sábado, 16 de janeiro de 2021


16 DE JANEIRO DE 2021
INFORME ESPECIAL

Hino, interesse e desconforto

Li todas as mensagens e e-mails que chegaram sobre a proposta de mudar o Hino Rio-Grandense. Não saberia quantificar, mas foram muitas. A maior parte, contrária à ideia, o que não é pecado e nem, necessariamente, prova de racismo.

Dentre os aspectos que se destacam, um é especialmente revelador. A frase que mais li durante a semana foi "esse assunto não interessa", escrita dessa forma e de outras, menos elegantes. A um dos e-mails, respondi: "Se o senhor fosse tataraneto de escravos, como milhões de gaúchos e brasileiros são, talvez interessasse". Um outro leitor disparou: "...nosso Estado quebrado e tu falando nessa bobagem que não interessa". A ele, ponderei que a falta de interesse nesses e em outros temas talvez seja um dos motivos pelos quais nosso Estado está quebrado.

Depois, desisti.

Me dei conta de que o fenômeno não se resolve com uma resposta pretensamente afiada, que só alimenta o tom emocional da conversa, até que tudo vire um grande bate-boca.

É interessante constatar, porém, como fomos alterados pela lógica das redes sociais, nas quais estamos cercados por pessoas que pensam como nós e por ideias que convergem com as nossas. O resto, é só não seguir ou bloquear. Então, se não interessa para mim, não interessa para o mundo. Se o tema gera algum desconforto, é só apertar uma tecla e, instantaneamente, arremessá-lo a um calabouço virtual, profundo e sem volta.

Também há muita gente que, depois de ler, pensar e conversar, formou convicção sólida, seja ela favorável ou contrária à ideia. E isso reconforta. É também legítima a postura de, genuinamente, não se interessar pelo tema. Mas isso é bem diferente de achar - e gritar, esperneando - que escravidão, opressão, culpa e hino não devem ser debatidos porque "isso não me interessa". E até penso, com um certo alívio, que, se não interessasse de verdade, faria pouco sentido escrever e-mails, posts e mensagens, reclamando e xingando.

TULIO MILMAN

16 DE JANEIRO DE 2021
CARTA DA EDITORA

Olhar atento

Em outra ocasião, comentei neste espaço que o repórter, depois de publicar uma matéria investigativa, vira "dono" do assunto. É obrigação acompanhar o desenrolar dos fatos denunciados por ele próprio.

Em 2015, Humberto Trezzi havia feito uma reportagem intitulada "Minha casa minha fraude", em que mostrava como residências do programa habitacional Minha Casa Minha Vida construídas em Canoas, Esteio, Cruz Alta, Pelotas e Porto Alegre estavam sendo usadas de forma irregular. Eram vendidas, alugadas e até invadidas, virando moradias de pessoas que nada tinham a ver com o contrato original. Práticas proibidas, já que o programa se destina a pessoas carentes, que recebem o imóvel de forma que tenham condições de pagar por ele um valor simbólico.

Por duas vezes, em 2018 e no ano passado, Trezzi retornou ao tema para mostrar que essas práticas continuavam. Flagrou novamente moradores do Minha Casa ofertando imóveis para venda ou aluguel, sem que houvesse alguma fiscalização por parte das autoridades.

Na edição deste fim de semana, Trezzi, em parceria com Eduardo Matos, ambos integrantes do Grupo de Investigação da RBS (GDI), voltaram ao assunto, como mostra a reportagem das páginas 12 e 13, desta vez para revelar um número preocupante: 2.891 processos relativos a problemas construtivos ou de abandono de prédios populares no Rio Grande do Sul tramitam na Justiça Federal. Ou seja, além de venda e locação ilegais, há um outro problema envolvendo esses condomínios, que são as construções malfeitas ou abandonadas no meio do caminho.

De 2015 para cá, Trezzi já nota que há um olhar mais atento da Justiça para a área de habitações populares:

- Foram unificados procedimentos para evitar retrabalho nos julgamentos. Quando periciado um apartamento num prédio com problemas, por exemplo, vale de amostra para todos os inquilinos do edifício. Há estímulo a ações coletivas, também. Evitar que um só proprietário mova a engrenagem da Justiça - conta o repórter.

Colocar luzes sobre temas muitas vezes relegados ao esquecimento é papel do jornalismo. E ficar acompanhando os desdobramentos também. 

DIONE KUHN

domingo, 10 de janeiro de 2021


09 DE JANEIRO DE 2021
LYA LUFT

São só palavras

Renuncio às palavras e às explicações. Ando pelos contornos, onde todos os significados são sutis, são mortais.

Não quero perder o momento belo. Quero vivê-lo mais, com a intensidade que exige a vida: desgarramento e fulguração. Então me corto ao meio e me solto de mim: a que se prende e a que voa, a que vive e a que se inventa. Duplo coração: a que se contempla e a que nunca se entende, a que viaja sem saber se chega - mas não desiste jamais.

A vida chega em silêncio: desenovela reflexos, interroga a esfinge, que responde ou nega num espelho baço. (A resposta nunca é clara nem é pequena.) Não é a mim que vejo: é ao outro, num misto de incerteza e esperança de que não seja mais um rosto virado, uma boca cerrada - mais um desgosto a cada passo.

Desejo, sonho e medo, o amor é salto sem rede entre a razão e a magia. E só assim vale a pena.

Eu no espelho: atentas, nós duas nos observamos para além da imagem. Estendemos a mão, tocamos esse congelado rio, sabendo: se eu mergulhar daqui, e do seu lado, ela, vão se fundir num sopro nossos rostos, todos os meus sonhos e os anseios dela. Mas nenhuma se atreve. Continuamos sozinhas nesse mundo de reflexos, eu e ela incompletas, nuas e sós.

Tenho medo das águas do destino a invadirem o que penso e faço, numa linha de infinda contradição. Eu sou assim: quero fugir mas chamo, quero ficar mas me assusta não ter em mim nada seguro e certo.

Nunca receio a alegria, para a qual todos os milagres são normais. Mas, quando tarda quem amo, meu coração fica exposto e aberto. E mesmo assim eu persisto, e ainda assim eu espero como criança sozinha atrás do muro.

Era uma vez um corredor de amores, e uma casa ancorada no tempo da vida para não naufragar. Era uma vez viagens e descobrimentos. Era uma vez uma infância dourada e um quebra-cabeça possível de armar.

Quando perdi quase tudo, descobri que a dor não era maior do que o sonho. Quando esqueci o caminho, vi que o horizonte ficava do lado errado.

Quando só o meu rosto sobrava em cada espelho (e nada do lado de cá), juntei desalento e desejo e me reinventei com carinho. (Agora pareço comigo antes de o amor ser cancelado.)

