 anos atrás. Quando comecei, realmente não havia muitas mulheres na área. Eu me acostumei a ser a única mulher em uma reunião. Isso não me incomodou, apenas fiquei acostumada. Meninas e meninos, quando pequenos, são interessados por ciências. A percentagem é a mesma, de acordo com estudos, mas, quando começam a ficar adolescentes, isso muda. Muitas meninas se desinteressam nessa fase. Talvez seja porque é uma coisa que não é tradicional para as mulheres fazerem.

UM METEOROLOGISTA COSTUMA OUVIR NA RUA AS PESSOAS PERGUNTAREM, A TODO INSTANTE, SE VAI CHOVER. IMAGINO QUE A SENHORA DEVA ESCUTAR, SE HÁ VIDA FORA DA TERRA. QUAL A SUA OPINIÃO?

Acho que é muito possível haver vida fora da Terra, inclusive estou liderando esse projeto sobre a lua Titã, de Saturno, que tem um oceano embaixo de uma crosta de gelo. Há material orgânico na superfície. Nosso projeto está estudando se existem condições habitáveis nesse oceano. É uma das questões principais da Nasa no momento. As missões à Marte e a esses oceanos são justamente para buscar sinais de vida ou sinais de condições favoráveis à vida.

A PRESENÇA DE MATERIAL ORGÂNICO NÃO SIGNIFICA, NECESSARIAMENTE, QUE HAJA VIDA?

Vida é material biológico, alguma bactéria. Não estamos falando de vida inteligente nem de vida no sentido mais evoluído, como animais. A dificuldade de a gente dizer se realmente pode existir vida ou não é porque não sabemos nem entendemos direito como a vida surgiu na Terra. Por isso, é tão importante descobrir vida em outro planeta, porque vamos saber mais sobre as condições necessárias para a vida se desenvolver.

A SENHORA É PIONEIRA DA DESCOBERTA DOS VULCÕES FORA DA TERRA. QUAL A IMPORTÂNCIA DE SE ESTUDAR VULCÕES EM OUTROS PLANETAS?

O vulcanismo, como todos os fenômenos geológicos, quando você os estuda fora da Terra, está usando outros planetas como se fossem laboratórios naturais. Porque, na Terra, a gente tem sempre a mesma gravidade, condições muito similares para os vulcões. O conhecimento sobre vulcões se torna muito maior quando você começa a estudá-los em outros planetas. Por exemplo: uma coisa que descobrimos é que a Terra é o único planeta onde há movimento de placas tectônicas que controlam o vulcanismo. Outros planetas não têm isso. É uma coisa muito específica da Terra no sistema solar.

ISSO SIGNIFICA QUE NÃO HÁ TERREMOTOS EM OUTROS PLANETAS?

Há terremotos, mas são diferentes. Quando há o impacto de um meteorito em outro planeta, sem atmosfera, isso causa um pequeno tremor de terra. E há movimentos de crosta que não são iguais aos da Terra. Mas uma das perguntas é o que o movimento de placas tectônicas significa para a vida se desenvolver. Achamos que a vida na Terra começou com o vulcanismo nas regiões vulcânicas, embaixo do mar. Achamos que a vida começou no mar e perto dessas fontes de energia que existem na Terra. Há muitas outras perguntas: é necessário ter água na superfície para facilitar o movimento das placas tectônicas porque, quando uma placa tectônica vai para debaixo de uma outra, como na costa do Chile, ela ajuda (para a vida se desenvolver). Há muitas perguntas que a gente começa a desenvolver muito mais quando estuda outros planetas. Por que a Terra tem esse movimento de placas tectônicas e outros planetas não têm? É porque há água na superfície ou por que depende do tamanho da crosta relativo ao tamanho da Terra? Se a crosta for muito grossa, não quebra. Talvez tenha sido o caso de Marte. Há muitas dessas perguntas.

COMO A SENHORA SE INTERESSOU POR VULCÕES?

Foi uma coisa engraçada. Sempre tive esse espírito de querer explorar outros lugares. Eu queria ser astronauta, inclusive. Mas vi que, sendo brasileira, mulher e muito míope, não ia dar. Então, decidi estudar astronomia. E, quando eu estava estudando na Universidade de Londres, no último ano eu fiz um curso de geologia dos planetas, e o professor era muito bom. Ele me inspirou muito. Certo dia, ele não foi dar aula e mandou um jovem assistente. Esse disse: "O monte Etna, na Sicília, entrou em erupção, e o professor teve de ir para lá". Eu achei aquilo muito interessante: o vulcão explode, e o professor tem de ir. A combinação daquilo com o fato de eu ter gostado tanto daquele curso... Perguntei ao professor se poderia fazer um doutorado com ele, e ele me aceitou. Foi aí que comecei a ir até os vulcões.

A SENHORA VISITOU MUITOS VULCÕES?

Muitos. Em todos os continentes, até na Antártica. Já fui a Erebus.

COMO SURGIU A IDEIA DE BATIZAR CRATERAS DE MERCÚRIO COM NOMES COMO TOM JOBIM, VILLA-LOBOS. FOI SAUDADE DO BRASIL?

Nomes de crateras e montanhas em planetas e luas são dados pela União Internacional de Astronomia. Há um comitê, hoje em dia faço parte dele. Quando você vai escrever um trabalho científico, é muito mais fácil se referir a um nome do que dar latitude e longitude. Então, esse comitê dá nomes quando necessário. Quando estávamos na missão Galileo, eu e alguns colegas fizemos uma lista de vulcões que a gente precisava batizar. A gente poderia sugerir nomes de acordo com o tema. E o tema era figuras mitológicas, com alguma coisa a ver com fogo, vulcão ou trovão. Eu percebi que não havia nenhum nome de deuses indígenas brasileiros no sistema solar. Então, eu sabia de Tupã, o deus do trovão. Sugeri esse nome. Também pesquisei um pouco Monã, que é outro deus. Aí, fiz a proposta desses dois nomes e foram aceitos. Depois, fiquei interessada nesse comitê de nomenclatura, e eles me convidaram a fazer parte dele. Aí, comecei a ver se havia nomes brasileiros, e há em alguns lugares. Villa-Lobos já tinha em Mercúrio. Pensei: por que não Tom Jobim? Ao final, alguém pediu e aí ficou Tom Jobim em Mercúrio. Sou de Ipanema, então tenho uma afeição especial pela música Garota de Ipanema.

HOJE, QUAL É SEU PRINCIPAL TRABALHO NA NASA?

Faço várias coisas. Sou chefe de um time internacional que está estudando as condições habitáveis de Titã, aquilo que a gente falou de procurar se há embaixo da crosta de gelo esse oceano líquido e se teria condições de desenvolver vida. Titã tem muito material orgânico na atmosfera, na superfície. Então, uma das partes do projeto é ver se esse material orgânico pode penetrar no oceano, porque daí as condições seriam mais favoráveis à vida.

