sábado, 24 de julho de 2021


24 DE JULHO DE 2021
LYA LUFT

Em busca de um segredo

Sempre achei tudo muito estranho neste mundo. Era fascinada pela lombada de um livro da biblioteca de meu pai, Grande e Estranho é o Mundo.

O que era ser estranho? Era como um segredo que ninguém devia saber? Mas eu sabia muita coisa esquisita que todos sabiam. O segredo será estranho para todos igualmente? Certamente não. Porque somos esquisitos mesmo.

Nunca vi mulher apanhar de marido e não acharia estranho, acharia monstruoso. Ela continuar com o animal covarde seria bizarro. Ela bater de volta seria uma glória, triste mas glória.

Nem sei como hoje falamos coisas tão esquisitas que antigamente seriam segredos mal ocultos. Hoje tudo filmado nas mais loucas selfies, gente fazendo questão de gravar e exibir intimidades, fim para os mistérios.

Em cada começo seu grão de magia, escreveu Hesse num livrinho que traduzi faz meses. Aquilo me emocionou como um punhal de mel. Guardei como um segredo quase amoroso, delicado e inocente. E me fez muito bem. Um pequeno segredo um pouco dividido, e eu nem sabia direito o seu significado.

Ou sabia?

Neste mundo de grosserias e escracho, mentiras e cinismo ou frieza no comando do país ou de uma vida, nada mais consolador do que um pequeno segredo sutil, que vem e vai, mas se procurarmos bem está ali e nos faz sorrir acordados de noite: beleza ajuda.

LYA LUFT

24 DE JULHO DE 2021
MARTHA MEDEIROS

AME

É irônico que as iniciais de uma doença devastadora (Atrofia Muscular Espinhal) seja também um chamado amoroso. AME é uma doença genética rara e progressiva que atinge recém-nascidos, impedindo-os de caminhar, comer e, nos casos mais graves, até respirar. E tudo se torna mais dramático ao saber que o remédio que pode deter essa doença é o mais caro do mundo: custa US$ 2 milhões e uns trocados, algo em torno de R$ 12 milhões. Pode ficar ainda mais dramático? Pode. Se a criança não tomar a dose única do remédio até os dois anos de idade, não adiantará mais (a quem se interessa pelo assunto, sugiro que busque informações mais precisas junto a médicos e sites especializados).

Parece um despautério juntar essa quantia para salvar uma criança apenas, mas se fosse um filho nosso, pensaríamos em precificação da vida? Então, etapa seguinte: como arrecadar R$ 12 milhões?

Os finalistas do Big Brother Brasil receberam juntos 633 milhões de votos no programa de encerramento: poder de mobilização, temos. Mas nada é tão simples. Estamos falando sobre dinheiro e confiança, ambos em falta. Aí pensei: dinheiro + confiança = bancos.

Quantos correntistas tem cada banco? Os grandes, uma média de 20 milhões cada um, imagino. Todos os dias, recebo notificações do meu banco por e-mail e SMS. Não haveria um jeito de cada cliente, seja pessoa física ou jurídica, receber uma notificação que autorize a transferência online de R$ 10 da sua conta para a conta da família X? Bastaria que 1,2 milhão de correntistas brasileiros dessem um ok automático e sem burocracia, e se atingiria a meta. Não estou considerando a logística necessária, mas os departamentos de informática estão aí para isso.

A prática, óbvio, teria que ser sistemática. Ajudar não apenas uma criança e fim, mas todas as que estivessem em situação semelhante. Muitas delas precisam de medicamentos que não custam R$ 12 milhões, mas que também são absurdamente caros. No meu sonho utópico, ingênuo e delirante, os bancos poderiam organizar essa vaquinha coletiva, abrindo um cadastro de casos extravagantes e notificando seus correntistas a respeito, dando-lhes a opção de transferir direta e espontaneamente um valor irrisório. Isso, óbvio, sem excluir o compromisso do Ministério da Saúde, do SUS e da indústria farmacêutica com essa situação complexa.

Já existe algo parecido? Seria antiético criar um programa específico para vítimas de doenças raras, num país em que é difícil para tanta gente comprar uma simples cadeira de rodas? Não sei, não entendo sobre a legalidade de ações deste porte. Entendo, um pouquinho, de chamados amorosos, e minha forma de atendê-los é esta: dar alguma ideia, clamar por outras, provocar reflexão.

MARTHA MEDEIROS

24 DE JULHO DE 2021
CLAUDIA TAJES

Um riso atravessado

Se alguém consegue não olhar os vídeos da bebê Alice repetindo palavras difíceis, é porque tem um coração de gelo. O que não é difícil em Porto Alegre, sensação térmica de 4°C enquanto escrevo esta coluna.

É quase certo que você conhece a menininha que começou a falar com um ano e um mês e agora é sucesso na internet repetindo palavras como esquistossomose, paralelepípedo e otorrinolaringologista. Vale a pena ver de novo no perfil do Instagram @morganasecco.

A mãe da Alice faz exatamente o contrário do que eu fazia com o meu filho, que era incentivá-lo a repetir as palavras que ele falava errado. Popótero para helicóptero, pocilial para policial, coisas assim que, sem Instagram para registrar, ficaram armazenadas na memória. A Alice repetindo palavras difíceis me despertou uma dúvida. Se os pais estimulassem seus pequenos a falar certo desde o iniciozinho, será que eles teriam mais apreço pela língua e não se tornariam aquele tipo de adulto que tem um vocabulário de básico para baixo, que escreve com muitas abreviações e, pior, que usa KKKKKK?

Cheguei ao verdadeiro tema da coluna, o KKKKKKKK.

Perdão, adeptos, mas se tem coisa que não me desce é essa representação de risada. Antes um rsrsrsrsrsrsrs do que um KKKKKKKK. O KKKKKKKK tem um ar de deboche, de escárnio. Melhor um clássico hahahahahaha, ou ainda o emoji de gargalhada - que, me dizem, ficou démodé por conta de um novo código que estabelece o que é e o que não é legal agora. Isso até sair o próximo código.

Consta que o KKKKKKKK seria uma corruptela de "quá quá quá", "quiá quiá quiá" ou "cá cá cá", onomatopeias de risadas que já eram usadas no tempo de José de Alencar. Machado de Assis usou, Monteiro Lobato, também. Mas o efeito seria o mesmo se os grandes autores sentassem o dedo na letra K e usassem o teclado para gargalhar loucamente?

Por exemplo, Gabriel García Márquez em Cem Anos de Solidão: "Entretanto, Remédios, a bela, teria dado um KKKKKKKK se tivesse sabido daquela precaução. Até o último instante em que esteve na Terra ignorou que o seu irreparável destino de fêmea perturbadora era uma desgraça cotidiana".

Machado, em Dom Casmurro: "Às vezes dava por mim, sorrindo, um KKKKKKKK de satisfação, que desmentia a abominação do meu pecado".