A vida, como a ficção, é um teatro de desatino. Meus personagens: amantes, suicidas, sonhadores, seres rastejantes, criaturas aladas, simples humanos - crianças e seus segredos. O bem, o mal, o riso, o esgar, a procurada morte, a sorte, a sombra.

(Na beira do palco, como estrelas, penduro palavras: esse é o meu destino.)

Quando pareço ausente, não creias: hora a hora meu amor agarra-se aos teus braços, hora a hora meu desejo revolve teus escombros, e escorrem dos meus olhos mais promessas. Não acredites nesse breve sono; não dês valor maior ao meu silêncio; e, se leres recados numa folha branca, não creias também: é preciso encostar teus lábios nos meus lábios para ouvir.

Nem acredites se pensas que te falo: palavras são meu jeito mais secreto de calar.

LYA LUFT

09 DE JANEIRO DE 2021
MARTHA MEDEIROS

Meus brinquedos

O que eu mais queria, quando criança, era virar adulta. Quem escuta isso pensa que eu tive uma infância sofrida, só que não: correu tudo bem, com amor, estudos, lazer, amigos. Apenas tinha certeza de que seria mais feliz quando virasse "gente grande" e pudesse escolher livremente meus brinquedos favoritos. E deu-se como eu previa.

Pequena ainda, brincava de Suzi (a Barbie da época) e com outras bonecas. Brincava também com os brinquedos do meu irmão (carrinhos, forte-apache, mesa de botão) e gostava muito de atividades ao ar livre: andar de bicicleta, jogar caçador, pegar jacaré no mar (o nome das brincadeiras varia conforme a região do país). Mas algo me avisava que eu me divertiria ainda mais com o que viria pela frente.

Tudo começou com a máquina de escrever que ganhei aos 13 anos. Datilografar virou uma brincadeira tátil e sonora, e pensei em ser secretária quando crescesse. Por contingência do destino, acabei virando redatora publicitária, depois escritora e, por consequência, secretária de mim mesma - nunca mais desgrudei de um teclado. Se eu tivesse que escrever com caneta tinteiro, como os autores de antigamente, não persistiria na carreira literária.

O prazer transforma tudo o que faço numa atividade lúdica. Talvez esteja aí o segredo de considerar que a vida pode ser leve quase sempre, bastando encarar as tarefas inspirando-se naquela criatura que costumamos chamar de "nossa criança interior".

Quando estou no pilates, me divirto com os malabarismos exigidos (ainda que pragueje de vez em quando). Adoro fotografar, e eis que os smartphones e seus filtros nos deram a ilusão de ser um Cartier-Bresson. Ler é formidável, ainda mais com um lápis colorido na mão, assim posso marcar as passagens que me tocam e as verdades que me calam - muito melhor que desenhar, coisa que não sei fazer.

Eu fugi de casa uma vez, devia ter uns sete anos. A aventura durou até eu dobrar a esquina, quando fui resgatada antes de sumir no mundo: em 10 minutos, estava de volta ao meu quarto. Depois disso, fugi outras centenas de vezes (para Mykonos, Ouro Preto, Havaí, Japão, Florianópolis, Buenos Aires, Londres) sem que ninguém corresse atrás de mim. Foram escapadas igualmente palpitantes, com a vantagem de que duraram dias, semanas, meses, e não 10 minutos.

Acompanhar o florescer de uma orquídea, colocar uma mesa bonita para um jantar especial, dançar na sala, dirigir um carro numa estrada cinematográfica, dormir numa cama que não é a minha, passar um batom vermelho, escolher um colar para presentear uma amiga.

Meu espírito curioso e encantado continua onde sempre esteve - a não ser que se considere que adultos não devam mais brincar. Eu brinco o tempo todo, mesmo sendo tão difícil de explicar.

MARTHA MEDEIROS

09 DE JANEIRO DE 2021
CLAUDIA TAJES

Amor verde

Nunca fui muito fã de Star Wars - mil desculpas aos adoradores, que são bilhões em todo o planeta. Quer dizer, até gostei dos filmes originais, os que vieram lá nos anos 1970, que mais tarde descobrimos não serem os primeiros, e sim o 4, o 5 e o 6. Depois disso, tudo se confunde para mim, o som das lutas intergalácticas (chaaaaaato) se sobrepondo às tramas e aos personagens. O Darth Vader era bom e ficou mau, a princesa Leia usava umas trancinhas em formato de fone de ouvido, todo mundo era meio parente e, volta e meia, um sabre de luz cortava a mão de alguém.

Também tinha os dois robôs que as crianças amavam, o Chewbacca - peludérrimo e armado até os dentes -, um barzinho maneiro com seres que bem poderiam estar nas saudosas festas do Ocidente (Bonfim, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, América do Sul, Planeta Terra) e, claro o mestre Yoda. Uma simpatia enrugada que invertia a ordem das palavras, e não é que as frases ficavam mais interessantes?

Não tente fazer isso em casa, um adulto imitando o mestre Yoda, a essa altura do campeonato, seria deprimente.

Comecei a ouvir sobre The Mandalorian - até dá para chamar de O Mandaloriano, mas os aficcionados falam The Mandalorian, e Deus me livre de desgostar para além da minha confissão ignorante de não sentir nada por Star Wars - dentro da minha própria família. Um seriado com personagens resgatados dos filmes originais de Guerra nas Estrelas, que espetáculo, que maravilha, estreia logo, quero, preciso, pelo menos uma coisa boa em 2020! Passei meses ouvindo essa ladainha. E pensando: gente, o mundo caindo e eles estão por um seriado de TV. Eu, como sempre, estava (e estou) pela vacina.

The Mandalorian é uma série sobre um mandaloriano, e que raios é isso? Ah, um guerreiro do planeta Mandalore sujeito rústico que usa uma armadura e nunca tira o capacete. Em linhas gerais, é isso, embora o pessoal que coabita comigo não concorde com a simplificação.

O tal mandaloriano é um caçador de recompensas que recebe a missão de encontrar um fugitivo. Não pretendo dar spoiler, apenas revelar a única razão que me levou a assistir à série com tanta coisa mais urgente para fazer, entregar capítulos do meu trabalho, ler os livros acumulados e limpar a cozinha - que, por mais que eu me esforce, sempre me dá um baile.

Passei pela frente da TV bem quando o bebê Yoda apareceu na tela. E ele me enfeitiçou.

Uma impressão racional: quem criou o bebê Yoda é um gênio. Jon Favreau é o nome do consagrado. Ator, diretor, roteirista. Não só inventou o personagem mais carismático em muito tempo, como ainda descobriu uma mina de ouro. Tanto quanto os filmes, as vendas do boneco, e de toda a cacarecada que vem junto, devem ter garantido um Papai Noel bem gordo para a Disney. É a velha máxima do dinheiro chama dinheiro.