ESSES DADOS SÃO ANALISADOS A PARTIR DE MISSÕES COM NAVES NÃO TRIPULADAS?

Muitos são dados da missão Cassini (que explorou por 13 anos as luas de Saturno), mas também há observações do radiotelescópio Alma, no Chile. Também tem muitos trabalhos teoréticos, temos biólogos que estão reproduzindo as condições do oceano, em termos de temperatura e pressão, e colocando vários tipos de bactérias para ver se elas sobrevivem. Minha parte é mais o criovulcanismo. Se há vida nesse oceano, é necessário trazê-la para a superfície. Caso contrário, nunca se vai achá-la. Então, analisamos quais os sinais de vida que poderiam ser trazidos para a superfície atmosférica. É um trabalho multidisciplinar: temos químicos, biólogos, astrônomos e geofísicos estudando o interior de Titã. Inclusive nesse projeto encaixamos um brasileiro da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o Alvaro Penteado Crósta, que veio trabalhar comigo no ano passado por seis meses e é especialista em crateras de impacto. Agora, estamos estudando se o impacto de meteoritos em Titã poderia ter penetrado essa crosta e levado material orgânico ao oceano. Mas tenho colaboradores na Franca, na Inglaterra...

A SENHORA TRABALHOU NO LABORATÓRIO DE PROPULSÃO A JATO DA NASA. É A ÁREA QUE DESENVOLVE A PROPULSÃO DAS NAVES NÃO TRIPULADAS?

O nome é histórico. Hoje em dia, tem muito pouco a ver com propulsão. Atualmente fazemos instrumentos, naves, pesquisas, e as missões não tripuladas. Muitas são feitas e controladas pelo laboratório. Temos um time de navegadores espaciais, uma tarefa muito especializada, principalmente de matemáticos, para calcular as órbitas das naves. Temos muitos cientistas e engenheiros desenvolvendo novas tecnologias para o espaço.

O LABORATÓRIO FAZ TODA A GESTÃO DA MISSÃO DAS NAVES NÃO TRIPULADAS?

Sim, mas às vezes a gente compra as naves. São feitas por companhias aeroespaciais. Se existe uma coisa que é comercializada, a gente contrata uma companhia para fazer. Mas algumas coisas são realmente únicas. Então, nosso laboratório faz. O laboratório começou com alguns estudantes e pesquisadores do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Catech), em Pasadena. Nos anos 1950, estavam lançando foguetes pequenos, e o pessoal da Catech disse: "Não, esse negócio às vezes explode, vocês não podem fazer aqui em Pasadena. Vão para lugar mais distante." Então, foram para um lugar perto das montanhas, e aí começou. Construíram uma casinha, que depois, se tornou o laboratório de propulsão a jato. O nome, então, é mais histórico.

A ERA DOS ÔNIBUS ESPACIAIS TERMINOU DEVIDO A VÁRIOS PROBLEMAS, COMO ORÇAMENTO E SEGURANÇA. A SENHORA ACHA QUE, EM ALGUM MOMENTO, A NASA VAI VOLTAR A APOSTAR EM MISSÕES TRIPULADAS?

Sim, ainda temos astronautas na Estação Espacial Internacional. Agora, a Nasa está desenvolvendo o projeto Artemis, para voltar à Lua. Artemis era a irmã gêmea de Apollo. O projeto Artemis vai levar a primeira mulher à Lua.

DURANTE A PANDEMIA, PERCEBEMOS A FRAGILIDADE DO SER HUMANO, MESMO EM UM MUNDO ALTAMENTE TECNOLÓGICO. QUAL A IMPORTÂNCIA DA PESQUISA ESPACIAL PARA SE DESCOBRIR ALGO SOBRE O PLANETA E OS HUMANOS?

Muitas. O desenvolvimento de tecnologias do programa espacial é incrível. Muitas coisas vieram do programa espacial, incluindo o telefone celular. Desenvolvemos tecnologias em miniatura porque, quando você lança uma nave, tudo precisa ser pequeno e leve, porque senão você precisaria de foguetes muito maiores. Com relação à biologia, agora sabemos que vida pode existir em muitos lugares, incluindo os muito frios, como os lagos embaixo do gelo da Antártica, áreas em que, anos atrás, não se imaginava que pudesse existir. Todas as ciências, inclusive a biologia, avançam por causa da tecnologia do programa espacial. Estamos passando por um momento em que a tecnologia e a ciência vão nos salvar, porque estamos desenvolvendo vacina e medicamentos para tratar o coronavírus. Alguns anos atrás, houve a epidemia de sars, na Ásia, e não se espalhou tanto. Uma das razões é que as pessoas não viajavam tanto naquela época. Em 20 anos, o número de viagens internacionais aumentou muito. O coronavírus se espalhou mais rapidamente. O nosso mundo mais global, com viagens aéreas mais acessíveis, tem esse lado ruim: é muito difícil conter um vírus em um determinado lugar.

A SENHORA ACHA QUE A CIÊNCIA SAI FORTALECIDA DA PANDEMIA?

Sim, muito. Os cientistas que estudam isso vão aprender muito mais sobre os vírus em geral.

COMEÇAMOS A ENTREVISTA FALANDO SOBRE O INTERESSE DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES SOBRE CIÊNCIAS. COMO A SENHORA AVALIA A EDUCAÇÃO NO BRASIL, ONDE A CIÊNCIA NÃO É MUITO VALORIZADA?

Não tenho uma experiência direta com a ciência ensinada no Brasil, porque estou há muitos anos fora, mas uma coisa que me impressiona no país é o interesse dos jovens. Eles são muito interessados em ciência e tecnologia. Relativamente, acho que até mais do que nos EUA. Tenho muita esperança de que os jovens brasileiros vão se dedicar e desenvolver essa área, que é crucial para o mundo. É necessário, para todos os países, investir em educação, porque isso significa treinar a próxima geração, que vai trazer retorno ao país. A educação é um investimento, mas acho que jornalistas também têm um papel muito importante ao escreverem artigos interessantes sobre ciência, para ajudar a despertar o interesse não só nos jovens, e sim, também, nos pais. Para que, quando um filho disser que quer estudar alguma ciência, os pais deem apoio, que é uma coisa importante. 

RODRIGO LOPES

21 DE NOVEMBRO DE 2020
DRAUZIO VARELLA

E AGORA, JOSÉ? 

Você quer sair, encontrar os amigos, jantar fora, beber no bar, viajar para Minas. A rotina de ir para o escritório que amofinava seus dias, agora é um sonho, José. Nós sabíamos que seria difícil manter o afastamento social por muito tempo. Com 15 milhões de pessoas aglomeradas em moradias precárias nas favelas, 46% das quais sem água encanada, como ficar em isolamento?

Todos concordaram que os serviços essenciais não podiam parar. Mas eles são mantidos por quem? Pelos que trabalham em supermercados, padarias, farmácias e portarias de prédios, pelos entregadores e seguranças e pelos informais encarregados dos pequenos serviços. Era evidente que a mobilidade obrigatória dos menos desfavorecidos levaria o vírus para a periferia das cidades.