Dostoiévski, em Crime e Castigo: "?Eu aqui querendo me meter numa coisa dessas e com medo de bobagens!?, pensou ele, com um KKKKKKKK estranho".

Sem esquecer de Clarice, em A Paixão Segundo G.H.: "O inferno é a boca que morde e come a carne viva que tem sangue, e quem é comido uiva com o regozijo no olho: o inferno é a dor como gozo da matéria, e com o KKKKKKKK do gozo, as lágrimas escorrem de dor".

Alice, a nenê que fala difícil, poderia achar essas observações absolutamente frívolas, insignificantes, dispensáveis. Mas aposto que, nos comentários, jamais usaria um KKKKKKKK.

Veremos daqui a alguns anos.

Tem revista de arte na cidade. Corpo Futuro, a publicação do Porto Alegre Em Cena, chega à segunda edição com uma capa linda e quase 200 páginas de matérias sobre arte, pensamento e questões contemporâneas. Tudo isso mais a colaboração de nomes como Ailton Krenac, Renata Felinto, Eliane Brum, Valéria Barcellos e grande elenco. Na edição e curadoria, Fernando Zugno e Carol Anchieta. Você encontra a Corpo Futuro na livraria Baleia e, levando junto a número um, paga um preço camarada de combo.

CLAUDIA TAJES

24 DE JULHO DE 2021
LEANDRO KARNAL

QUEM PODE SER SINCERO?

Sinceridade é uma virtude. Dizer a verdade é louvado por filósofos e por teólogos. A boca veraz garante o caminho da razão e a estrada do céu. Mentirosos são, universalmente, condenados. Quem pensa uma coisa e diz outra é hipócrita, gritam os povos do Tietê ao Potomac, do Rio Amarelo ao Tâmisa. Pessoa duas caras, enganador, dissimulado, embusteiro, falso, desleal: abundam palavras para o horror que temos à mentira. Todos devem dizer a verdade. Será?

Em primeiro lugar, a mentira abunda onde existe o poder. Começamos mentindo para pais e para professores. Queremos algo que alguém acima não concede ou queremos uma desculpa para algo errado que fizemos ou deveríamos ter feito. Começamos cedo no caminho da inverdade. Depois de formados em deslizes com o correto em casa, passamos para o ambiente pedagógico e chegamos ao ambiente de trabalho. 

O que possuem em comum pais, professores e chefes? Sendo uma fonte de algum poder e podendo tomar decisões que contrariem meus interesses imediatos (ou punições), acabam criando, com seu poder, o solo onde vicejará a mentira. Pensem: Deus, Todo-Poderoso, não mente. O demônio, sem a onipotência, é o pai da mentira. Quanto mais poder alguém tem (desde que esse poder não dependa de outros), mais sincero pode ser. Ditado conhecido no Brasil: manda quem pode, obedece quem tem juízo. A mentira atropela o que é correto, porém, ataca o poder, esta é a raiz do sucesso da falsidade. O argumento precisa ser matizado: poderosos mentem, e muito. A diferença: todos mentem, porém, quem tem comando pode punir a falta de verdade alheia.

O mestrando ou doutorando recebe uma "espinafrada" na banca? Deve responder bem, e com cuidado, porque não é a verdade que está em jogo, todavia o teatro de poder. Você terá o título se, além da pesquisa, claro, tiver aprendido hierarquias. O ano se encerra na empresa e fazem uma avaliação diante do dono? Qualquer funcionário equilibrado sabe os limites estreitos da crítica possível. Mesmo no âmago amoroso das famílias, nem tudo pode ser dito ao cônjuge, aos filhos, aos cunhados, aos avós. Algum medo, pitadas de diplomacia, um traço de misericórdia, uns gramas de compaixão e muita vontade de não incomodar e... dou uma "disfarçada" tão poderosa na minha opinião que ela... sai oposta.

A liberdade de ser sincero é um privilégio que a Revolução Francesa não conseguiu instituir como direito universal. No caso da França, burgueses sucederam aos duques e presidentes, aos reis. O poder perdeu pompa e se manteve imune aos ataques. O mundo contemporâneo acrescentou punições extras. Voltaire, no Antigo Regime, foi condenado à Bastilha por dizer o que pensava. Flaubert e Zola foram processados no mundo pós-Revolução. A nova Bastilha é o cancelamento.

Tudo isso pensei quando li, há alguns meses, o romance de António Lobo Nunes: Memória de Elefante. A narrativa é muito interessante, envolvendo uma personagem que é psiquiatra (como o autor) e que analisa seu casamento, sua solidão e seu ódio por tudo. Como eu nada sabia do autor antes do livro, fui procurar outras informações.

Em uma entrevista, o literato e médico português solta esta pérola: "Fernando Pessoa me aborrece até a morte". A frase me esbofeteia. Nunca encontrei alguém que odiasse Pessoa. Para mim é como Shakespeare ou Bach: imune a críticas. Encontrei um detrator do poeta do Livro do Desassossego! Me senti como algum jornalista soviético que, após as críticas de Kruschev, pergunta, atônito, se já seria possível falar mal de Stalin? Também me lembrei de uma aula com uma professora da USP que atacava o talento de Leonardo da Vinci. Podemos?

Talvez a liberdade de António Lobo Nunes nasça da sua origem aristocrática. Lembrei-me do príncipe Dom João Henrique de Orléans e Bragança em um almoço que tivemos quando eu trabalhava em uma exposição sobre as fotografias do imperador Pedro II. Ele adorou o pão italiano servido no almoço e pediu para levar um inteiro para casa, sendo prontamente atendido pelos promotores. Pensei: sou um professor de classe média, não poderia fazer isso; ele é príncipe, pode. Minha bisavó era uma camponesa alemã, a dele era a princesa Isabel.

O poder, parece, embasa a capacidade de ser sincero. Pessoas pequenas, se forem ousadas nas palavras em um bar, podem causar danos aos dentes. Funcionários podem perder emprego, alunos podem ser reprovados e jovens autores começando jamais podem desdenhar de um monstro sagrado como Fernando Pessoa. A internet permitiu a uma rede maior cometer mais verdades, porém, amparada pelo anonimato ou pela multidão de opiniões. "Sincericídio" ainda existe nas redes, nos casamentos e nas escolas. O cancelamento é uma arma, sim, porém, é uma confissão de fraqueza: só posso ser significativo se dezenas ou centenas de milhares concordarem comigo e também cancelarem. Sozinho, continuo não valendo nada. Preciso de um exército ao meu lado. Sou fraco como uma bactéria: a infecção depende do volume.

Você, querida leitora e estimado leitor, consegue imaginar um mundo no qual você pudesse dizer tudo, absolutamente tudo o que você pensa, sem limites ou códigos? Não haveria indiretas, ironias, desculpas: tudo seria dito "na lata" (amo essa expressão popular). Esse mundo do domínio total da verdade seria o céu ou o inferno? Apenas sei que não seria a Terra. É preciso ter alguma esperança e muito cuidado com o que dizemos...