E, para terminar, uma impressão emocional. Talvez seja pela carência de encontrar alguma coisa fofa e querida e ingênua em um ano tão sofrido quanto 2020, mas o bebê Yoda conquista quem o vê. Nos bastidores, atrizes e atores contam que quase morriam de amor ao contracenar com ele, um robozinho muito bem manipulado por artistas que morriam de amor ao dar vida ao personagem.

O bebê Yoda, que na verdade se chama Grogu, parece o bebê que eu tive um dia. Mesmas reações. As mãozinhas que querem pegar tudo. O descontrole diante de guloseimas, sendo as do Grogu tão nojentinhas quanto as balas de dentadura, por exemplo. Meu filho nunca foi esverdeado, mas as orelhas eram parecidas com as do bebê Yoda. Encontrei no Youtube um compilado só de cenas do Grogu. Quando fico triste, quando me entedio, quando vejo o presidente vociferando contra a vacina, puxo o celular e dou uma espiadinha nele. O próximo passo é colocar a foto da criatura na carteira.

Só pode ser amor recolhido. Está chegando a hora de adotar uma criança. E não precisa ser verde. É amor de verdade, pode ser de qualquer jeito, de qualquer tamanho, de qualquer planeta, de qualquer cor.

CLAUDIA TAJES

09 DE JANEIRO DE 2021
LEANDRO KARNAL

O TEMPO ATRÁS E PELA FRENTE 

Não! Não escrevi votos de ano-novo, daqueles que estarão gastos até o Carnaval. Nunca recomendarei: perderei cinco quilos em 2021, lerei dois livros por mês ou guardarei 20% do meu salário como fundo de reserva. Votos de ano-novo são como rosas belas na madrugada do novo dia: belas e perfumadas, mas a caminho de murcharem por completo. O tempo é precioso, mesmo que, no início de uma jornada anual, pareça mais extenso. Não faço votos. Não prescrevo promessas. Sugiro reflexões. Sugiro uma tela para que você insira suas cores e estilo. Estimulo sua consciência. Não guiarei sua mão, apenas indicarei pincéis.

Vamos começar com um conceito da economia. Entendemos commodity como um produto bruto, quase sempre em grande quantidade, vendido em estado próximo ao natural. As commodities são matérias-primas como, por exemplo, soja, madeira, petróleo ou café. Para usar uma palavra menos conhecida, são bens fungíveis, ou seja, bens móveis que podem ser substituídos por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade.

Há um valor que eu chamaria de a suprema commodity: o tempo. Toda mercadoria que eu adquiro custa algum tempo da minha vida. Tive de trabalhar para comprar o celular. Troquei tempo de vida trabalhando por um bem. Gente rica troca minutos ou segundos. Outros precisam de meses, anos até...

Eventualmente, posso gastar para comprar algum tempo. Todos que contratam uma faxineira tentam obter tempo para outras atividades. Eu, se for rico, posso ter centenas de assessores e empregados, para que nada do meu precioso tempo seja desperdiçado ao telefone, limpando ou comprando coisas. Porém, com 200 contratados ou nenhum, meu tempo se esgota. Essa é a dinâmica cruel da maior commodity, o tempo. Posso torná-lo mais e mais estratégico (mesmo não sendo rico). A pessoa que passa no banco para retirar dinheiro e aproveita para ir ao súper na volta e vai respondendo a mensagens enquanto espera na fila do caixa está sendo profundamente estratégica com seu tempo, tanto quanto Bill Gates, que possui uma tropa de assessores ao seu dispor. A pessoa comum e Bill Gates têm algo em comum: um tempo infungível, impossível de ser trocado ao final. Quando o tempo acaba, ele, de fato, termina. Parece idiotice repetitiva, porém, é a chave da vida. Aproveitando ou não, todos terminam de gastar sua cota de tempo. Posso ampliá-lo, estendê-lo com medidas práticas, economizar e até esbanjar: ele termina. Inexorável.

Isso indica uma pressa e uma tranquilidade. A pressa é para não gastar em vão essa commodity. Evitar perder tempo. Isso não implica trabalhar como um condenado, todavia, trabalhando ou descansando, lendo ou namorando, sempre ter presente: não perder, não desperdiçar, não gastar com atividades inconscientes A segunda sensação é uma tranquilidade, como eu disse. Seria como uma bola que está caindo: se você gritar, se ajoelhar, se desesperar ou rir, ela continuará sua trajetória rumo ao solo. O tempo é seu e ele está se esgotando. Você pode ganhar e trocar por outras coisas prazerosas, não pode evitar que ele se esgote.

Como aproveitar a matéria-prima de vida? Darei exemplos. Não desperdiçando tempo com gente que não vale a pena. Evitando contatos sociais que nada representam. Não fazendo fofocas. Parando de enviar mensagens sem sentido ou povoando caixas de mensagens alheias com imagens despropositadas. Exercer curadoria afetiva ativa. Selecionar sempre! Investir em menos gente com maior vínculo. Quando descansar, entregar-se ao relaxamento. Quando estiver com sua família, entrar de todo coração e cérebro na conversa. Quando trabalhar, focar em um ponto e produzir muito. Isso seria, para mim, o "aproveitar" o tempo.

Como ficar tranquilo? Pare de correr tanto. Sim, você pode chegar 10 minutos mais cedo e, somando meses de pressa, ganhará horas. Só que a vida não tem banco de horas. Você não poderá usar tempo sobressalente ao final. O tempo tem um final, para quem correu muito, pouco ou nem tanto.

Pergunta central para o ano de 2021: se o tempo é o valor mais importante de todos, com o que eu gastarei, trocarei, insistirei ou aproveitarei o meu tempo? Tempo é vida. Com quem e com o que eu gastarei minha vida-tempo? Quais conversas podem valer, de verdade, a pena? Quais festas, almoços jantares, trabalhos, beijos e abraços são tão importantes que eu possa dizer: aqui estou usando meu tempo infungível, porém, é o que faz essa commodity valer a pena? Com o que eu gastarei lembrando-me de que entrego tempo de vida para cada produto que adquiro? É importante? É fundamental? É indispensável? Se eu respondo sim a tais perguntas, é hora de trocar tempo-vida por mercadoria-tempo, aquilo que eu dizia ser a fungibilidade temporal.

Se nossa vida é uma empresa e toda vida humana terminará com o fechamento da matriz independentemente do sucesso ou do fracasso, resta tornar nossa aventura de empreendedor biográfico a mais fascinante possível. Escrevo isto para me convencer do que eu digo. Falo para me ouvir. Quero ser sábio no uso e no investimento do tempo. Se minha empresa-vida é única, os depósitos devem ser de felicidade.