O preço pago pelos que vivem nos bairros distantes tem sido desproporcional. A prevalência da infecção pelo vírus na pobreza da zona sul de São Paulo é quase quatro vezes maior do que na zona centro-oeste, de poder aquisitivo mais alto. Em todas as cidades brasileiras, a mortalidade atingiu níveis mais elevados entre os pobres e os pretos, como acontece com as doenças de caráter epidêmico, desde a antiguidade.

Quando vejo os mais jovens da classe média alta aglomerados nos bares e restaurantes, sem máscara, sinto um misto de decepção e de desprezo. Eles se comportam como se o vírus não existisse ou como se não fosse problema deles. Bancam os corajosos para impressionar os amigos, ridicularizam os mais cuidadosos, mas ao surgir a primeira febrícula correm para os melhores hospitais da cidade, mortos de medo de morrer, sobrecarregando e colocando em risco os profissionais de saúde que cuidarão deles. Isso, quando não levam o vírus para os pais, para as crianças e as pessoas vulneráveis da família. Daria tudo para saber o que lhes passa pela consciência quando um ente querido infectado por eles vai parar na UTI. Quanto à empregada da casa que contraiu o vírus do patrãozinho, o remorso do transmissor é provavelmente nenhum. Ela e os parentes que se arranjem, não é para isso que existe o SUS?

A exposição irresponsável ao vírus é antes de tudo um ato de egocentrismo covarde. O temerário se arrisca não por ser destemido e estar disposto a arcar com as consequências de seus atos, mas por acreditar que os mais jovens serão poupados. Se não se preocupa sequer com a própria família, vamos pretender que tenha consideração pela comunidade? Que venha a entender que assim agindo, participa ativamente da disseminação da epidemia?

Embora alguns médicos ainda acreditem que um antimalárico ou um prosaico vermífugo administrados nas fases iniciais curem a covid-19, a fé é de pouca valia nesta hora. Achar que a vacina nos salvará assim que disponível é pensamento mágico, o caminho da imunização em larga escala será longo, penoso e cheio de incertezas. A tal imunidade de rebanho antes da existência de uma ou mais vacinas eficazes não passa de miragem.

A conclusão, José, é a de que conviveremos com esse coronavírus por muitos meses, senão por anos. Não é pessimismo, olhe o que ocorre na Europa, na Ásia e, especialmente nos Estados Unidos, o exemplo máximo de como a cegueira estúpida de um dirigente pode causar uma tragédia de proporções inimagináveis. Ou é por acaso que os Estados Unidos, o país mais rico do mundo, ostentam o título de campeões mundiais de mortalidade?

Sejamos sensatos, meu amigo, é tarde para chorarmos o leite derramado, de agora em diante temos que concentrar nossos esforços em reduzir a velocidade de disseminação da epidemia. No decorrer deste ano aprendemos que o vírus é transmitido por via respiratória, preferencialmente em lugares fechados, quando as pessoas se aproximam umas das outras. Aprendemos que a higiene das mãos e o uso de máscara são medidas protetoras. Não é pouco, já sabemos o essencial. Nosso desafio é a adoção de medidas para evitar aglomerações e convencer a população a colocar máscara ao sair de casa.

Essa deve ser a ênfase das campanhas de saúde pública e do exemplo que cada um de nós deve dar às crianças, aos que não estudaram e aos ignorantes que frequentaram as melhores escolas. O uso de máscara é medida simples, protetora, acessível a todas as camadas da sociedade, mas enfrenta o problema da mudança de hábitos, dificuldade maior do comportamento humano.

DRAUZIO VARELLA

21 DE NOVEMBRO DE 2020
MONJA COEN

DIA DA CONSCIÊNCIA 

Você despertou ou está naquele estado estranho que não é nem sono nem vigília? Você é uma pessoa morta viva ou viva morta?

Mortos-vivos ou vivos-mortos são indiferentes a tudo que não seja suas próprias necessidades, circulam pelo mundo sedentos e insatisfeitos. Procuram lucro financeiro e regalias pessoais. Sua jornada é um caminhar invejoso e rancoroso, movido pela raiva, ganância e ignorância. Não respeitam a vida, a natureza nem outros seres humanos. Jamais percebem as necessidades verdadeiras dos outros e esmagam alegrias e afetos com suas pisadas pesadas e arrogantes. Devem ser apiedados, mas suas ações, palavras e pensamentos não podem ser desculpadas nem aceitas, espalhadas ou compartilhadas. Nunca.

Tão diferentes do nosso Zumbi dos Palmares. Nesta sexta-feira, 20 de novembro, celebra-se o Dia da Consciência Negra, dia da morte de Zumbi, último líder do Quilombo dos Palmares. Zumbi quer dizer guerreiro - nada a ver com os mortos-vivos. Muito pelo contrário. Era um homem forte e destemido que resolveu enfrentar, no século 17, os abusos e as discriminações infringidos aos povos de origem africana, povos que foram escravizados por outros povos. Dois séculos depois foi assinada a Lei Áurea, a abolição da escravatura, pela princesa Isabel. Mesmo assim, até hoje, não há completa equidade.

Libertar. Exigir equidade. Zumbi era forte e corajoso, movido por seu coração compassivo. Não lutava para ter vantagens pessoais, para conquistar territórios indígenas e explorar minas de ouro. Queria a libertação de todos irmãos e irmãs, sujeitos aos preconceitos e maus-tratos. Inclusão social, respeito, dignidade. Lutou até ser morto e ter sua cabeça pendurada em praça pública na cidade de Recife.

Era assim que invasores/colonizadores tratavam quem os desafiassem pelo mundo. Nossa mãe África sofrida, abusada, maltratada, esquecida, ainda é pouco estudada e conhecida nos outros continentes. Rica fonte da vida humana. Será que podemos nos arrepender e transformar tanta dor em inclusão e afeto, respeito e reverente gratidão?

Nós podemos. E devemos. Acorde! Desperte!

Este 21 de novembro é dia do nascimento de outro libertador - Mestre Keizan Jokin Daiosho Zenji. Viveu no século 14. Seu propósito, seu trabalho, sua missão era libertar seres humanos das amarras de suas próprias mentes. Foi um monge Zen. Considerado co fundador da Ordem Soto Shu, a que pertenço.

Cuidava e ensinava todas as pessoas, sem preconceitos. Era amado. Deixou instruções preciosas sobre a prática de Zazen - sentar em meditação: "Zazen significa clarificar a mente e descansar tranquilamente em sua natureza presente. Isso é chamado revelar a si mesmo e manifestar a essência verdadeira".

Clarificar, tranquilizar, revelar, manifestar a verdade, a essência verdadeira. Estamos todos interligados e pertencemos à mesma espécie biológica - humana. Dependemos de todas as outras formas de vida, por isso cuidamos. O cuidado leva à cura.