LEANDRO KARNAL

24 DE JULHO DE 2021
ARTIGO

Desculpas, MARIA(S)

A LEI MARINHA DA PENHA FOI CRIADA HÁ 15 ANOS NO BRASIL. MAS O DIREITO - E A SOCIEDADE COMO UM TODO - AINDA PRECISA EVOLUIR NO COMBATE À VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

Às vésperas do aniversário de 15 anos da Lei Maria da Penha (a ser completado no dia 7), da terra de Maria da Penha, o Ceará, vem mais uma prova de que o Brasil não aprendeu nada sobre a promoção dos direitos humanos das mulheres. No dia 11 de julho, Pâmella de Holanda, mulher do artista conhecido como DJ Ivis, divulgou cenas em que é espancada pelo companheiro. As imagens foram compartilhadas dias depois de a jovem prestar queixa contra o músico por violência doméstica.

As cenas captadas por câmeras instaladas em casa mostram que, em pelo menos duas ocasiões, as agressões foram testemunhadas por terceiros - que pouco ou nada fizeram para deter o agressor. Reflexo de uma sociedade e de um país que simula perplexidade em redes sociais mas que mantém impassível às vítimas do machismo.

Também foi neste mesmo país que, há cerca de um mês, ao acompanhar uma cliente em um registro de ocorrência, fui surpreendida com a notícia de que uma medida protetiva demoraria um mês para ser deferida, quando o prazo legal é de 48 horas. Fui informada de que o "acúmulo" de trabalho tornava impossível o deferimento da proteção nesse tempo. Se tivesse sorte, em 15 dias...

A partir desses dois episódios, que ilustram o dia a dia de quem protege os direitos humanos das mulheres, passei a pensar que enquanto sociedade devemos novas desculpas a Maria da Penha e a todas as mulheres que sofrem violência.

A Lei Maria da Penha não é um presente da nação para as mulheres, mas o resultado da condenação do país pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Em 2001, a Corte apontou negligência e omissão do Brasil em relação à violência doméstica, ilustrada pelo caso da farmacêutica cearense, que ficou paraplégica em uma tentativa de feminicídio do marido e passou por um calvário judicial para responsabilizar seu agressor.

Nosso país é signatário de tratados internacionais que se comprometem a erradicar a violência contra as mulheres, e é reconhecido por ter uma das legislações de gênero mais sofisticadas do mundo. Ao mesmo tempo, é conhecido por violá-la. Seguimos negligenciando, relativizando, questionando as mulheres.

A Lei Maria da Penha é um pedido de desculpas do Estado para as vítimas, representadas pela mulher que dá nome à legislação - nome tão simbólico este de Maria, tão comum e forte no nosso país. Mas, como nos ciclos de violência dos relacionamentos tóxicos, nos quais após bater o agressor se desculpa, o pedido de perdão é da boca para fora. O Brasil segue virando as costas às mulheres, situação agravada por um governo que legitima e praticamente incentiva a violência contra a mulher - apregoando a compreensão de que são loucas e indignas de confiança.

O Brasil segue não querendo ver o que acontece nos nossos lares e, sejamos honestas, hoje só estamos chocadas com a situação porque a vítima tinha câmeras de segurança. As mesmas câmeras que imaginamos nos proteger de bandidos violentos nas ruas descortinam a violência em casa.

Fico imaginando se toda casa tivesse uma câmera para filmar, o quanto a sociedade se chocaria com o que veria. E o quanto nós nos apresentamos como telespectadores da naturalização da violência. Não gostamos do que estamos assistindo e trocamos de canal, simples assim. Nos alienamos para não precisar nos envolver. E assim, muitas vezes, ao presenciarmos a violência, somos aqueles que não só trocam de canal, como observamos a notícia mas não fazemos nada para mudar.

Pâmella tinha câmeras na sala e no quarto. Talvez tenha recorrido a esse artifício porque teve sua palavra questionada. Ivis já havia registrado boletim de ocorrência contra ela, como muitos pais fazem que mulheres que denunciam mães alienadoras. Temos de pedir desculpas a Maria da Penha, a Pamela e a todas as mulheres do Brasil, porque a maioria ainda não entendeu a lei que poderia evitar que cenas tão dolorosas ocorressem todos os dias. Isso sem falar no quão absurdo é o fato de uma mulher precisar gravar sua própria casa para provar que não está mentindo.

A Lei Maria da Penha prevê que é obrigação de todos - do Ministério Público, da Defensoria, do Judiciário, das polícias, da sociedade e de cada um individualmente - a missão de punir e erradicar todas as formas de violência, especialmente a doméstica. Quinze anos depois, ainda brigamos para que uma medida protetiva seja concedida em 48 horas, para que não seja apenas um papel manchado de sangue após a violência ser fatal; para que se entenda que violência psicológica e patrimonial também são crimes; para que se entendam os princípios mais básicos que determinaram que essa lei seja necessária e, ainda, urgente. Desculpa, Marias, não conseguimos cumprir o básico.

Aos leitores, proponho que a gente não troque de canal, não vire para o lado e olhe bem a fundo essa ferida exposta que nos mata diariamente e naturaliza as violências nos corpos das mulheres. Esse filme a que assisto diariamente pode ter um final diferente, e essa receita passa por uma atitude muito simples: em caso de briga entre marido e mulher, a gente mete a colher. 


24 DE JULHO DE 2021
ELIANE MARQUES

ORIKI PARA NÓS MESMAS

Afro-colombiana, afro-brasileira, africana-venezuelana. Até quando seremos hifenizadas? Nayyrah Waheed, em afroamericana ii, enuncia que, ao perder um continente inteiro de sua memória, diferentemente de outras americanas hifenizadas, seu hífen se fez de sangue, fezes e ossos. Porém, seu hífen é tão nosso quanto o nosso é dela, o que permitiu a Lélia Gonzalez construir a categoria da amefricanidade. Em Por um Feminismo Afro-Latino-Americano, ela a discute assentada na ideia de que a formação histórico-cultural do Brasil, mais por ordem do inconsciente que por outro fator, está longe da encenada.

Lélia propõe uma América Africana cuja latinidade inexistente teve trocado o T pelo D para se assumir Améfrica Ladina, feita não apenas de Negres, mas de todas as gentes. Com a Verneinung freudiana, a intelectual articula o racismo por denegação, em que o abafamento da ladino-amefricanidade se mostra como sintoma dominante. Os discursos que hierarquizam a cultura em erudita, popular e folclórica são também mostras da denegação.

A constituição da Améfrica Ladina num lócus privilegiado desse racismo, segundo Lélia, advém das experiências raciais de Portugal e de Espanha já que suas instituições nascem de lutas plurisseculares contra povos islamizados e negros. Enquanto os escravizados norte-americanos teriam as mãos amputadas se tocassem tambores, na região do Caribe e da América Latina, os senhores e, eventualmente, as senhoras, se inquietavam se não ouvissem da casa-grande os tambores da senzala. Racialmente estratificada, enfatiza Lélia, a Ibéria e sua descendência dispensaram a segregação aberta vez que a rígida hierarquia seria garante da superioridade branca.