É uma montanha-russa e, como 2021, um dia terminará. Então, erga os braços, grite e sinta o friozinho das descidas e subidas. Tudo passa, o importante é que tenha valido a pena. É preciso usar o tempo com esperança. Entre o começo e o fim, tem uma coisa chamada vida.

LEANDRO KARNAL

09 DE JANEIRO DE 2021
INOVAÇÃO

O FIM DE UMA ERA das corporações

Sempre que deparamos com ambientes descolados, pensamos: Certamente eu trabalharia neste lugar. Não acredito que eles tem pufes coloridos e uma roda gigante no meio de uma sala de reuniões. Com certeza tem um unicórnio por aqui. Mas o que nos atrai nesses ambientes além do visual, das cores e objetos cuidadosamente posicionados e do desejo de trabalhar em um local com uma geladeira cheia de comes e bebes?

Por muito tempo, a humanidade viveu a era do tijolo, que evoluiu um pouco para a era do pufe colorido. Ambientes abertos, aconchegantes, com regras flexíveis e, muitas vezes, melhores do que as nossas próprias casas. Aí veio a covid-19 e fomos forçados a descobrir nossas casas, nossas cadeiras não tão aconchegantes, nossa vista não tão glamourosa e nossa "copa" não tão recheada.

Nos primeiros meses, queríamos de volta o que tinham nos tirado, o lanche, o café na cafeteria ou um campeonato de Fifa no meio da tarde com colegas. Mas, depois, muitos de nós começaram a perceber o valor de estar em casa, de pijamas, fazendo o próprio café com torradas e trabalhando. Trabalhando muito. Vendo que as possibilidades de conexões com pessoas eram infinitas. Que a nossa equipe já não estava restrita àquele espaço do quinto andar de um prédio. A nossa equipe estava no mundo. Alguns em apartamentos, alguns na praia, alguns no campo. Todos trabalhando, ainda mais do que no antigo momento de vida. E felizes. Encontramos desafios e oportunidades de construção de um modelo híbrido, a distância. Mas não só um modelo, e sim a forma como percebemos o mundo: o tijolo não nos controla, nós controlamos o tijolo.

Outro ponto importante é a nova corrida do ouro. E, desta vez, o ouro é a transformação digital. O que era conteúdo de palestra e eventos virou foco da estratégia de startups, micro e grandes empresas. A inovação tecnológica agora é cobiçada por mercenários do desenvolvimento econômico e social. As startups viraram a coqueluche da população empresarial. Todas as empresas querem ter as suas startups de estimação. Por isso, começam a se aproximar dos ecossistemas existentes e a criar os seus próprios. Hub A, Hub B, Programa de Aceleração X, Desafio do Super Y etc.

E como fazer com que a inovação chegue ao mundo corporativo nesse modelo anywhere? É o próximo passo, o tal do futuro que já chegou. Em um mundo tão aberto como o de hoje, o grande desafio é descobrir os novos talentos empreendedores e os negócios que estão sendo criados longe das bancadas das universidades e dos parques tecnológicos e levá-los até esses ambientes.

Ficam algumas questões para refletir: os ecossistemas de inovação serão absorvidos pela sociedade ou a sociedade será o próprio ecossistema de inovação? Qual o papel dos negócios em um ecossistema de inovação? Qual é o valor que entregamos para o nosso cliente? E se ele estivesse fisicamente distante da sede da nossa empresa, entregaríamos valor a ele? Como tangibilizar os ativos do ecossistema no ambiente digital?

As respostas estão nesses eixos importantes: pessoas + colaboração/engajamento + impacto + diversidade + negócios.

E os desafios se colocam a partir de quatro questões:

1) Como criamos nossa visão para o futuro e identificamos as prioridades para chegar lá?

2) Como inspiramos e capacitamos as pessoas?

3) Como executamos em meio a mudanças constantes?

4) Como ser (equipe) anywhere e ter (ferramentas) o anywhere como proposta de valor?

Já as oportunidades surgem a partir de quatro eixos:

1) Escala

2) Inspiração de dentro para fora

3) Ressignificação dos ambientes físicos

4) Conexões (ampliação de possibilidades)

É a partir daí que podemos imaginar uma nova era, adaptados não apenas para sobreviver, mas para prosperar. 

LEANDRO POMPERMAIER

09 DE JANEIRO DE 2021
DRAUZIO VARELLA

FELIZ ANO NOVO 

Há motivos para festejar a chegada de 2021. Não, prezada leitora, não sou otimista alienado nem costumo escrever sob os efeitos do álcool ou de qualquer alucinógeno.

A primeira razão para comemorarmos, é estarmos vivos. Acha pouco? Cerca de 200 mil brasileiros não tiveram a mesma sorte, muitos dos quais com idades próximas à nossa, fatores de risco e estilo de vida semelhantes.

A segunda é a chegada da vacina que no início da pandemia não passava de um sonho. O que acontecerá no ano que se inicia?

Tudo indica que a epidemia brasileira continuará fora de controle por muitos meses. O impacto da vacinação será insuficiente para o retorno à rotina de antes, até que a porcentagem de vacinados atinja 80% ou mais da população, como indicam os estudos mais recentes sobre a imunidade coletiva a esse coronavírus.

A tarefa de imunizar mais de 160 milhões de brasileiros não seria trivial, ainda que já tivéssemos contratado as 320 milhões de doses necessárias. Nos passos trôpegos em que andamos, quanto tempo levará?

Da mesma forma, nada faz crer que o governo federal deixe de ser inimigo feroz das medidas preventivas indicadas pelos especialistas do mundo inteiro.

De onde, então, viria meu otimismo, estimado leitor?

Vem dos ganhos sociais. O SUS deu provas de que é capaz de se reinventar quando existe vontade política. As demonstrações de solidariedade das pessoas e da iniciativa privada com os estratos mais desassistidos da população têm sido inúmeras, até surpreendentes numa sociedade egocêntrica, insensível ao sofrimento alheio como a nossa, em que o conceito de comunidade é uma abstração.

Emergiremos dessa epidemia mais preparados para enfrentar a próxima, mais conscientes de que governantes irresponsáveis podem provocar desastres, de que não devemos esperar que os governos resolvam todos os problemas sem nossa participação e, acima de tudo, convencidos da imoralidade da desigualdade social que nos tornou um dos países mais violentos do mundo.

Na história da humanidade, guerras e epidemias, ao lado das iniquidades impostas, catalisaram progressos científicos, avanços tecnológicos e aceleraram transformações sociais que teriam levado décadas para acontecer.

Nos últimos 10 mil anos, a humanidade conviveu com a escravidão. Egípcios, gregos, romanos e outros povos guerreavam para roubar riquezas, expandir territórios e aprisionar escravos para assegurar os privilégios de seus cidadãos bem nascidos. Mais tarde, o colonialismo não faria diferente: sequestraria indígenas e africanos de pele preta para escravizá-los em países como o Brasil, o último a declarar o fim desse crime inominável. Não custa lembrar que a Lei Áurea foi assinada há apenas 142 anos (meus avós já tinham nascido).