Cura da Terra e de todos os seres.

Dia da Consciência é dia de despertar, de cuidar, de curar e beneficiar todos os seres. Homenagem aos que puderam, podem e poderão nos libertar de todas as formas de abuso e exclusão, ontem, hoje e sempre.

Mãos em prece

MONJA COEN

21 DE NOVEMBRO DE 2020
J.J. CAMARGO

O TOQUE DE ALGUÉM 

Vamos chamá-la de Emília, acho que ela não ia se importar. Como todos os moribundos, ela sabia que ia morrer. A magreza extrema e a serenidade do olhar já passavam essa mensagem, dispensando as palavras. Miúda, olhos de um azul desbotado pelo uso, arcada dentária proeminente pela perda de peso, cabelos brancos contidos por uma toquinha de crochê.

Entregou-me um calhamaço de exames, depois se recostou na poltrona dando um tempo para que eu revisasse as imagens e laudos. Pela total ausência de inquietude na espera, percebi logo que ela não tinha vindo em busca de nenhuma novidade.

E então quebrei o silêncio: - Para que eu possa, de alguma maneira, ajudá-la eu preciso saber mais da Emília. A senhora pode me dar essa chance?

Pela primeira vez ela sorriu, um sorriso doce e cansado.

- Obrigado, doutor. Começamos bem, porque o senhor é o primeiro que quer saber da Emília. Pois lhe conto que eu própria estou cansada dela, mas como descobri que fico pior quando me queixo, se o senhor não se importar, eu prefiro contar de como eu era! Porque enquanto meu velho viveu, eu fui rainha. Mas depois que ele morreu, fiquei sem ninguém com quem eu gostasse de conversar. Para piorar, meu único filho foi transferido para o Maranhão. Ele liga muitas vezes e fico no maior apuro quando ele quer que eu mostre a cara no celular e não quero que ele veja o quanto emagreci!

Ela prosseguiu:

- Aí decidi vir consultar consigo, porque gosto muito das coisas que o senhor escreve, e porque sei que tem grande vivência com pacientes com câncer, para que o senhor me diga quanto tempo acha que eu tenho a partir desse ponto, pois decidi não antecipar muito a vinda do meu filho, para não atrapalhar a vida dele, mas tenho horror da ideia de morrer sozinha!

Um grande papo jovem, aos 86 anos. Falamos de tudo, dos ipês floridos, que ainda se viam pela minha janela, de música, de livros (também era apaixonada por Júlio Cortázar e Mario Benedetti), de cinema, e da vida. Enquanto ela falava gesticulando com mãos de veias expostas e ossos salientes, fiquei pensando na sorte que teve o marido, que ao perceber que ia perder essa companhia, tratou de morrer antes dela.

A última reminiscência dele vinha carregada na bolsa: uma agenda com capa de coro marrom, chamada "Próximos compromissos". Foi uma experiência comovente desfilar pela cumplicidade das promessas de rever filmes e séries, e óperas de Puccini no YouTube, que eles deveriam assistir nas semanas seguintes e que ela, se sentindo interrompida, não tinha ânimo para assistir sozinha.

Quando a consulta se encaminhava para o final, ela pediu para usar o álcool gel. Derramou nas mãos, pediu para colocar também nas minhas, e então fez o pedido: - Agora que estamos protegidos, eu posso segurar um pouco as suas mãos? Quem pensa que câncer é a pior doença não tem ideia do que seja a solidão na velhice.

J.J. CAMARGO

21 DE NOVEMBRO DE 2020
DAVID COIMBRA

Aquilo que só um homem negro pode sentir 

Foi a comunidade negra que insistiu na exaltação do 20 de novembro como uma efeméride especial para o Brasil. A ideia era tirar a importância do 13 de maio, o dia da abolição da escravatura, e transferir todas as comemorações e reflexões para a data em que morreu Zumbi dos Palmares, no final do século 17, em Pernambuco. Por que isso?

Por que o Dia da Consciência Negra tem de ser o 20 de novembro e não o 13 de maio?

Basta olhar para a História para compreender. Dom Pedro II levava o pseudônimo de "O Magnânimo". Devia ser chamado de "O Omisso". Dom Pedro governou o Brasil por quase 60 anos, uma eternidade. Durante esse período, as nações sul-americanas foram conquistando independência, se tornando repúblicas e abolindo a escravidão. No começo da década de 60 do século 19, os Estados Unidos passaram por uma das mais cruéis guerras civis da história da humanidade, em que morreram 650 mil pessoas. Nessa guerra, a grande disputa era a extinção do regime escravagista nos Estados do Sul. O Norte venceu, e todos os americanos restaram livres. Enquanto isso, a Inglaterra se mobilizava para proibir o tráfico de escravos nos mares do mundo. Os ingleses penalizaram o Brasil de inúmeras formas, inclusive capturando os navios negreiros, mas os traficantes brasileiros sempre davam um jeito de ganhar dinheiro vendendo carne humana.

Existia, no Brasil, um forte movimento abolicionista. Havia homens ilustres em todas as classes que compreendiam o terrível mal humanitário, econômico, político e moral que a escravidão representava para o país. O maior empresário brasileiro da época, Irineu Evangelista, o Barão de Mauá, pregava, sempre, que a escravidão não era apenas uma vergonha, era também um atraso para a nação.

Mesmo assim, Dom Pedro II nunca fez nada em favor da imensa, e crescente, população negra brasileira. Dom Pedro II tornou-se famoso por se interessar pela ciência, por ser um homem moderno e humanista. Na verdade, era o oposto disso: tratava-se de um covarde. Submeteu-se aos barões do café, permitiu que uma elite atrasada mantivesse o Brasil nas trevas enquanto o mundo inteiro avançava para as luzes.

Não, a família real brasileira não merece homenagens no Dia da Consciência Negra. Merece repúdio. Porque os negros não ganharam a liberdade; os negros foram abandonados à própria sorte. Assim foi em 1888 e tem sido até agora. O Brasil pouco faz para a real integração dos homens de origem africana à sociedade. Os negros é que fazem por si. Como fizeram ao decidir, eles próprios, o herói que deveriam reverenciar em seu dia.

Pois justamente neste Dia da Consciência Negra de 2020, um homem negro foi assassinado por dois seguranças no estacionamento de um supermercado no IAPI. Homens negros têm gritado, desde então: "Foi racismo!".

Você, se é branco, pode considerar essa afirmação subjetiva. Porque, de fato, ela é. O racismo, em um caso desses, está na intenção, mais do que no ato, já que homens de todas as etnias são assassinados todos os dias no Brasil. Mas os homens negros compreendem algo que um branco não compreenderia. Compreendem que eles, negros como o homem que morreu, poderiam estar em seu lugar. Um branco talvez não entenda que ele, por ser branco, provavelmente, não. É esse sentimento que dá, aos homens negros, a convicção de que estão certos ao gritar: "Foi racismo!". Porque, há séculos, desde o Brasil Império, eles percebem a diferença. Há séculos, desde o Brasil Império, eles a sentem na pele.

