sábado, 21 de agosto de 2021


21 DE AGOSTO DE 2021
LYA LUFT

O fim da vida é uma escada?

A escada tem um final, ou tudo é fantasia? Isso nos dá medo e nos torna agressivos?

Tenho me feito essa talvez estranha pergunta porque nunca nos vi tão prontos para o salto com garras e dentes à mostra. A jugular, os olhos, talvez a alma.

Verdade que o mundo enlouqueceu um pouco mais de medo com o vírus, a Mãe Natureza não está de brincadeira, haja terremoto, deslizamento, incêndio e inundação. Haja guerra, guerrinha, brigas e insultos pessoais.

Por outro lado, estranhamente, nunca quisemos ser tão chiques, às vezes disfarçados de rústicos, naturais, de uma modéstia cuja falsidade grita aos céus como diziam os antigos.

Estamos agitados, assustados, cruéis e agressivos, mesmo debaixo das sedas e joias exóticas.

Nem todos, nem sempre, mas... olhando ao redor, que susto, que medo. Talvez a agressividade nos alivie do medo e da solidão. Tenho tido tempo demais para observar e refletir até dentro de mim mesma.

Também não sou doce nem santa nem um lago de tranquilidade, ando numa fase de pedir colo, quem pensaria, não é?

Na invenção da casa da vida, sempre surge aquele muro, aquele portão enorme, aquela escada que parece não dar em lugar nenhum.

Subo uns degraus, mas acho que se puder desço correndo.

LYA LUFT

21 DE AGOSTO DE 2021
MARTHA MEDEIROS

Para elas

Somos 10 amigas do colégio, um grupo que atravessou todas as etapas de formação - passamos juntas pelos primeiros namoros, dores de cotovelo, viagens, vestibular, casamentos, filhos, separações, crises profissionais, perda dos pais e agora começam a chegar os netos. A gente se conhece profundamente, o que não significa que pensemos da mesma forma ou que levemos uma vida parecida, ao contrário, as estradas se bifurcaram. A Alice mora nos Estados Unidos, a Karin é professora do Estado, a Ana está quase se formando em Nutrição voltou para a faculdade depois que se aposentou. Este é o ano em que todas completam 60, e, para celebrar, havíamos combinado, com bastante antecedência, de alugarmos uma casa por uns dias a fim de recordar a época em que pegávamos a estrada, tocávamos violão na praia, dormíamos em barracos de pescadores - jovens do exército do surfe, como cantava a trupe do Asdrúbal.

Só que não sou fã de imersões. Quando chegou a hora, amarelei. Estava lotada de trabalho e de demandas pessoais: como abrir espaço na agenda só para dizer bobagens, comer, beber e pegar sol? Quando ameacei dar pra trás, fui chamada na "chincha" por uma delas, que me convenceu com um discurso comovente sobre a importância desse resgate afetivo e da confirmação dos laços, mas o argumento irrefutável foi: "Ninguém sabe como estaremos aos 70".

Alugamos uma casa em Paraty Mirim, com acesso apenas por barco e um visual de dar inveja a balineses e tailandeses. São Pedro fez a parte dele, nos presenteando com um céu azul de doer, e a gente fez a nossa: não paramos de rir, desde o encontro no aeroporto, no trajeto de van até Paraty e a chegada ao local do confinamento, uma residência de três andares envidraçados, instalada no meio do mato e de frente para o mar, projetada para se integrar com a natureza e garantir dias de sonho aos seus locatários. Sonhamos, mas dormimos pouco.

É para vocês, minhas irmãs, essa coluna.

Se eu não tivesse ido, teria perdido o privilégio de azeitar ainda mais essa intimidade tão longa e rara. Fiz muitos outros amigos no decorrer da vida, alguns com quem tenho até mais afinidade, já que, ao amadurecer, a gente vai filtrando, selecionando, escolhendo quem caminhará ao nosso lado, mas entre mim e vocês foi explosivo, um Big Bang. Éramos crianças entrando na adolescência. Não havia papo cabeça, ninguém sabia o que seria quando crescesse, era só intuição, farra e amor, como toda amizade que brota sem interesse, por cisma do destino. Bendita escapada em meio ao caos, em plena pandemia, com o mundo de pernas para o ar. Ter aberto esse parêntese para a nossa alegria juvenil, mesmo que por uma lasquinha de tempo, é que nos impulsionará para os 70 com o mesmo pique (otimismo, sisters!) e as mochilas feitas.