Hoje, olhamos para nossos antepassados com desprezo: como compactuavam com realidade tão ignóbil?

A mesma indignação revoltará os jovens das próximas gerações. Perguntarão como conseguíamos viver num dos países mais desiguais, sem lutar por uma distribuição de renda menos perversa? Como permitíamos que os 10% mais ricos ficassem com 43% dos rendimentos per capita, enquanto aos 10% mais pobres coubesse 0,8%, ou seja, 53 vezes menos?

Seremos desprezados por eles como o foram os senhores de escravos e suas legiões de capitães de mato, encarregados de perseguir os que ousavam ir atrás da liberdade.

A pandemia nos ensina que nenhum de nós estará seguro enquanto houver brasileiros infectados. Portanto, lavar as mãos, usar máscara e evitar aglomerações são medidas que continuarão necessárias durante o ano de 2021, com grande probabilidade de invadir 2022.

Nem a vacinação nos livrará desses cuidados. Primeiro, porque nenhum imunizante protegerá 100% dos que o receberem, depois porque mesmo vacinados e protegidos poderemos adquirir o vírus sem ficar doentes, mas carregá-lo em nossas mucosas para infectar familiares e disseminá-lo nas andanças pela comunidade.

Apesar de nos chocarmos com a inconsequência estúpida dos que se aglomeram sem máscara em festas e bares, insensíveis à possibilidade de infectar os pais e os avós, não devemos esquecer que eles representam a minoria dos brasileiros. A maioria é formada por pessoas conscientes, que não querem correr risco de pegar o vírus e muito menos de transmiti-lo para a família e a sociedade.

DRAUZIO VARELLA

09 DE JANEIRO DE 2021
BRUNA LOMBARDI

A INOCÊNCIA FELIZ 

Dizem que só os inocentes são felizes, aqueles que não sabem, os que, de certa forma, conseguem estar à margem e não absorver os acontecimentos. Ser feliz seria, portanto, ignorar a realidade.

Penso nisso com constância. Nessa máxima de que não é possível achar a felicidade consciente do mundo real. Que, diante do dilema entre saber e desconhecer para evitar que a dor nos invada, ficamos nessa gangorra de emoções.

Como ser feliz com a realidade que nos cerca? Aqueles que se blindam e ignoram o mundo propositalmente criam apenas um fosso entre eles e o resto e, ao cortar essa comunicação, sentem um imenso vazio. Não compreendem que o separatismo corta o fluxo de energia e ninguém será feliz sendo ilha pois, como disse John Donne, somos todos um grande continente.

Existem inúmeras realidades nesse planeta. Mas, como seres de percepção egocentrista, acreditamos que aquela que conhecemos como realidade é a única. E para proteger ou reforçar nossa visão, a tendência será ignorar todas as outras.

Classificamos como estranho, étnico, exótico aquilo que desconhecemos, o que não nos traduz. E só existe como real para nós o eco da nossa infância, origens, memórias sensoriais.

A realidade para quem nasceu no interior de Minas ou no norte da Lapônia, no sul da Irlanda ou nos pampas gaúchos, em Upolu na Samoa, em Katmandu, na Bósnia ou em Andorra, tem semelhanças? As lembranças de quem são mais reais?

Ou mesmo quem nasceu em alguma realeza, cercado de luxos descomunais, vai negar sua própria realidade?

Quem largou tudo para se fechar num convento ou viver num templo no alto do Nepal ou no Butão é fora da realidade?

Ser feliz sem motivo é a mais autêntica expressão da felicidade. No entanto, essa ideia se afasta de nós, quando a interpomos com as notícias diárias, com os pensamentos nefastos, com a crueldade do mundo.

Um verso de Drummond falava em manter a inocência mesmo depois de tudo tão atrozmente explicado. Sendo a tal inocência, assim como a felicidade, um ato de resistência.

Num mundo dividido em grandes fossos de desigualdade, miséria, vidas anuladas e a indiferença silenciosa, a mudança só será possível através da educação, da compaixão, da empatia. Somente uma mudança de valores intrínsecos pode ser transformadora.

Sem bons valores, se os oprimidos tomarem poder, se tornarão opressores, numa roda perpétua, onde a realidade se desloca, mas não muda, porque não mudou o pensamento, nem o sentimento.

Todos os dias vejo estarrecida no noticiário a dor do mundo, que também me dói inevitavelmente. Preservo minha inocência por acreditar que já começamos a mudança e que é possível. Acredito no processo e sei que podemos ser agentes de transformação e fazer uma pequena diferença na nossa vida e na dos outros.

Manter a inocência diante de tanta coisa significa criar o paraíso dentro de nós, mesmo se algum inferno estiver fora. Carregue o paraíso dentro de você e espalhe essa energia para que a realidade seja mais feliz. E que todos descubram um paraíso interior que os proteja.

BRUNA LOMBARDI

09 DE JANEIRO DE 2021
J.J. CAMARGO

OS ORÁCULOS DO COTIDIANO

Meu encanto pelos velhos é bem antigo. E com um aumento compreensível na medida em que fui me tornando um deles. Começou lá atrás com meu avô materno, cuja morte trouxe um tipo estranho de orfandade, que em nome da sobrevivência afetiva precisou ser tratada progressivamente pela conquista de avós afetivos, e estes, depois de um tempo, como ocorre com filhos adotivos, se tornaram DNA compatíveis.

O fascínio pela descoberta de um novo avô é tamanho, que não pode ser mantido clandestino. Encontrá-lo é sorte, aproveitá-lo sabedoria, e compartilhá-lo, generosidade.

Como os seres humanos especiais são os únicos que adoçam com a idade, há que lhes render graças e acarinhá-los, e andar de papel em punho para que as suas lições de sabedoria não escorram para a cova rasa do esquecimento. Tenho feito isso, desde o tempo em que fumar era charmoso e ser comunista dava prestígio:

- Os que não se encantam com a maciez do pé de um recém-nascido não estão preparados para serem avós, e talvez nunca venham a estar.

- Antes de aconselhar um velhinho a seguir religiosamente a prescrição médica penosa, convença-se de que a vida dele tem utilidade.

- Não se imponha dietas inflexíveis e, uma vez por semana, faça a refeição dos seus sonhos. Lembre-se que até os condenados à morte têm o direito ao banho de sol. - Não fale do tempo. Ele não vai mudar. Nem os chatos que se interessam por ele.

- Nunca comece uma piada sem ter certeza de que lembra do final.

- Jamais sente em sofás macios. Os outros não precisam saber da sua dificuldade para sair deles.