DAVID COIMBRA

21 DE NOVEMBRO DE 2020
FLÁVIO TAVARES

Buva & bufões 

A pandemia do novo coronavírus se alastra tão ameaçadoramente, que faz esquecer outros perigos. Os bufões da política optaram, há muito, pela politicagem e, hoje, somos comandados pelas fanfarronices do dia a dia de governantes só interessados em promoção pessoal.

Os bufões que nos governam (e, até, os que se candidatam a governar) a cada dia mais se parecem à buva, aquela erva daninha que devasta lavouras. Aqui, infesta o tripé soja, trigo e milho (nossa base agrícola) e só é combatida pelo pesticida 2,4-D, chamado de "deriva" por ter derivações que chegam a cultivos vizinhos.

É tão eficaz para "limpar terreno", que, na guerra do Vietnã, os Estados Unidos o usaram como um dos "agentes laranja" para desfolhar florestas e ter alvo livre para bombardear.

Agora, o "deriva" está destruindo nossos parreirais e oliveiras na Campanha, além dos cultivos de tabaco, alfafa, ameixa, pêssego, noz-pecã e até a cotidiana salsa. Já atingiu mais de três dezenas de grandes cultivos e chegará a centenas mais. A aviação agrícola lança o pesticida para proteger soja, milho ou trigo e o vento espalha a maldade pelo ar ao longo de quilômetros sobre campo e cidades.

A perigosa dioxina foi banida há 25 anos, mas segue presente no "deriva" e afeta os humanos e seres vivos até em doses ínfimas. Eficaz contra macegas, o pesticida é como o remédio que, para curar, mata o doente?

Isto faz entender a semelhança entre bufão e buva - ambos fanfarrões, alardeiam e ferem até com o que não são. O desastroso é estarmos à mercê de um ou outro e dependermos deles no dia a dia.

Mas há, também, o contrário disto. Há os descobridores do futuro, como Oskar Coester, que nos deixou dias atrás, aos 82 anos. Ideou e desenvolveu o aeromóvel, único meio moderno de transporte que nada polui, mas que a cegueira dos bufões não viu, talvez por Coester ter nascido aqui, à volta da esquina, e não se exibir. Foi implementado apenas em 800 metros junto ao aeroporto, mais como "consolo" do que por necessidade.

Poderia facilmente ir até o hospital da PUC e à PUC pela Avenida Ipiranga, que já tem, até, espaços para as pistas elevadas. A cegueira dos bufões, porém, não viu, nem agora algum candidato a prefeito percebeu como saída para desafogar o trânsito brutalizante da Capital nas horas de pico.

Por que os bufões imitam a daninha buva?

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES

21 DE NOVEMBRO DE 2020
OPINIÃO DA RBS

A VIOLÊNCIA NÃO PODE VENCER

O assassinato de João Alberto Silveira Freitas, 40 anos, não é um caso isolado nem o resultado de uma fatalidade. A violência racial, expressa em posturas políticas, palavras, gestos, pontapés, socos e tiros, é parte da rotina de milhões de negros em todos os continentes. No momento em que Porto Alegre ocupa um desonroso lugar nas manchetes do mundo inteiro, cabe-nos expressar indignação incondicional diante da barbárie.

Não podemos mais tolerar esse tipo de crime como se fosse inevitável. Mas para que esse esforço não perca o foco, toda e qualquer violência deve ser evitada e condenada, inclusive a observada ontem, em Porto Alegre e em São Paulo, com depredações e enfrentamentos entre desordeiros e forças de segurança pública. Os quebra-quebras são obra de uma minoria, que não representa os milhões de gaúchos e de brasileiros chocados com a morte de João Alberto. O livre direito às manifestações deve ser exercido na sua plenitude, como forma democrática de pressão sobre a sociedade. Existe, porém, um ponto definidor dessa reação. A violência se autoalimenta, formando uma espiral com consequências nocivas para todos e contrárias à luta por mais justiça e igualdade.

A indignação é legítima e necessária, mas sua expressão não pode, em hipótese alguma, se desviar do caminho construtivo estabelecido pelas leis.

Neste contexto, a resposta deve ser ampla. As empresas e organizações têm o dever de reforçar treinamentos e práticas de compliance. O Estado tem o papel de prender e julgar os responsáveis de forma célere e de implantar políticas que preencham a lacuna de oportunidades que amassa as populações negras no Brasil. Aos indivíduos, cabe cobrar e praticar, nas suas áreas de alcance, condutas alinhadas com a inclusão, com o respeito e com a diversidade.

Os nomes de negros assassinados em condições similares têm origens e sotaques diferentes: George Floyd, 46 anos, asfixiado por policiais brancos em Mineápolis, Estados Unidos, ou João Pedro, 14 anos, baleado dentro de casa, em São Gonçalo, Rio de Janeiro. Em comum, o descaso com a vida e a cor da pele. O racismo estrutural não é um problema apenas dos negros. Mais do que tudo, é uma ferida aberta em todos e em cada um, pelos seus efeitos nefastos na dinâmica social e na realidade objetiva de indivíduos, famílias e comunidades. O filósofo francês Jean-Paul Sartre, em um de seus textos, bem pontuou: o racismo é uma doença do racista, e não das suas vítimas. Já passou da hora de buscarmos, juntos, uma cura. O caminho é penoso, mas necessário.

A mobilização rápida, correta e positiva de autoridades e entidades, diante da bestialidade perpetrada no supermercado da Capital, é um sinal positivo de uma esperança que tem longa história. Em 1963, Martin Luther King discursou diante de 250 mil pessoas em Washington. Pronunciou, então, a sua frase mais célebre e bela, projetando um futuro luminoso que, infelizmente, ainda não chegou: "Eu tenho um sonho", disse o maior líder dos direitos civis da história dos Estados Unidos. King morreu assassinado. Seu sonho, apesar de tantos pesadelos como o de hoje, ainda vive.

 


21 DE NOVEMBRO DE 2020
ARCELO RECH

Retórica empacada 

O que Donald Trump, Jair Bolsonaro e Lula têm em comum? Os três são expoentes de um fenômeno que se delineia no mundo da hipercomunicação: todos falam muito, estrilam constantemente, exageram à vontade e, por isso, passam a discursar cada vez mais para as paredes ou apenas para seguidores mais fanáticos. Os reis da retórica se comunicam várias vezes ao dia vias redes sociais ou por declarações em ambientes controlados, onde não podem ser contestados diretamente. Pela repercussão digital entre os convertidos, acham que estão abafando. No mundo real, estão sendo ignorados.