A categoria amefricanidade, ancorada em modelos como o akan (Jamaica); iorubá, banto e ewe-fon (Brasil); e nos diversos modos indígenas anteriores às invasões, permite romper com as fronteiras de caráter territorial, linguístico e ideológico, incluindo as Américas do Sul, Central, Insular e do Norte em um arcabouço comum de resistência, reinterpretação e criação de novas formas de existir.

Em Oriki para Mim Mesma, a poeta cubana Georgina Herrera diz ser a fugitiva que abriu as portas da casa-grande e correu ao monte. Em Anamú y Manigua, a poeta porto-riquenha Mayra Santos-Febres enuncia que é sal, sal negro que entende Safo no sabor do osso próprio. No Dia Internacional da Mulher Negra Amefricana, ofereço a nós esses orikis, pois, se memórias tivemos apagadas, outras construímos.

ELIANE MARQUES

24 DE JULHO DE 2021
DRAUZIO VARELLA

DIAS SEM COMPROMISSOS ACABAM ATROPELADOS POR WHATSAPP E E-MAILS

ANTES DAS MANHÃS INÚTEIS CRIADAS PELA PANDEMIA, EU CRUZAVA O PAÍS, EXAMINAVA DOENTES E ATENDA DEZENAS DE PRESAS

Acordei às cinco da manhã. Finalmente, um dia sem compromissos, nenhuma palestra para fazer, nenhuma reunião pelo Zoom, ninguém acordado àquela hora, sem telefonemas urgentes para dar. Sozinho, em casa, o dia inteiro para me dedicar ao livro que não consigo terminar de escrever.

A caminho da cozinha, peguei os jornais da véspera intactos sobre a mesa da sala. No café da manhã, li os editoriais e me entretive com as notícias sobre a CPI, os números da epidemia, as roubalheiras das vacinas e as mentiras de autoridades que nos julgam idiotas.

Quando dei por mim, já eram seis e meia. Lavei, enxuguei e guardei a louça. Estava saindo da cozinha, quando vi o chão manchado. Umedeci um pano, enrolei no rodo e esfreguei com força.

Arrumei a cama e abri a porta do quarto que dá para a sacada. Voltei à cozinha para buscar a banana que coloco para os sanhaços todos os dias. São lindos, azulados, ariscos, voam para longe à menor aproximação. Estão mal acostumados, a banana não pode estar muito madura nem ser servida depois das dez da manhã.

Começava a clarear. Uma franja de luz alaranjada circundava a zona norte, por trás da serra da Cantareira. Madrugadores como eu acendiam as primeiras luzes nos prédios do centro de São Paulo. No silêncio das ruas vazias, parado na janela, a cidade em que nasci e eu éramos capítulos inseparáveis da mesma história.

Antes de sentar diante do computador achei melhor colocar em ordem os papéis e devolver à estante as revistas científicas e os livros espalhados sobre a mesa. Sobrou um tratado de medicina que não encontrou espaço entre os congêneres.

Retirei os livros daquela prateleira e fiz uma pilha sobre a mesa. Antes de devolvê-los ao lugar, voltei à cozinha atrás de um pano para tirar o pó acumulado entre eles. Olhei para a lata de lixo, estava pela metade, mas achei bom esvaziá-la, a cozinha estava tão limpa. Levei o saco plástico para a área de serviço. Quando voltei para o escritório, vi que a implicância com a ordem me fizera esquecer do pano para o pó da estante. Retornei à cozinha.

Já passava das oito quando abri o computador. Nenhuma nuvem no céu, o sol batia forte na janela. Dias assim não são bons para escrever, convidam o escritor a sair de casa, deixam a sensação de que estamos perdendo parte da vida que pulsa intensa lá fora. Manhãs cinzentas, chuvosas, induzem estados reflexivos mais próprios à escrita.

Antes de abrir o computador, tive a má ideia de olhar para a tela do celular. Cinco WhatsApps já me atormentavam àquela hora. Achei melhor respondê-los logo, para ficar livre da preocupação. Caí na armadilha, porque os cinco se somavam às dezenas que eu não tivera tempo de ver na véspera. Você, leitora, não faz ideia do inferno que virou a vida dos médicos, depois do WhatsApp. Qualquer sombra de dúvida que passe pela cabeça de um paciente, de um familiar, de um amigo ou dos amigos de qualquer amigo vira uma mensagem que somos obrigados a responder.

Um dos WhatsApps daquela manhã começava assim: "Doutor, a cunhada do marido da prima da minha mulher teve um tumor de mama de dois centímetros, é grave?". Outro perguntava se o cansaço que a sogra estava sentindo podia ser sintoma de covid. Uma amiga se queixava de que tomara a vacina na véspera e tinha acordado sem sentir nada. Queria saber se ficaria imunizada.

Depois de duas horas ou mais, saí do aplicativo, com a sensação de culpa de haver deixado tantas mensagens para trás. Fui fazer um café.

Já que tinha perdido tanto tempo atualizando o WhatsApp, talvez fosse melhor dar uma olhada nos e-mails. Foi a segunda armadilha. As mensagens rolam pela minha caixa postal como a água nas cachoeiras. Sinto-me Sísifo condenado pelos deuses a carregar uma pedra até o topo da montanha, que cairá de volta para ser carregada para cima, outra vez. Essa era a imagem mais contundente do trabalho inútil e repetitivo, antes da criação do e-mail e do WhatsApp.

Parei quando o telefone interno tocou para avisar que o entregador do supermercado me aguardava na garagem do prédio.

Guardei as compras na despensa e na geladeira. Olhei para o relógio, a manhã tinha ido embora.

Nas manhãs de antes da pandemia, eu cruzava o país para fazer uma palestra no Recife ou em Fortaleza, examinava doentes, passava visita no hospital, atendia dezenas de presas na penitenciária, gravava para a televisão. E nesta manhã, o que eu fiz?

DRAUZIO VARELLA

24 DE JULHO DE 2021
BRUNA LOMBARDI

HOMEM NÃO CHORA

Um tempo atrás, fiz um TED falando, entre outras coisas, sobre a fraqueza dos homens. A possibilidade social de um homem demonstrar sua vulnerabilidade, sem críticas e vergonha. Sem a terrível pressão dos outros que repetem há gerações a infame determinação que homem não chora.

Como se a sensibilidade de um ser humano o diminuísse frente aos outros. Que absurdo é esse que se perpetua, aprisionando a capacidade do homem ter sentimentos?

Por que associar doçura, emoção, comoção e toda a gama de sentidos que nos eleva com a ideia de fraqueza? Existe repressão maior?