- Assuma que paixão não tem idade, mas não comente isso com quem é viúvo há 20 anos.

- Não fique com cara de pateta ouvindo as últimas pelos outros. Antecipe-se. Vá atrás delas. Ser porta-voz da novidade fez bem para a autoestima. - Nunca interrompa a caminhada de um amigo para falar da sua saúde: as oscilações da sua pressão arterial não interessam a ninguém.

- Jamais aceite morar com os filhos só porque ficou sozinho. Nenhuma companhia improvisada compensa a perda da autonomia.

- As pessoas mais fortes são as capazes de viver sozinhas. - Nossos ouvidos foram concebidos para funcionar 75 anos. Depois disso, é mais inteligente usar aparelho do que ficar pedindo que repitam. Depois da terceira repetida, as pessoas param de olhar para você.

- Cuide dos seus joelhos. A marcha insegura é o indício mais precoce de decrepitude.

- Quando um avozinho parecer deprimido, evite assuntos sérios. Conte uma fofoca pra ele, não há melhor energético na velhice. - Os fascinados pela rapidez da comunicação virtual nunca apertaram uma carta de amor contra o peito enternecido. Então, seja tolerante com eles.

- Evite queixas e fale dos seus planos, as pessoas precisam saber que você está contente em continuar vivendo.

- Quando um amigo esporádico lhe contar uma coisa interessante, anote. Ele ficará contente se, na próxima conversa, você puxar o assunto.

- Não conte problemas seus para quem não possa ajudar a resolvê-los. A ideia de que o simples relato atenuará suas dificuldades é coisa de psiquiatra. Então, só os discuta com o seu.

- Quando um fanático se aproximar, não azede seu dia, chame um uber. - Ser for jovem, reverencie o idoso lúcido, e faça dele o seu oráculo particular. E acredite: quando o Google envelhecer, ele se tornará ainda mais sábio.

J.J. CAMARGO


09 DE JANEIRO DE 2021
ALICE BASTOS NEVES

Viva o outro! 

Já na abertura do aclamado filme AmarElo, Emicida canta: "Tudo que nós tem é nós. Tudo, tudo, tudo que nós tem é nós". Ele está falando de algo básico que garante a nossa própria existência: o outro. Quando a filosofia africana Ubuntu afirma: "Eu sou porque nós somos", está tratando de união entre raças, do combate ao preconceito e do fortalecimento da cultura negra. Mas também coloca luz em algo essencial: o outro. A música Me Conta da tua Janela, do duo AnaVitória, diz na letra "Eu vi o tempo parar, para a gente se lembrar da força que é alguém do lado": o outro. O mundo parou, o tempo parou, nós todos paramos e o maior aprendizado dessa vivência maluca em pandemia, para mim, foi dar ainda mais valor ao outro.

Por isso, é tão difícil ver tantas aglomerações recentes pelo país. O compromisso com a própria saúde é opção de cada um. Tive uma lição pessoal que mostra que prevenção é sinônimo de garantia de vida. Posso dividir minha história. Não posso obrigar ninguém a "comprá-la". Mas minha consciência alerta que devo criticar quando a liberdade individual de um fere a existência do outro. Quando se colocam em risco, as pessoas que se aglomeram arriscam a vida de muitos. A vontade satisfeita de um expõe o outro ao perigo de uma forma absurda e inaceitável. É um total descaso com o viver e conviver em sociedade, e à lei, afinal. Além do egoísmo de desconsiderar completamente a existência do outro.

Aí eu me pergunto e te pergunto: por que tamanha desconsideração com o outro? Não preconizo que devamos seguir todos enclausurados. E essa está muito longe de ser uma discussão política, deixando muito claro. Existem protocolos, estudos que mostram o que é seguro, basta cumprir. Se cada um fizer a sua parte, com responsabilidade e bom senso, todos ganham. Todos, sim, porque precisamos valorizar inclusive aqueles outros de que a gente não necessariamente gosta. Eles, principalmente, nos fazem evoluir. Nem que seja pelo exemplo negativo, do que não queremos fazer.

Provavelmente muito apaixonado, Leoni escreveu na canção consagrada pelo Kid Abelha o verso "depois de você, os outros são os outros e só". Só. Porque o ser amado superou, em muito, todas as outras experiências anteriores do compositor. Mas percebam que esse "só" se aplica apenas ao passado. No presente de cada um, o outro é mais do que necessário. É ele que nos fortalece.

Durante meu tratamento no enfrentamento ao câncer de mama, fui chamada de "guerreira", "forte", "inspiração". Abria um sorriso e pensava: se SOU, então SOMOS. Porque integro um time na vida. E poderia usar este espaço tão nobre do jornal para dizer aquele tão necessário "obrigada", mas ainda assim não seria suficiente. Agradeço, então, tentando devolver através da minha presença o que eles fizeram e fazem por mim. Estou sempre com eles e por eles. Eles sabem disso. E aqui faço o alerta.

Gente precisa de gente. Muito. Urgente. As relações de afeto que construímos são de nossa inteira responsabilidade e têm impacto em tudo o que vivemos. Nos momentos difíceis, são esses afetos que se multiplicam. E eles vêm em enxurrada. O mundo escancarou o quanto o contato físico faz falta. As lives, videoconferências, ligações e chamadas por vídeo foram os artifícios que encontramos para estar perto de alguma forma. Quanta adaptação. Ora! O outro importa. E muito!

Coexistimos, palavra bonita. Ou seja, só existimos porque o outro existe. E está ali para nos dar a mão. E rir com a gente. E chorar com a gente. E viver absolutamente tudo o que vier junto com a gente. Falamos muito em empatia, em se colocar no lugar do outro, de forma genérica, como algo de que necessitamos como sociedade. Eu acredito muito nesse conceito mais amplo. Mas agora estou falando daquela pessoa ali do lado. Do seu filho que está brincando aí no tapete da sala, de alguém que está na sua cozinha preparando uma comida quentinha, do companheiro que divide os dias com você e até daquele colega de trabalho mal-humorado que sequer te cumprimenta. Valorizem o seu outro. Principalmente seus outros de pertinho. São eles que te farão forte e corajoso quando precisar enfrentar o que for. De uma quimioterapia a uma pandemia.

*O colunista David Coimbra está em férias e retorna no dia 15/01 - ALICE BASTOS NEVES - INTERINA


09 DE JANEIRO DE 2021
OPINIÃO DA RBS

MAIS DO QUE UM NÚMERO

Não há surpresa pelo fato de o Brasil ter atingido, durante a semana, a catastrófica marca dos 200 mil mortos pela covid-19. A evolução da doença, havia tempo, nos indicava que chegaríamos a esse montante. O que gera perplexidade é a constatação de que nem a concretização dessa perspectiva alterou o rumo insano do debate nacional e as convicções dos que insistem em minimizar o novo coronavírus, desprezar os cuidados sanitários e atacar a ciência.