Nos pratos do dia, Trump recita que venceu as eleições, Bolsonaro reproduz a paranoia sobre a segurança das urnas eletrônicas e Lula se considera o condenado mais honesto do planeta. Em breve, Trump será história e, como tantos outros ex inconformados com a rejeição das urnas, se dedicará a tentar emergir do ostracismo. Bolsonaro ainda tem metade do mandato pela frente, mas, com o governo travado pela falta de agenda e reformas, só logra chamar a atenção quando comete uma gafe ou recorre ao ultraje, como no caso do país-de-maricas e da pólvora-quando-acabar-a-saliva. É o efeito cometa: brilha por um tempo, cega alguns e depois some na escuridão até a próxima aparição. Já Lula despertava mais interesse durante o silêncio forçado de seus 580 dias de prisão. Livre e de volta à verborragia, perdeu a aura de injustiçado, e muitas de suas lives não atraem um público maior do que o eleitorado de Mutunópolis.

De tanto se repetirem, os três empacaram em retóricas que produzem uma sensação de fastio e não movimentam peças da realidade. Não surpreende, portanto, que os protestos de Trump passem batido, que apenas 13 dos 59 candidatos endossados por Bolsonaro tenham conseguido se eleger em 15 de novembro e que Lula assista ao outrora reduto petista de São Paulo derreter, com seu candidato e prestígio, para 8,7% dos votos, o pior desempenho da história do partido na cidade.

Na era da hipercomunicação, o excesso vulgariza e neutraliza as manifestações, transformando-as em paisagem. Estão ali, mas poucos dão bola. Quando muito, geram torrentes de memes e piadas. Como se constata nas redes, as declarações de Bolsonaro e Trump, como já ocorreu com Lula e Dilma em tempos outros, são inesgotáveis fontes para pilhéria. Já é alguma coisa. Pelos menos não se cai no sono.

MARCELO RECH

21 DE NOVEMBRO DE 2020
J.R. GUZZO

O desmanche do PT 

Pouco se ouviu falar do ex-presidente Lula depois de encerrado o primeiro turno das eleições municipais. Para dizer a verdade, também não tinha se ouvido muita coisa antes, durante a campanha. Não combina, nem um pouco, com o protocolo geral da ciência política brasileira dos últimos 40 anos, ou quase isso. Afinal, não se faz política neste país sem que Lula seja levado em consideração, como a peça-chave do jogo, em qualquer momento, situação ou perspectiva eleitoral.

Talvez o mais correto, hoje, seja mudar o tempo do verbo: não se fazia política sem Lula. Pelo jeito, como parecem indicar essas eleições, já estão começando a discutir a política do presente - e principalmente do futuro - sem que seja invocado o nome do ex-presidente do Brasil por dois mandatos e o grande chefe, sem a mínima contestação, daquele que foi um dos maiores partidos do país. Entre um momento e outro, o seu PT foi entrando em colapso progressivo e a peça-chave deixou de ser chave.

O desmanche do PT coincidiu com o desmanche do próprio Lula - ou, mais exatamente, foi provocado pela fogueira que consumiu o ex-presidente com a sua condenação pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro, e os 18 meses de cadeia que teve de puxar na Polícia Federal de Curitiba.

Um ano atrás, exatamente, Lula foi solto, mas politicamente foi como se continuasse tão anulado quanto estava durante o tempo em que ficou preso. De lá para cá, piorou. Lula já se colocou "à disposição" para, segundo sua análise da situação, "salvar o país do fascismo", ou algo assim. Ninguém ligou. Recebeu votos de admiração de Luciano Huck, João Doria e banqueiros de investimento que se descobriram como "homens de esquerda", mas isso não resolve a vida de ninguém. Enfim, nessas últimas eleições municipais, bateu no seu fundo do poço pós-Lava-Jato.

O candidato do Partido dos Trabalhadores na cidade que tem o maior número de trabalhadores do país - São Paulo - ficou em sexto lugar, junto com os concorrentes nanicos, no pior desempenho da sua história na capital. No restante do país, foi o mesmo cataclismo. Dos 630 prefeitos que o PT tinha em 2012, no auge de Lula, ficaram 179.

Poderá eleger mais um ou outro no segundo turno, mas isso não vai mudar absolutamente nada.

Estão colhendo, como estabelecem as leis da natureza, exatamente aquilo que plantaram. O PT nunca se formou como um verdadeiro partido, embora tivesse todos os adereços das grandes organizações políticas.

Durante o tempo todo, faltou o essencial: a defesa de um conjunto de ideias, e não de um indivíduo - e a consequente capacidade de sobreviver à pessoa de seu líder. Sem Lula, o PT não é nada. Como não houve Lula nas eleições, não houve PT nos resultados.

*Conteúdo distribuído por Gazeta do Povo Vozes

J.R. GUZZO*

21 DE NOVEMBRO DE 2020
CARTA DA EDITORA

Um dia de mobilização 

Desde quinta-feira à noite, quando chegaram as primeiras informações de que um homem negro, que fazia compras no Carrefour da zona norte da Capital, havia sido morto por vigilantes do supermercado, sabíamos que não estávamos diante de mais um caso policial dos que estamos acostumados a presenciar. Não se tratava de homicídio provocado por guerra de facções, de um latrocínio ou de um desentendimento entre clientes que levou um deles à morte. O caso - ocorrido na véspera do Dia da Consciência Negra - precisava ser visto por um outro ângulo. Não havia como desvinculá-lo de um problema secular do país: o racismo estrutural.

Às autoridades policiais compete a decisão sobre em qual ou quais tipos de crime os dois agressores serão enquadrados e pelos quais responderão perante a Justiça. A nós, jornalistas, compete acompanhar o desenrolar do caso e abrir o debate. Jamais saberemos se João Alberto Freitas foi espancado por ser negro (a não ser que os próprios agressores admitam), mas as estatísticas no país nos mostram que negros são a maioria das vítimas de episódios como o de quinta-feira.

Canalizamos todos os esforços da Redação Integrada de ZH, GZH, Rádio Gaúcha e Diário Gaúcho para ouvir os familiares de Beto Freitas e testemunhas oculares da cena, acompanhar as investigações da polícia, ouvir especialistas e autoridades e, principalmente, dar vozes a cidadãos negros.

Nesta edição, além da cobertura completa do que fizemos ao longo da sexta-feira, os colunistas Tulio Milman, Paulo Germano, Rosane de Oliveira, Marta Sfredo, Giane Guerra, Pedro Ernesto Denardin, Diogo Olivier, Leonardo Oliveira e Maurício Saraiva abriram espaços em suas colunas para que personalidades negras de diferentes áreas de atuação (esportivas, culturais, políticas, econômicas) contribuíssem com reflexões sobre a morte de Beto.

É também obrigação do jornalismo retirar das sombras chagas que insistem em sobreviver em pleno século 21.

DIONE KUHN

sábado, 14 de novembro de 2020


14 DE NOVEMBRO DE 2020
LYA LUFT

Vida politizada 

De pequena já implicava com política, essa entidade esquisita de que muito se falava. Comentários em geral não muito lisonjeiros e ficava imaginando por que alguém ambicionaria um cargo tão malvisto.