MARTHA MEDEIROS

21 DE AGOSTO DE 2021
CLAUDIA TAJES

Tarcísio

Não acontece de, às vezes, você lembrar de alguma pessoa das ditas "famosas" - um ator ou atriz, um político, um autor -, uma pessoa que está, por qualquer circunstância, ausente da mídia, e não saber se ela continua viva?

Comigo acontece, em geral quando o assunto é um filme de muito tempo atrás, ou um evento não tão recente, ou uma novela que fez sucesso em outra década. A solução é sempre a mesma, recorrer ao Google. Em certas consultas, é uma surpresa descobrir que sim, a figura decidiu existir longe dos olhos alheios e passa muito bem, obrigada. Em outras, é um choque confirmar que quem fez parte da nossa história não existe mais.

Ou existe, porque quem está na nossa história nunca vai desaparecer.

Foi o que senti ao saber da morte do Tarcísio Meira. Tarcísio Meira, não: Tarcísio. Porque o Brasil inteiro sempre teve tanta intimidade com ele que ficaria formal demais falar nome e sobrenome agora. Bastava dizer Tarcísio que todo mundo já sabia de quem se tratava.

Tarcísio, por quem cada guria, cada mulher, cada senhora um dia suspirou - mas sempre com total respeito, já que elas amavam a companheira dele também. Duvido que alguma se imaginasse tendo um affair clandestino com o Tarcísio, em um quarto de motel com o Tarcísio, em cenas picantes com o Tarcísio. O Tarcísio era outra coisa, era para ver, admirar, até sonhar. Mas os sonhos eram sempre castos, e a Glória Menezes também aparecia neles.

Glória Menezes, não. Glória. Pelos mesmos motivos citados acima sobre o Tarcísio.

Desde a semana passada, fotos do Tarcísio em todas as fases da vida têm circulado pelas redes e jornais, ele lindo em todas. É provável que até naquela idade em que os meninos não se parecem com nada conhecido, não mais crianças e ainda muito distantes da forma de um adulto, ele tenha sido lindo. Periga não ter sofrido com espinhas, cabelos oleosos, falta de músculos, bordinha de catupiry na cintura, como qualquer pré-adolescente. Será que algum dia penou por um protoamor, uma paixão não correspondida, um engano que o tirou do chão?

Certo que sim. O Tarcísio passava a humanidade de quem viveu todos os sentimentos. E, se não fosse assim, não seria o grande ator que foi.

Tarcísio nos deixou tanto. Nos deixou a Glória, que tem o amor incondicional do país todo. Nos deixou um filho que se parece com ele na aparência e no talento - bota DNA bom nisso. Nos deixou o Irmão Coragem mais bacana, o Renato Villar, o Felipe de Alcântara Pereira Barreto, o Capitão Rodrigo, nos deixou histórias para sempre.

É por isso que ele vai continuar existindo.

Em uma semana de tantas coisas feias, reformas que tiram direitos, convocações estapafúrdias, as cenas do Afeganistão, e de uma perda igualmente sentida como a do grande ator Paulo José, falar no Tarcísio traz um certo consolo.

A arte é boa companhia até na tristeza.

CLAUDIA TAJES

21 DE AGOSTO DE 2021
LEANDRO KARNAL

ANDAR COM FÉ

As pessoas têm fé. Crer é humano. Talvez o reverso da moeda seja verdade e sejamos humanos porque cremos. Não me leve a mal o leitor ou leitora menos devoto ou indiferente. Não me refiro à crença em Deus ou em deuses. Acreditar, realizar o que se chama de salto de fé, é muito maior do que qualquer um de nós pode conceber.