Ultrapassa os limites do absurdo o fato de estarmos, em 2021, em meio a uma pandemia que ceifou a vida de 200 mil brasileiros, debatendo se vacinas funcionam e se devem mesmo ser aplicadas. O descalabro não termina aí. Enquanto dezenas de países se prepararam com antecedência e já estão imunizando suas populações mais vulneráveis, por aqui a pauta oficial é tomada pelas preocupações com os preços das seringas, que já deveriam ter sido compradas muito tempo atrás, quando a procura ainda não era tão maior do que a oferta.

O mea-culpa povoa a história da infâmia, quase sempre tardio, quando o reconhecimento dos erros já não é capaz de evitar mais dores e sofrimentos no contexto em que ocorreram. Por mais complexo que pareça, ainda temos a chance de frear as estatísticas e impedir que esses 200 mil se multipliquem. Mas os sinais são, no mínimo, confusos.

Líderes políticos lutam por protagonismo em busca de votos enquanto nossas UTIs vivem aos sobressaltos, sob constante estresse e ameaça de lotação. Mas nem tudo são sombras nesse contexto, que também nos mostra esperança e perspectivas reais de um futuro mais luminoso. Se no campo da geopolítica os países se pautaram, quase sempre, pela lógica da disputa, houve, no campo da ciência, exemplos edificantes de cooperação e de união de esforços. Se autoridades negam a pandemia e debocham dela, o tecido social do país se organizou e promoveu ações de inclusão e solidariedade, lideradas por indivíduos, empresas e instituições. Se a desinformação e a mentira circulam impunes por redes sociais, há fontes sérias e fidedignas nas quais é possível encontrar dados e análises feitas por autores identificados e preparados.

Chegar a 200 mil mortes deveria nos fazer parar e pensar. Essa, definitivamente, não é uma notícia como qualquer outra. Certamente, o tempo e a distância darão contornos mais nítidos ao significado nada banal desse número, resultado também de escolhas equivocadas, de omissões e de um modelo social que precisa ser revisado.

No dia 11 de março de 2020, uma paciente de 57 anos, com complicações respiratórias, foi internada no Hospital Municipal Doutor Carmino Cariccio, na zona leste de São Paulo. Ela morreria um dia depois. Teria sido, de acordo com o site G1, a primeira vítima fatal da covid-19 no Brasil. A ela e todas as outras, o país deve o compromisso com a vida. Os milhões que se curaram são a prova de que o esforço para superar este momento não só vale a pena como é uma obrigação de cada um de nós.

 


09 DE JANEIRO DE 2021
MARCELO RECH

A Grande Peste de 2019/21

Estamos no ano de 2696, exatos 675 anos à frente. Historiadores da época ainda debatem as falhas na contenção da Grande Peste de 2019/21 e os comportamentos de alguns povos naquele início do milênio. Intriga-os, por exemplo, a recusa ao uso de máscaras que evitassem o contágio e a crença em medicações milagrosas, como um vermífugo, para prevenção da mortífera covid-19.

Os historiadores de 2696 procuram entender como se disseminavam certas crendices sem base na ciência, já relativamente avançada sete séculos antes. E tentam definir o grau de retardo no controle da doença em razão de governantes ambiciosos e populistas que se aproveitavam do desespero popular para propalar superstições e reforçar projetos de poder político. Especialmente estarrecedoras eram as concentrações de pessoas, a maioria jovens, que se aglomeravam em farras que iam até o amanhecer e que, desdenhando da possibilidade de levar a morte a outros, chegavam a enfrentar forças policiais destacadas para intervir naqueles festins macabros.

Agora vamos retroceder exatos 675 anos. Estamos em 1346, na Itália, por onde uma doença devastadora originada na China se introduz na Europa a bordo de galés de comerciantes genoveses. Viajantes espalham a praga, que chega a dizimar 600 pessoas por dia em grandes cidades como Veneza. Ao fim da peste, em 1352, mais de 20 milhões terão morrido apenas na Europa.

Os habitantes da Europa Medieval não imaginam, mas eles são vítimas de uma bactéria transmitida pela picada de pulgas hospedadas em ratos. Sem base científica, charlatães dizem que a doença passa pelo olhar, enquanto outros apregoam que o mal está no ar empesteado. Os poucos médicos sobreviventes receitam curas milagrosas, como poções de ervas, melaço e serpentes picadas, ou sangrias em que se furam os bubos - tumores inflamatórios de cor escura. No futuro, talvez por isso, o surto de peste bubônica viria a ser batizado de Peste Negra.

Apavorados, os que podem fogem das cidades e se isolam nos confins de florestas e montanhas remotas. Outros, segundo descrição de Boccaccio em Decamerão, desprezam a morte e vão à noite de taverna em taverna, em bebedeiras e farras desenfreadas. Os moderados procuram seguir uma vida relativamente normal, mas o preço de alimentos, como o trigo, dobra em Florença em seis meses. Para driblar a fome generalizada, a prefeitura distribui, em abril de 1347, rações de pão a 94 mil habitantes.

Melhor sorte têm os moradores de Milão, onde a prefeitura adota rígidas medidas de isolamento dos doentes, e de Nuremberg, na Alemanha, que determina uma extensa higienização de casas e ruas. Não por acaso, as duas estão entre as grandes cidades europeias menos atingidas pela peste.

De volta ao ano de 2021. Felizmente, 2696 é ficção e 1346 é passado.

MARCELO RECH

09 DE JANEIRO DE 2021
J.R. GUZZO

Fim do paraíso democrático

Desde a cômica situação de desordem criada durante a apuração das últimas eleições presidenciais norte-americanas, quando foi possível votar antes do dia da eleição, depois de encerrada a votação, por e-mail, por telefone ou por transmissão de pensamento, a vida política nos Estados Unidos ganhou uma certa coloração de republiqueta bananeira da América Central.

O presidente Donald Trump acusou o adversário Joe Biden de roubar a eleição, com a ajuda das máquinas estaduais de apuração que são controladas pelo partido de oposição. Biden acusou Trump de estar tentando virar a mesa para fugir de sua derrota nas urnas. Agora, em mais um empreendimento destinado a dobrar a meta da baderna, grupos pró-Trump invadiram fisicamente o Congresso, que votava a confirmação do resultado da eleição. Uma mulher que trabalhava no local morreu após ter sido baleada. Posteriormente a polícia americana confirmou a morte de outras quatro pessoas, incluindo um policial, nos arredores do Capitólio.

Foi citada, acima, a América Central. Mas, francamente, qual foi a última vez que aconteceu um negócio desses na América Central, ou em qualquer outro país latino-americano? Os "hermanos" do Norte nos consideram a nós todos, há 200 anos, como um bando de boçais que usam "sombrero", fazem "siesta" de tarde e são incapazes de entender o conceito de democracia - e, muito menos, de viver dentro de uma. E agora?