Certa vez, meu pai foi instado por seu partido a se candidatar à prefeitura de nossa pequena (naqueles tempos) cidade. Lembro dele se questionando, dialogando com minha mãe, caminhando de mãos nas costas no longo caminho de lajes que levava até o fim da propriedade.

Eu sabia que ele estava refletindo. Por fim, um dia anunciou na mesa do almoço que ia aceitar, fazer uma campanha limpa, sem falsas promessas, sem iludir as pessoas.

Não tenho grandes recordações de detalhes, eu devia ter seis ou sete anos, mas por algum tempo houve uma agitação diferente na casa. Meu pai saía de carro com companheiros para "fazer campanha", e perguntando entendi que era pedir votos.

Achei esquisito, pois sendo ele conhecido e respeitado como homem culto, bom, honrado, por que não o escolheriam todos espontaneamente?

Quando mais uma vez perguntei, desta vez diretamente a ele, achou graça e me disse que até Cristo, vindo à Terra como candidato, não teria vitória garantida. Não entendi, mas fiquei achando perigosa e traiçoeira essa senhora Política.

Afinal, nessa sua única tentativa de se envolver com ela, entusiasmado com sua proposta de honradez, clareza e sinceridade, meu pai foi fragorosamente derrotado.

Não sei detalhes, sei de minha mãe chorando e repetindo "eu te disse pra não se envolver nisso", meu pai alguns dias mais taciturno, muitos telefonemas chegando, e, por fim, alguma vez ele se dizendo aliviado, "eu realmente não sirvo pra isso, muito sacrifício".

Estou comentando essas memórias da remota infância nestes dias doidos em que tudo vira política, a começar pelo diabólico coronavírus: "realidade ou invenção causando pânico planejado" ou "doença grave que parou o mundo, matou milhões e vai nos deixar mais pobres, atrasados e isolados, com que ninguém ainda sabe lidar direito"?

Brigas políticas ou ideológicas (há diferenças, ideologia é palavra um pouco mais nobre?) atrasam lamentavelmente até uma possível vacina; enganam e prejudicam multidões que debocham de cuidados essenciais como isolamento e máscara; e, ao menos por aqui, deixam muita gente atordoada, agressiva, criando inimizades antes inimagináveis.

Talvez política não sirva para isso, mas idealmente deveria ajudar a pensar e a se posicionar para o bem geral, liderar com sabedoria e humanidade, e nos tornar um pouco mais tranquilos, realizados, ao menos esperançosos.

Lembro meus seis ou sete anos e nossas escolhas. Será que em algumas coisas progredimos?

LYA LUFT

14 DE NOVEMBRO DE 2020
MARTHA MEDEIROS

Quero ver Kamala dar sua risada 

Neste fim de semana escolheremos prefeitos e vereadores em todas as cidades do país. Que os eleitos e eleitas tenham boas propostas e as cumpram, e que a gente não se arrependa do nosso voto. Fizemos nossa parte: analisamos currículos, acompanhamos debates, desconsideramos alguns partidos e agora é cruzar os dedos, pois saber no que vai dar, ninguém sabe.

Honestidade, inteligência e trajetória limpa são atributos básicos para acertar na escolha, mas fica melhor ainda quando, além de critérios objetivos, somos fisgados por um carisma que sobressai e provoca uma rara familiaridade: é como se a pessoa em questão fosse nossa amiga de uma vida toda. Um exemplo disso, lógico, é Kamala Harris, a vice-presidente que comandará os Estados Unidos com Joe Biden. Se ela desempenhará bem sua função, o tempo dirá, mas aquele sorrisão traz uma promessa nova.

Estou julgando Kamala pelo sorriso? Estou, e ela me ganhou, também, por ser uma mulher que dança. E, pra arruinar de vez minha reputação como analista política (coisa que não sou), adoro que ela use terno com tênis. Adoro. Nem vou comentar o fato de ser uma mulher negra, filha de imigrantes, e que essa diversidade é cada vez mais necessária num mundo que precisa se tornar menos engessado.

O universo político ainda se divide entre sisudos prolixos, que não permitem que adivinhemos o que eles sentem, e os vulgares, aqueles que tentam combater a sisudez sendo esdrúxulos. É preciso avisá-los que se pode ser espontâneo e educado ao mesmo tempo.

Kamala é uma boa referência neste momento em que voltamos às urnas. Ela ajuda a lembrar que as palavras importam tanto quanto as atitudes, o tom de voz, a linguagem corporal, o espírito de cada um. Líderes devem ser assertivos e determinados, mas, de minha parte, quero também que se emocionem, que sejam brincalhões, que cantem junto com a plateia num show, que não esperem que os empregados façam tudo por eles, que tenham tempo para os filhos. Que sorriam com naturalidade, que os olhos brilhem muito e que tenham facilidade em se comunicar, sem depender sempre de um ponto eletrônico no ouvido ou de um teleprompter.

Junto ao combate à corrupção, à violência e ao desemprego, que se elimine também a empáfia. Chega de representantes empertigados que não conseguem transmitir nada verdadeiro com a expressão do rosto. Que os que se elegerem neste dia 15 comemorem com uma gargalhada gostosa, com carinho sincero pela sua cidade e, também, com um pouquinho de espanto, aquele espanto bom e desafiador que nos atinge quando nos confiam uma missão muito séria. É através da humildade e da autenticidade que os eleitos conseguem algo raro: que seus eleitores se reconheçam neles.

MARTHA MEDEIROS

14 DE NOVEMBRO DE 2020
CLAUDIA TAJES

Abrindo o voto 

Domingo eu vou votar em uma mulher. Em duas, considerando-se a vereadora. As três candidatas à prefeitura têm a minha admiração e o meu coração. O voto - que a essa altura interessa bem mais que o meu pobre coração - está decididíssimo. Já a escolha da vereadora foi mais difícil, as boas candidatas, engajadas, sérias, dispostas a trabalhar pela cidade, sem jeitinhos e sem maneirismos de outros carnavais, são muitas. Não posso dar os nomes aqui por questões éticas, mas são muitas as possibilidades. Periga meu dedo volúvel ainda mudar de ideia na última hora. Queria todas na Câmara.

Antes que eu pareça anticandidaturas masculinas, quero deixar claro que não é isso. Alguns dos candidatos a vereador também têm meu coraçãozinho. O voto é que, dessa vez, vai para uma guria. Estamos precisando de representatividade, meu povo. A divisão entre homens e mulheres nas câmaras e assembleias é muito desigual. Aí entra em votação um projeto que privilegia os de sempre e é aprovado por uma ampla vantagem pelos de sempre. Acredito - mesmo - que mais mulheres eleitas podem desequilibrar os interesses e demais conchavos que a gente já cansou de ver. Não qualquer mulher, óbvio. De umas e outras, velhas conhecidas da política ou eternas postulantes a qua§lquer cargo, passo bem longe.