Essa distorção de valores gerou uma permanente ameaça à masculinidade, o cara sensível sofre todo tipo de bullying, quando a verdade é exatamente o oposto. Os verdadeiros fracos são os que agridem, os covardes são os que maltratam os mais vulneráveis. Aqueles que acreditam que a supremacia é barulhenta e submetem mulheres, crianças e animais. Que acreditam que, para mostrar soberania, é preciso usar força física e a usam exatamente contra aqueles que não podem se defender.

É triste o resultado de uma sociedade que errou os conceitos. Que transmitiu princípios violentos e criou filhos disfuncionais.

Quanta crueldade, quantas atrocidades, quanto horror seria evitado no mundo se existisse a educação do amor. Se pudesse ter sido ensinado para as pessoas, através das gerações, que o verdadeiro forte é aquele que sabe amar. Sabe se sensibilizar, sabe chorar e sabe consolar quem chora.

A gestão das emoções, a capacidade de compreender e desenvolver nossa inteligência emocional deveria ser matéria de escola. Ela é fundamental para qualquer trabalho, qualquer relacionamento, qualquer atuação na vida.

Em tudo o que fazemos há, por trás, o que sentimos. Aqueles que são obrigados a sufocar esses sentimentos vão inevitavelmente explodir em algum outro lugar. Muitos contra si mesmos, a dor corroendo por dentro os que não conseguem se expressar.

Emoções reprimidas arranham o coração e nos fazem adoecer. São doenças da alma, doenças psíquicas, psicossomáticas. Começam no abstrato e nos atacam fisicamente.

E tanta gente não sabe e não percebe isso. Perpetua um sistema de confinamento, de vozes caladas, de sentimentos não ditos. Até quando?

Se metade da população do mundo são mulheres e a outra metade os filhos delas, há esperança. Podemos, cada uma de nós, corajosamente, ensinar nossos filhos a ser homens que choram, se deixam sensibilizar por coisas tocantes, deixam o coração se comover com a solidariedade de um gesto.

Podemos aos poucos mostrar a beleza das coisas delicadas, porque a criação do universo é feita delas. Deus está nos detalhes. Mostrar que o lado vulnerável em cada um de nós é o que nos dá equilíbrio. É o nosso Yin e Yang, um conceito milenar do taoísmo, duas energias opostas que completam o todo.

O mundo é feito de forças opostas, e elas são essenciais para a nossa harmonia. Sempre que estão em desajuste, a interação das coisas em volta entra em caos. E esse desajuste dentro de nós gera conflito permanente.

Num dos meus livros, O Perigo do Dragão, tem um poema, Sagração, que diz:

"canto a doçura dos homens

e a solidez das mulheres".

E até hoje não perdi a esperança.

BRUNA LOMBARDI

24 DE JULHO DE 2021
EM FAMÍLIA

O ANO EM QUE FIQUEI COM O VOVÔ

A PANDEMIA IMPÔS MUDANÇAS NO CONVÍVIO DE ALGUNS PAIS COM OS FILHOS. ESTES VIRAM CRESCER SEU PAPEL DE NETO

Sentado em uma cadeira de praia fora do quadro da câmera do notebook, Cláudio Vitor Lewandowski, 75 anos, acompanhava, dia após dia, as aulas remotas do neto Pedro Henrique Lewandowski de Souza, nove. A rotina que se estabeleceu ao longo do último ano foi rompida no final de abril, quando o menino retornou às atividades escolares presenciais. A possibilidade da convivência em tempo integral fortaleceu ainda mais os laços entre neto e avô, que, agora, são inseparáveis. Boas histórias dessa vivência próxima não faltam, e vão desde as dificuldades do vovô para acessar o sistema de aulas remotas do neto até o neto raspando a cabeça do vovô com uma máquina.

A despeito de todos os traços negativos da pandemia, há de se admitir que ela aproximou - mesmo que à força - uma parcela significativa de famílias. Se por um lado muitas se afastaram dos idosos por receio de infectá-los, por outro uma parcela lançou mão de estratégias que uniram os parentes, como foi o caso dos Lewandowski: temendo ser o vetor da doença, a mãe de Pedro Henrique, a servidora pública Cláudia Zenker Lewandowski, 42 anos, decidiu sair de casa e deixar o pai, Cláudio, a mãe, Irani Zenker Lewandowski, 67, e o filho juntos no apartamento. Coube à filha fazer todas as tarefas do lado de fora da porta, como ir ao supermercado, farmácia e, inclusive, colocar o lixo do trio para a rua.

Confinados na residência, os avós participaram de todo o processo de adaptação às aulas remotas. Cláudia, em outro apartamento, dava suporte por telefone, auxiliando o pai a ingressar no sistema da escola.

- Eu configurava tudo por telefone. Ele entrava, não dava. Eu dizia: "Vô, não é ponto gov, é ponto org o site, presta atenção!" - conta Cláudia. - No início, foi um pouco difícil entender, se conectar. Não tínhamos experiência. Aos poucos, fomos compreendendo e ficou mais fácil - completa o vô.

Com tudo ajustado, o trio foi se adaptando à nova rotina em casa, que contava com as aulas online do menino diariamente acompanhadas pelo avô do conforto da sua cadeirinha de praia. Sem interferir, postava-se ao lado do neto, ouvindo todos os detalhes. Para o avô amante dos estudos, o novo formato de ensino foi uma oportunidade única de participar de pertinho dos aprendizados do neto.

- Ficava quatro horas com ele e não me causava cansaço de tanto que eu gosto! - orgulha-se Claudio que, de tanto acompanhar as atividades, já é capaz de reconhecer as características pessoais de cada colega do neto:

- Um brinca mais, outro menos. Um é mais interessado, às vezes um entrava de pijama - descreve o avô. Para Cláudia, a presença do vô no dia a dia foi gratificante e ajudou o filho a sentir menos a ausência do convívio com os colegas de classe.

- Meu filho não sofreu, pois tinha um "coleguinha" do lado. Quando o meu pai saía do quarto por algum motivo, o Pedro Henrique corria atrás dele: "Vô, vem, tu não sabes o que está acontecendo!" - comemora.

Quando foi autorizado o retorno às aulas presenciais, Pedro Henrique voltou para a escola. Na tentativa de driblar a saudade dos bons momentos vividos com o neto, Cláudio deu uma missão para a filha: enviar os links das aulas do menino para ele assistir no fim do dia. Todos os conteúdos que julga importantes são devidamente impressos e entregues ao neto.

Além disso, as visitas, que antes da pandemia eram mais esporádicas, se tornaram quase diárias. Para o guri, a convivência em turno integral com o avô foi aprovada, ainda que nas lições de matemática Cláudio tivesse mais dificuldade.

- Acho que em Português ele era melhor. Em Matemática, ele pegava uma folha para fazer os cálculos - diverte-se Pedro Henrique. 