E agora nada, porque os americanos vão continuar achando o que sempre acharam; as pessoas preferem acreditar naquilo que têm dentro das suas cabeças, e não no que têm diante dos olhos. Mas ninguém aqui no Brasil está obrigado a continuar olhando os Estados Unidos como um paraíso democrático inalcançável para nós - nem continuar achando que mudar para a Flórida é o máximo a que um ser humano pode aspirar nesta vida.

J.R. GUZZO

domingo, 3 de janeiro de 2021


02 DE JANEIRO DE 2021
LYA LUFT

Novo Ano-Novo

Primeiro, eu entendia que Ano-Novo era Mano Novo, e ficava feliz com mais um bebê em casa, eu desde sempre louca por crianças e bebês. Até hoje seguidamente sonho que tenho um ou vários no colo. Depois fui entendendo que não era Mano, e sim Ano, e também compreendi, vagamente, essa questão dos números com que demarcamos nossa vida - em geral para nos atormentarmos um pouco mais.

O Ano-Novo espia na esquina como um garoto arteiro, cheio de novidades malucas para nos surpreender.

O Ano-Novo espreita nos espelhos como uma velha bruxa de longas unhas roxas para nos arranhar enquanto dá suas risadinhas sinistras.

O Ano-Novo espera na porta da frente para a gente abrir, abraçar, aceitar, e achar que vai ser feliz todos os trezentos e tantos dias; algumas vezes, em muitos dias, e semanas, ou meses, a gente é feliz mesmo, ou pensa que é, porque nem sabemos direito o que isso significa.

O Ano-Novo é uma estrela que nos contempla lá do céu, como diziam, em tempos tão antigos: meu irmãozinho morto antes de eu nascer tinha virado estrela e cuidava de mim. (Me inquietava um pouco que também visse meus pecadinhos, que eram palavras feias, mentiras e botar a língua para os adultos pelas costas deles.)

O Ano-Novo vale porque, apesar de tudo, a gente celebra: quase uma continuação do Natal, só que geralmente com mais festa, e dança, e espumante, promessas para os seres amados e promessas para nós mesmos - mais cobrança do que promessa, aquela lista velha e chata como o mundo: fazer exercício, não beber, não comer, não ir demais às baladas, não fumar, não se matar com nenhuma droga aliás, ser melhor filho, irmão, pai, mãe, colega, amigo, chefe, qualquer coisa dessas em que tantas vezes agimos como feitor de escravos ou carrasco.

Só que, neste ano de sombra e algum medo, vamos botar isso tudo em tempo passado: seremos muito mais discretos, sem dança, sem bebedeira, sem multidão, todo mundo fazendo a coisa mais essencial: cuidar-se.

E assim, dia a dia, o novo ano nos espera, e nós aguardamos por ele, sempre com esperança. Mas esperança de repente me parece uma palavra fraca. Esperança não basta: precisamos de ciência, inteligência, atenção, cuidado, cuidado, e sorte de novo.

Que Deus, os deuses nos deem um aninho manso, porque esse que passou foi difícil, esquisito, cheio de preocupações. Que seja mais colorido, bondosinho, gentil, para nós, pobres humanos sempre tentando escapar dos males, neste mundo atualmente tão doente, bagunçado, violento, chato, onde nem as notícias de mortandades, desgraças, tufões, inundações e corrupções (e tolerância com os corruptos) já não nos impressionam muito. Que ao menos a Peste que nos assola a gente leve muito a sério.

Enfim, que seja um tempo bem suportável para a maioria. Para alguns - os escolhidos -, que seja glorioso: o pessoal merece. Um bom ano a todos nós, saudáveis e atentos, porque o resto a gente corre atrás.

LYA LUFT

02 DE JANEIRO DE 2021
MARTHA MEDEIROS

Deixando de seguir

Outro dia fiz uma postagem no meu Instagram reverenciando a live de Natal feita por Caetano Veloso, que foi das coisas mais sofisticadas e comoventes a que já assisti. Para dar ênfase ao que me pareceu divino, maravilhoso, cometi a audácia de escrever na legenda que todo brasileiro deveria se ajoelhar diante de Caetano por ele ter nos presenteado com quase duas horas de puro encantamento ao final de um ano tão duro. Ai, Jesus. Pra quê?

Alguns não me perdoaram por usar o verbo "ajoelhar". Como eu ousava pronunciar tamanha blasfêmia? Pensei em debater com eles sobre a importância de flexibilizar os ritos sacros, mas nem deu tempo. Três ou quatro já haviam proferido o solene "deixando de te seguir", que suponho ser o castigo supremo aos pecadores das redes sociais.

Também já deixei de seguir alguns perfis a fim de dar uma limpada no meu feed e por não estar mais interessada no conteúdo oferecido, mas nunca tive a insolência de avisar que estava de partida, até porque sou apenas um número e ninguém vai dar por minha falta. Se eu decidi seguir Fulano, foi porque quis, ninguém me obrigou. Então, se desisti dele, saio à francesa, sem cair no ridículo de achar que minha ausência fará alguma diferença na vida da criatura. Percebe-se que ainda não entendi que a graça de cancelar alguém é justamente fazer um pequeno terrorismo antes.

Não levo muito jeito, mas caso fosse terrorista, alertaria que estou deixando de seguir quem só posta baboseiras, quem não tem senso de humor, quem exala ódio, quem não consegue colocar o passado no passado, quem só valoriza anjos e santos, quem não sabe a diferença entre ter opinião e ultrapassar limites éticos, quem não consegue sair do jardim de infância.

Deixando de seguir o chato de plantão, a dona da verdade, o campeão do mau gosto, a tia carola, a crente que abafa, o rei dos babacas, o gênio incompreendido, o perito em asneiras, o pobre de espírito, o doutor sabe-tudo, o cowboy sem noção, a miss juventude eterna.

Se bem que nunca perdi meu tempo com eles. Importa é quem vou continuar seguindo. Os amigos antenados, atualizados, que se mantêm em movimento em vez de inertes, esperando a morte. Aqueles que têm senso estético, faro para novidades, que dão dicas de livros, compartilham bons textos, postam fotos incríveis, arrancam risadas, abraçam causas justas, têm classe e inteligência. Sigo jornalistas, músicos, poetas, psicanalistas, filósofos, comediantes, escritores, fotógrafos, cozinheiros, cinéfilos, artistas, viajantes, além de alguns destrambelhados charmosos e malucos beleza. Sigo quem me faz bem, quem acrescenta, ilumina, diverte, espanta a mesmice. Todos eles, e mais Caetano Veloso, de joelhos.

MARTHA MEDEIROS