É um exemplo um tanto fora do assunto, mas no fim de semana passado, no jogo entre Fluminense e Grêmio pelo Brasileirão, deu para se ter uma ideia da diferença de postura entre mulheres e homens no comando. Em geral as mulheres são bandeirinhas, nem sei se alguma já ficou no controverso cantinho do VAR. Pois no domingo passado o apito foi da Edina Batista, considerada a maior árbitra do futebol brasileiro. Que esteve em campo sem dar chilique, sem piti, discreta, eficiente, quase perfeita. Poderia, quem sabe, ter puxado um ou outro cartão nas patadas e voadoras mais vistosas, que não foram tantas assim. Até os jogadores pareciam mais calmos. Ao final os dois técnicos foram cumprimentá-la. É possível que fosse tudo diferente se o jogo ficasse tenso, mas aí é que está. A Edina não deixou a coisa fugir ao controle dela.

Também impressiona a carreira da juíza. Já era bandeirinha Fifa, mas queria apitar. Teve que recomeçar em jogos de divisões inferiores e subir aos poucos até virar árbitra Fifa. Com esse foco todo, só podia se sair bem.

Mudando de novo de saco para mala, estamos precisando de mais mulheres em outros campos tradicionalmente masculinos, como os tribunais, a defensoria, o Ministério Público. Agora que o julgamento - ou melhor, a condenação - da Mari Ferrer está disponível na íntegra no YouTube, é de se perguntar se uma juíza não interromperia os ataques do advogado e cidadão de bem Gastãozinho. Se fosse uma defensora pública, ficaria calada enquanto a cliente era violentada mais uma vez? Não consegui assistir ao vídeo todo. Meu estômago é sensível. Isso sem falar no lamentável depoimento do ex-acusado, agora inocente aos olhos da lei. Grande e musculoso, ele contou como foi assediado pela menina, e praticamente obrigado a levá-la para o quartinho onde, em poucos minutos, resolveu a questão. Será que também é rápido assim quando o sexo é consensual? Se for, clínica Alfa Men nele.

Para encurtar o causo, que acabou-se o prazo. Vote em mulheres para a Prefeitura e a Câmara de Porto Alegre - e de todos os lugares. Uma cidade com mais mulheres decidindo, pode crer, tem tudo para se tornar mais acolhedora e melhor de se viver.

CLAUDIA TAJES

14 DE NOVEMBRO DE 2020
MÔNICA SALGADO

A banalidade que habita em mim 

Saúde a banalidade que habita em você. E nesse clima eu acordo, às 7h10min, com o despertador gritando. Sim, durmo com o celular ligado, carregando. Com isso, infrinjo duas regras logo de cara: dormir com o celular ligado, supostamente emanando radiação prejudicial ao meu já prejudicado sono; dormir com o celular carregando, supostamente viciando a bateria que já alcançou 100%. Mas durmo com o celular ligado carregando mesmo assim.

Tomo metade do meu Ansitec e guardo a outra metade pra de noite. Dou uma checada rápida no WhatsApp. E levanto para acordar meu filho, que tem dormido no sofá ao pé da minha cama. Pois é, começou na pandemia. Deveria? Não deveria. Tá certo isso? Não, não tá. Porém ando tendo coisa mais importante pra resolver, outros focos pra aplicar minha ultimamente combalida energia, então fui deixando, deixando...

Ele enrola demais para acordar. A ponto de minhas investidas começarem fofas & açucaradas - "Meu amo-or! Bom dia, Bezinho" - e terminarem putas da vida - "Poxa, é todo dia esse drama pra levantar, tá sempre enrolando e atrasado. Olha que amanhã coloco o despertador pras 6h45min, hein?". E nunca coloco. Porque isso significaria eu ter que acordar a esta hora também.

Descemos pro café. Tapioca ou ovos mexidos? Muito café preto. Esse menino tem que parar de tomar achocolatado porque isso é puro açúcar. Cinco gotas de adoçante pra mim - aquele que dizem que dá câncer. Não consigo me acostumar com stevia (bicho amargo), muito menos com café puro. "Na primeira vez que você toma, é estranho. Depois acostuma", dizem to-dos a-que-les que tomam café puro. Não me convencem.

Saímos pra garagem. Volta, esquecemos a máscara! No carro do meu marido porque bati o meu há cerca de um mês e está no conserto. Novinho, nem placa tinha. Visto meu pijama e chinelos com meia. Nem preciso sair do carro, afinal. Ao chegar à escola... Tenho que descer do carro para abrir a porta pro meu filho, porque a bendita está com trava de criança.

Emendo com a academia do condomínio. Aquele bigodinho de suor me afogando atrás da máscara. A irritação com as pessoas que insistem em revezar três, quatro, cinco equipamentos, bloqueando todos a seu bel prazer. Em tempos de covid! Argh!

Volto pra casa. Minha cachorras voam pra cima de mim como se tivesse ficado uma semana fora. Me sinto importante. A pequenininha deixa escapar gotinhas de xixi de tanta excitação. Acho fofo, mas me irrita. Enxugo.

Tomo meu banho. Coloco minha """roupa de trabalho""" - assim mesmo, com três aspas. Moletom e camiseta. E as indefectíveis meias (não fico confortável sem). E dá-lhe Zoom, calls. Ou melhor, dá tempo de um Zoom só e olhe lá. E então já deu a hora de pegar o filho na escola.

Ele entra emburrado no carro. É o Lucca de novo. Chamou o Bê de bambi por ser são-paulino. Bocejos pra originalidade do Lucca. Chegamos direto pro almoço. "Mas por que não tem macarrão com salsicha?" Porque não dá pra fazer macarrão com salsicha todo santo dia. Ninguém vive saudável e bem alimentado comendo macarrão com salsicha todo dia.

Depois do almoço, é a hora dela, a tarefa de casa. Aquele momento em que você se pergunta o que o seu filho faz todos os dias na escola... Porque aprendendo aqueles conteúdos ele aparentemente não está. Você briga com ele, ele briga com você. Vocês parecem dois colegas da quarta série A.

Volto pro escritório. Tem coluna pra terminar, podcast pra gravar, planejamento de cliente para pensar, roteiro de live para escrever, conteúdo pras redes para criar com criatividade, dinamismo, originalidade... Essa vida de carreira solo às vezes cansa, viu? Saudade daquele salarinho pingando no fim do mês. Opa, já passou!

Abro um vinho? Não! Tô de promessa. Sem vinho minha mente não sossega. E pensa, pensa, pensa. Assisto um pouco de A Fazenda. Depois, O Vestido Ideal. Emendo com 90 Dias para Casar. Tomo mais meio Ansitec. Vai batendo o sono. Cubro meu filho com a manta de Homem-Aranha, no sofá aos pés da minha cama. Dou um selinho de boa noite no meu marido. Rezamos juntos um Pai Nosso. E descansamos de mais um dia - ou de menos um dia - cheio de banalidades. Destas que a gente chama de rotina e que, no fundo, nos dão a segurança e a previsibilidade de que tanto precisamos.

MÔNICA SALGADO