CAMILA KOSACHENCO
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24 DE JULHO DE 2021
J.J. CAMARGO

O DESTINO, ESSE IRÔNICO E DEBOCHADO

Todo mundo, excluídos os pusilânimes, aspira à excelência. E sempre que falo disso para profissionais iniciantes, insisto que nós podemos não conseguir ser os melhores no que fazemos, mas, dentro das nossas limitações e respeitados os nossos limites, temos, sim, a obrigação moral de tentar ser.

Pois o Sadi Schio serviu durante os seus 22 anos de profissão como modelo a muitos médicos jovens que pretenderam sair do batalhão dos conformados com o destino frouxo, este gueto de inércia sempre disponível para acomodar a fraqueza dos que culpam os astros pelo que não acontece na Terra.

Formado pela UFCSPA em 1999, mostrou desde logo que a voracidade de conhecimento e a intolerância com a mediocridade definiam um protótipo de insubordinação ao mediano, que sempre quer mais, mesmo quando o mais já pareça um exagero.

Convivemos na disciplina de cirurgia torácica e nos reencontramos na Santa Casa, 10 anos depois, ele super-recomendado pelos preceptores impactados pela sua inteligência luminosa e impressionante inquietude intelectual.

Muitas vezes, nesses anos de convívio, festejei a naturalidade com que ele abraçou o mantra responsável pela afirmação nacional de um programa de alta complexidade, sediado em um hospital com limitações econômicas de toda a ordem: é proibido desistir.

Há três meses, quando ficou evidente que a doença recidivara, comentei com ele, em conversas que só ele conseguia manter em animação total, que pretendia tocar adiante um projeto de livro que reunisse a nossa experiência de quase 700 casos de transplantes pulmonares, cerca de 50% de toda a experiência brasileira nessa área.

Quando o convoquei para escrever um capítulo sobre "Como fazer um transplante de pulmão dar certo a partir do pós-operatório imediato", o olho brilhou como fazia tempo, e eu soube que aquele era um presente que ele já não esperava mais.

Na penúltima conversa, já escolhendo o tamanho das frases pela falta de ar, ele reuniu forças para lamentar: "Desculpe, professor, mas não vou conseguir deixar o capítulo que prometi". E chorou. E choramos.

Com a morte rondando e a vida indiferente, uma paciente com pulmões destruídos pela covid-19 foi trazida do Interior com oxigenador artificial e mantida em lista de espera para um transplante improvável. Dezoito dias depois, com o Sadi morrendo do outro lado da parede, a Fátima recebeu seus pulmões novos e a esperança de voltar para a casa. O destino, irônico e debochado, mais uma vez se impôs, colocando vida e morte em caminhos paralelos.

Vamos precisar de um tempo para assimilar perdas e ganhos. A alegria da Fátima nos estimulará a continuar. Resta-nos administrar as perdas. Enquanto o Sadi era enterrado, fiquei pensando no que tinha sido a nossa maior perda: foi o parceiro que sempre sabia o que devíamos fazer, mesmo nas situações mais críticas. Então o que perdemos foi isso: a certeza.

Vamos ter que nos reinventar. E fragmentados com a certeza da falta que ele fará.

J.J. CAMARGO

24 DE JULHO DE 2021
ELÓI ZORZETTO

Como pode?

Há muito tempo as óperas, o cinema, o teatro perceberam que alguns ingredientes são fundamentais para conquistar o público. Além do cuidado na produção, de um enredo que desperte o interesse, de argumentos bem-fundamentados, a luta entre o bem e o mal se destaca. Por algum motivo esse embate entre forças opostas desperta uma grande curiosidade e é quase uma garantia de sucesso de público. É claro, todos gostam que, depois do sofrimento, da tragédia, do embate, da injustiça, o bem vença. Aliás, você lembra de algum filme que terminou com o mal triunfando? Existem, mas são poucos. As novelas, uma paixão nacional, jamais terminam com o mal se sobrepondo ao bem. Imagine a decepção daqueles que durante meses se sentaram diante da TV e sofreram junto com seus personagens favoritos ao ver o carrasco, o criminoso, o desleal, o mentiroso vencer? Não dá. Todos aplaudem o final feliz.

A maldade é um ingrediente humano. Eu até duvido de que o maldoso goste da maldade. Mas por algum motivo, em algum momento, ele a pratica. Tanto na ficção quanto na realidade, as pessoas do mal são uma absoluta minoria. A grande maioria é de gente boa, digna, trabalhadora, honesta. O problema é que os maus, mesmo em minoria, fazem um estrago muito grande na sociedade como um todo, principalmente quando se juntam. 

Às vezes, os prejuízos são irreparáveis, especialmente quando se passam por bonzinhos. Emocionalmente frias, as pessoas más compartilham traços narcisistas e sonham com poder ilimitado. Manipuladoras, pouco se importam com os sentimentos alheios. Possuem pouca ou nenhuma empatia. Com seu cinismo, usam artimanhas com a única finalidade de alcançar seus objetivos beneficiando os próprios interesses. Aceitam o comportamento degradante como algo corriqueiro, normal. Elas estão espalhadas em todas as classes sociais.

Do outro lado temos as pessoas que se destacam pelas características positivas. São íntegras, honestas, generosas, respeitosas, confiáveis, responsáveis, gentis, resilientes, disciplinadas. Elas possuem os melhores predicados. Poderíamos descrever infinitas características desses indivíduos que são responsáveis pelo desenvolvimento social positivo.

Ignorância, ingenuidade, oportunismo, vingança, influência ou perspectiva de algum tipo de vantagem são alguns dos motivos que formam os maus. Cruéis e arrogantes, não se importam de, lá adiante, fazer exatamente o contrário de tudo o que haviam pregado antes. É o senso de oportunidade valendo mais do que a palavra, do que a integridade ou do que qualquer valor digno que pudesse atrapalhar seu objetivo. E isso não tem distinção de classe social. 

Nós tentamos procurar respostas, mas nenhum argumento nos convence da adoção de tais práticas. E nos perguntamos: como pode alguém jogar uma pedra e matar uma pessoa que passa de carro sob um viaduto? Como pode um cirurgião plástico usar a medicina para assediar e violentar as pacientes? Como entender o comportamento de alguém como o jovem Iverson de Souza Araújo, o DJ Ives? Que, mesmo tendo milhões de seguidores nas redes sociais, praticou brutais agressões contra a ex-mulher diante da filha de nove meses. 

Como pode alguém se valer de um cargo público para se beneficiar e também locupletar seus asseclas com recursos arrecadados a duras penas através de contribuições e altos impostos pagos por pessoas severamente injustiçadas a quem havia prometido defender? Como pode alguém fazer falsas promessas enquanto candidato, propagar aos quatro cantos que é honesto e, depois de eleito, fazer o contrário ou permitir que outros dos seus o façam? Como pode alguém discordar do meio mais eficaz para combater uma doença que já provocou milhões de mortes no mundo? Como pode, durante uma pandemia, o Congresso aprovar um gasto de R$ 5,7 bilhões para financiar uma campanha política?