Exemplo banal, porém verdadeiro: a estatística mostra que dirigir em estradas no Brasil é perigosíssimo. Perdemos cerca de 80 conterrâneos diariamente em acidentes de trânsito: 30 mil vidas por ano, em média. Mais de 5 mil deles apenas no Estado de São Paulo. Ou seja, por prudência, não deveríamos andar de carro por aqui. No entanto, o fazemos. Diariamente. Todos nós entramos em nossos veículos, distraídos, apressados, benzendo-nos, mas embarcamos certos de que, conosco, naquele dia, nada ocorrerá. São números assombrosos e seguimos confiantes. Dirigir, como vemos, é um ato de fé.

Há outra dimensão da convicção absoluta. Quase tudo que vemos (e que não vemos) ao nosso redor é criação nossa. Os veículos, os prédios, as coisas tangíveis são, obviamente, produtos humanos. Há criações que, de tanto acreditarmos nelas, parecem naturais, atemporais, que sempre estiveram lá, como o dinheiro, o casamento ou a democracia. Nada disso é fruto da natureza e, em todas, necessitamos crer para ver. Imaginem um alienígena chegando para nos visitar.

Por maior que fosse seu espírito antropológico e sua real vontade de nos entender, qual seria sua surpresa ao se deparar com seres que amanhecem acreditando que ao chamarem um carro por um botão de celular ele aparecerá. Ou... que temos um sistema no qual votamos uns nos outros para que o eleito represente os ausentes.

Não me interpretem errado. Dizer que algo é uma invenção, que não existe em si, que faz parte de um sistema ultraelaborado de crenças não é dizer que ele não seja real. A democracia e o casamento são reais. Traia seu cônjuge e tente puxar da manga a carta de que a monogamia é uma invenção, uma convenção boba. A reação será a medida. Yuval Harari chamou esse tipo de crença humana de grandes ficções. Mesmo nos momentos que se tornaram solenes na memória histórica, como nas declarações de independência, abunda crença: é um pacto de fé achar que um punhado de terras, daquele momento em diante, ganhará uma fronteira, que delimita cidadãos que ali nasceram de estrangeiros que vieram ao mundo cinco centímetrosao lado. Não à toa, o segundo parágrafo da norte-americana começa com "Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas". Se tem que explicar é porque tais verdades não são tão autoevidentes assim. Mais interessante é perceber que essa é uma ficção compartilhada Um historiador norte-americano, David Armitage, já afirmou que a declaração era tanto de independência quanto de interdependência.

Se os demais países do mundo, invenções mais antigas, não acreditassem no que era ali declarado, de que valeria buscar a soberania? Com quem fariam comércio? Para quem destinariam seus produtos? Como sobreviveriam? A Inglaterra não acreditou no texto e a guerra tomou anos. Se o texto era de 1776, a antiga metrópole só passou a acreditar na nova nação em 1783, pelo Tratado de Paris. Séculos depois, quem não acredita nos Estados Unidos?

Voltemos ao início e retomemos o que já descobrimos juntos: crer é fenômeno humano, todos acreditamos em ficções complexas que sustentam nosso dia a dia. Pergunta decorrente: isso é bom? Crer é positivo? O mesmo mecanismo que me faz acreditar em um deus, numa constituição ou que um papel colorido com um desenho de um bicho que tenho na carteira pode ser trocado por comida não seria o mesmo que me faz crer em tratamento precoce para covid, em fake news e que há salvadores messiânicos em política?

Sim, infelizmente é o mesmo. Escolhemos fés, herdamos outras, podemos modificar muitas delas. Possivelmente, a saída da armadilha de sermos seres tão crentes seja... mais crença. Ao entender que a grande maioria das coisas que me cercam não é natural, porém criação humana, não preciso, necessariamente, ser cético.

Posso, num salto de fé, acreditar que podem ser melhoradas. Ninguém sabe se o serão. Talvez não o sejam. Acreditar que possam ser é o X da questão. Vejamos mais um exemplo que já consta do texto: identificando tantos acidentes de carro, podemos pensar em formas mais seguras de dirigir, algoritmos que impeçam colisões, veículos capazes de absorver impactos, poupando seus ocupantes.