Se esses fatos fossem parte de uma série, filme ou novela, este seria o momento em que entram em cena os psiquiatras e a Justiça. A sociedade, que tem a grande maioria composta por pessoas do bem, precisa convencer os autores da realidade a reescreverem alguns roteiros e também alguns finais.

*David Coimbra está em férias - ELÓI ZORZETTO - INTERINO


24 DE JULHO DE 2021
ARTIGOS

A CRISE NO SISTEMA INFORMATIZADO DA JUSTIÇA

O Código de Processo Civil Brasileiro, em vigor desde março de 2016, consagrou o chamado "dever de cooperação", ao estabelecer em seu art. 6º que "todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva". Trata-se de preceito de natureza processual, com inspiração no Direito alemão e raiz no princípio da boa-fé, que ressalta que o dever de cooperação, para alcançar solução justa, não se restringe ao juiz, mas se estende igualmente às partes e aos mandatários destas, inclusive aos servidores da Justiça.

Portanto, para a retomada da regularidade da tramitação de processos em autos físicos ou em papel, os quais devem ser digitalizados para prosseguirem como processos eletrônicos e, segundo a OAB/RS, ultrapassariam 2 milhões, necessário seria contar com toda a colaboração possível. E, a partir desse novo modelo de comparticipação ou cooperação adotado pelo novo CPC, tal dificuldade de andamento processual iniciada com a pandemia e que se acentuou com o ataque hacker aos sistemas informatizados do TJ/RS e mais recentemente com as instabilidades verificadas no seu banco de dados, poderia ser vencida.

A demora em digitalizar e cadastrar todos os processos ainda em papel no novo sistema Eproc poderia ser superada de forma mais fácil se contasse com um trabalho compartilhado.

Sendo assim, a OAB/RS, além de suas justas reivindicações de providências à administração do TJ/RS para que haja a normalização do andamento dos processos físicos, poderia, como maior efetividade, apresentar a sua disponibilidade institucional e de seus associados de colaborar para um grande mutirão, no sentido de concluir a digitalização e cadastro dos feitos em papel restantes.

Dever de cooperação não se invoca apenas entre as partes de um processo judicial, mas também relativamente às instituições que cumprem papel de administrar e de desempenhar funções essenciais e indispensáveis à administração da justiça.

Desembargador do Tribunal de Justiça do RS | 

RICARDO HERMANN


24 DE JULHO DE 2021
FLÁVIO TAVARES

OS "CATARINAS"

Nossa relação com Santa Catarina foi, sempre, de carinho paternal com raízes profundas. Anita Garibaldi, lá nascida, é a mais lembrada heroína da Guerra dos Farrapos. Houve tempo em que, em gesto de pai para filho, chamávamos aquele Estado de "o maior município gaúcho".

Agora os papéis se invertem e Santa Catarina dita ao Brasil o exemplo a seguir, ao anunciar que vai zerar o uso do carvão como fonte de energia. No século passado, a mineração foi tida como "o grande empreendimento" daquele Estado. Não importava, sequer, que Criciúma (centro carbonífero) fosse cidade triste e doentia, com os telhados tingidos de preto pela contaminação. As belas praias catarinenses pareciam compensar o horror.

Agora, o governo de Santa Catarina vai enviar ao Legislativo um projeto de lei estabelecendo uma "política de transição energética" que substitua o carvão por fontes limpas e renováveis, como a energia eólica. Hoje, o carvão aciona a maior usina termelétrica da América Latina, em Capivari de Baixo, SC. Com apoio dos países da União Europeia e de fundos internacionais, o governo catarinense vai mudar a fonte de abastecimento, absorvendo os 20 mil empregos ligados ao carvão.

Essa preocupação com o futuro difere da visão tacanha com que os governos federal e gaúcho encaram as brutais mudanças climáticas que põem em risco a vida no planeta. Na área federal, continua o descaso com o meio ambiente, mesmo com a saída do ministro Ricardo Salles. Aqui no Rio Grande, a alteração do Código Ambiental (proposta pelo governador) facilitou os passos para cavar mina de carvão a céu aberto, em área de banhado junto ao Rio Jacuí, próximo à Capital.

Além de ignorar os alertas da ciência sobre o perigo do carvão, a mina pode, em eventual desastre ambiental, como em Brumadinho, transformar o Guaíba num lago de águas podres.

Teremos de beber (ou nos banhar) com água mineral da Guarda e Gravatal, lá dos "catarinas"?

A inquietação maior, porém, surge na área política ao saber-se que o ministro da Defesa, general Braga Netto, disse ao presidente da Câmara dos Deputados que não haverá eleição em 2022 sem que se adote o voto impresso, como informou o jornal O Estado de S.Paulo.

O ministro nega a informação, em que ele apenas repetiria a lenga-lenga de Bolsonaro, que, sem apresentar sequer evidências, alega que o voto eletrônico leva à fraude. Ou tudo é o pré-aviso de eventual golpe à luz do dia, em que os autores nem sequer se ocultam?

FLÁVIO TAVARES

24 DE JULHO DE 2021
OPINIÃO DA RBS

SEQUELAS NO MERCADO DE TRABALHO

São inquietantes as conclusões do relatório Emprego em Crise: Trajetória para Melhores Empregos na América Latina Pós-Covid-19, divulgado há poucos dias pelo Banco Mundial. O estudo adverte que, no caso do Brasil, as sequelas da pandemia no mercado de trabalho se materializarão em até nove anos com a renda de parte da população comprometida. Confirmando-se essa perspectiva, serão ainda maiores as dificuldades para o país ter um crescimento com qualidade, no sentido de que os benefícios do avanço da atividade econômica não serão percebidos por todos os cidadãos. É um panorama que já é palpável hoje, como mostra a alta substancial do PIB previsto para 2021, da ordem de 5%, enquanto o desemprego permanece em níveis recordes e a miséria aumenta.

O relatório do Banco Mundial lista os trabalhadores com menos qualificação e os mais velhos como os mais afetados. Ou seja, são aqueles que terão maior dificuldade de recompor a renda a níveis semelhantes ao período anterior à chegada da covid-19. A força de trabalho com curso superior, por sua vez, será menos atingida. Isso significa que, mesmo que encontrem ou tenham enfrentado pontualmente dificuldade de recolocação, formam um grupo que, pelos atributos possuídos, tende a encontrar uma vaga e reaver a renda.

Esta constatação reforça que está na educação a chave para que mais brasileiros possam ter melhores esperanças de um futuro que os afaste do subemprego e de uma baixa produtividade que afeta toda a economia. É uma premissa que vale para médio e longo prazos, dando especial atenção para as crianças e adolescentes de hoje, mas também para os adultos que, neste momento, deparam com barreiras para a recolocação. O Banco Mundial observa que, além de medidas emergenciais, como programas de seguro-desemprego e ampliação da rede de proteção, é indispensável dispor de um sistema vigoroso e eficiente de apoio à busca pelo reemprego. 

O que passa, necessariamente, por programas de qualificação para esse contingente. Dos quase 15 milhões de desocupados no país, cerca de 3,5 milhões estão há mais de dois anos em busca de uma vaga. Tanto tempo de afastamento lega, sem dúvida, uma brutal desatualização em relação a tecnologias e processos, o que realimenta o ciclo nefasto. Em vários setores, é corriqueiro encontrar queixas de gestores de empresas observando que, apesar de oferta de vagas, são raros os candidatos que atendem aos requisitos exigidos para o posto.

Para incluir mais brasileiros no processo de crescimento da economia, gerando renda, consumo e fortalecendo o mercado interno, é inadiável trilhar a via do ensino. Para as atuais e futuras gerações. Isso inclui uma atenção especial à recuperação do aprendizado nas escolas, especialmente as públicas, após o longo período de colégios fechados, com toda a série de dificuldades do estudo online para os alunos oriundos de famílias mais humildes. Do contrário, a já inaceitável desigualdade do país continuará a crescer. Mas o que o Banco Mundial apresenta é um cenário. Assim, ainda é possível reverter este quadro, uma vez que soluções existem e passam não só pela educação, mas por distensionamento político, reformas e o avanço da vacinação para deter o mais rápido possível a pandemia.

 


24 DE JULHO DE 2021
MARCELO RECH

Um vírus solerte

O vírus da desinformação sobre a covid tem um curso traiçoeiro. Ele é produzido em laboratório, espargido por contas nas redes sociais e se multiplica rapidamente por organismos com baixa imunidade à ciência. Os indivíduos contaminados descartam as medidas de proteção - centenas de pesquisas científicas, jornalismo sério, autoridades confiáveis - e por vezes transmitem o vírus sem apresentar sintomas de fanatismo ou de má-fé: fazem-no porque, no fundo, acreditam ter tido acesso a algo que, por mais estapafúrdio que seja, faz sentido para eles.

Como na covid, não há vacina com 100% de eficácia contra esse vírus. Veja-se o caso dos Estados Unidos. Na mesma semana em que uma empresa enviou quatro turistas ao espaço, uma pesquisa da The Economist/YouGov revelou que um em cada cinco norte-americanos está convencido de que o governo usa as vacinas para injetar chips nos cidadãos. Sim, nos EUA, a maior potência da Terra, um quinto de toda a população adulta prefere crer em uma doidice do que em incontáveis estudos da melhor ciência já produzida até hoje.

Outra pesquisa demonstra quão contagiosas são as esquisitices virais que circulam sem freios pelas redes sociais e em grupos de mensagens. Citado pela Casa Branca, um relatório do Centro de Enfrentamento do Ódio Digital, uma organização não governamental, apurou que 75% das falsidades contra as vacinas nos EUA partiram de apenas 12 personalidades online, criadoras de mensagens que atingiram rapidamente 57 milhões de pessoas.

O mesmo estudo identificou que 95% da desinformação não foi removida pelo Facebook, o que levou o presidente Joe Biden a acusar a plataforma de estar "matando pessoas". Embora pesada, a acusação reflete o estado de indignação com o fato de que, apesar de seu governo ter posto à disposição doses abundantes para toda a população vacinável, apenas metade do país está plenamente imunizada. Com tanto terreno livre, a variante delta impulsionou os casos de covid nos EUA em 200% em duas semanas.

Embora em queda, a chamada "hesitação às vacinas" segue desafiando governos responsáveis. Não adianta chamar os contrários à imunização de otários ou cretinos, porque ataques só os consolidam na posição de ignorância e rejeição coletiva. Mais efetivo é não se hiperdimensionar casos isolados de reações graves às vacinas - estatisticamente desprezíveis - e se demonstrar na prática a eficácia da vacinação em massa. Ou, quem sabe, fazer como o presidente francês, Emmanuel Macron, que jogou a toalha e avisou que só entrarão em bares e restaurantes os que apresentarem um atestado de vacinação. Enfim, um antídoto poderoso contra mentes contaminadas. Touché.

MARCELO RECH

24 DE JULHO DE 2021
INFORME J. R. GUZZO

Aras estancou a sangria política

O presidente Jair Bolsonaro, como se sabe desde que ele começou a assinar nomeações de peixes gordos para o seu governo, já mostrou com clareza que é muito ruim para escolher qualquer funcionário que tenha alguma coisa a ver com justiça. Mais do que errar, ele se tornou um especialista na arte de repetir o erro - o que mostra, infelizmente, que não erra por acaso.

O último chute no pau da barraca foi a renomeação do procurador-geral da República, Augusto Aras, para mais um período no cargo que vem tratando tão mal desde que foi nomeado a primeira vez. O problema desse Aras 2.0 não é, como se escandalizaram os crentes no estado de graça permanente do Ministério Público, o fato de não fazer parte da "lista tríplice" expedida pelos militantes sindicais do MP. O problema real está no fato de que Aras é, na data de hoje, um dos instrumentos mais eficientes para impedir o combate à corrupção que despacha dentro da máquina estatal brasileira.

Aras vem destruindo, em tudo o que faz, todo o trabalho do MP contra a ladroagem que chegou a extremos inéditos nos governos Lula-Dilma - os 13 anos e meio em que a politicalha e seus vários senhores mais roubaram na história do Brasil. Para não alongar um assunto sobre o qual até as crianças com 10 anos de idade estão suficientemente informadas, o PGR que Bolsonaro agora nomeia de novo mandou acabar, sem o menor constrangimento, com nada menos do que a Operação Lava-Jato.

Precisa dizer mais alguma coisa? O PGR de Bolsonaro é hoje o herói da classe política brasileira - não só de Lula e do PT, mas de todo político enrolado com o Código Penal. Por isso mesmo, não vai se ver o senador Renan & cia. propondo nenhuma CPI para "investigar" Augusto Aras. "Precisamos estancar a sangria", disse o ex-senador Romero Jucá, em momento realmente histórico da política brasileira, durante o governo Michel Temer. Pois foi isso, exatamente, que Aras fez: estancou a sangria.

Poucas vezes um mandarim da política de Brasília resumiu tão bem, como Jucá, os sentimentos verdadeiros dos seus pares. E poucas vezes um PGR fez com tanta perfeição o trabalho que os políticos brasileiros realmente esperavam dele. É por essa razão, e nenhuma outra, que os fugitivos da lei penal ficam tão quietinhos quando o assunto é PGR. Os mais excitados ativistas em favor da "democracia", e contra o genocida de direita, jamais deram um pio neste assunto. O genocida, aí, vira um grande homem.

Aras piorou notavelmente o seu desastre ao congelar investigações sobre o filho do presidente e calar-se sobre as violências grosseiras que o STF fez em seu "inquérito contra os atos antidemocráticos" e as suas agressivas intervenções nas áreas de competência dos outros poderes. Cala-se, consente e está mantido no cargo. "Governabilidade" deve ser isso aí.

por Gazeta do Povo Vozes

J.R. GUZZO