Podemos legislar (outra invenção maravilhosa!) sobre velocidades máximas, entender que, em mobilidade urbana, transporte de massa é mais interessante do que carro. Enfim, podemos imaginar futuros alternativos melhores, buscar formas concretas para que se tornem realidade. Ainda que nunca se concretize o futuro sonhado. Com a democracia, o mesmo: ela é fruto de nosso engenho, de novas e constantes pautas, de lutas, de uma constante busca por vivermos juntos e melhor. Há enormes problemas e, ao tentar consertar um furo, descobre-se outro, por vezes. Como o carro: podemos imaginar mil melhorias, mas ele, mesmo infinitamente mais seguro, ainda polui.

Mesmo assim, tenhamos fé nessa invenção. Sem democracia, sem leis, experimentaremos problemas mais sérios. Achemos um jeito de manter essa deusa e seus fiéis, sempre reformando o templo em que nos reunimos. Jamais o derrubando. Sempre com esperança.

LEANDRO KARNAL

PANDEMIA NÃO ESTÁ ACABANDO E CORONAVÍRUS CONTINUA MATANDO

A variante Delta, que se espalha pelo mundo, está entre nós. Vai competir com a Gama, originada em Manaus. Impossível prever qual delas prevalecerá, já que a seleção natural é imprevisível, como nos ensinaram Charles Darwin e Alfred Wallace.

Não há estudos comparativos entre as duas. A Gama leva a vantagem da primazia no país; a Delta, a da carga viral elevada que consegue atingir nas vias aéreas superiores. Estudos realizados na Inglaterra mostraram que a concentração do vírus Delta nas mucosas nasais chega a ser mil vezes superior à da variante Alfa que surgiu no Reino Unido no último trimestre do ano passado.

Uma coisa é certa, entretanto: em todos os países em que chegou uma variante mais contagiosa, houve aumento do número de casos, portanto de óbitos. Nos Estados Unidos, por exemplo, a Delta deslocou rapidamente as demais variantes que circulavam no país, duplicando o número de casos e de mortes, nas duas últimas semanas.

É pouco provável que fenômeno semelhante não se repita no Brasil, à medida que essa variante encontrar uma população em que apenas 22% estão completamente imunizados. Como agir para evitar as consequências trágicas de mais uma onda, que parece inexorável?

Sejamos realistas: um ano e meio de pandemia é tempo demais. Todos estão cansados do isolamento, a economia enfrenta uma crise com quase 15 milhões de desempregados e cerca de 35 milhões na informalidade, gente que se ficar isolada engrossa a multidão dos que passam fome.

Por outro lado, como já tivemos mais de 3 mil mortes diárias, a média deste início de agosto pouco abaixo de mil transmite a sensação falsa de que as vacinas já controlaram a pandemia.

No ritmo lento em que caminha a vacinação, no entanto, se não pudermos contar com o isolamento, o que sobra? A lavagem das mãos e as máscaras.

De abril do ano passado - quando ficou comprovado que as máscaras ofereciam proteção -, até março deste ano, quando caiu o general que sabe lá por que interesses ocupava o Ministério da Saúde, o governo federal não se dignou a conduzir uma campanha sequer para explicar e reforçar a necessidade de usar máscaras.

Durante todo o ano de 2020, a única campanha nacional para incentivar o uso de máscara, no rádio e na TV, foi realizada pelo Todos pela Saúde, grupo que administrou a doação de R$ 1,2 bilhão feita pelo Itaú-Unibanco.

É o preço que pagamos por viver num país em que o presidente insiste até hoje em expor a cara descoberta e em dar exemplos diários de como os brasileiros devem fazer para disseminar o vírus e provocar mais mortes.

Esse coronavírus já provou que sofre mutações capazes de torná-lo mais contagioso. Enquanto existirem no mundo populações não vacinadas, variedades novas surgirão uma atrás da outra, pondo em risco de morte quem não foi imunizado com as doses necessárias e em risco de desenvolver uma doença de intensidade mais leve mesmo os vacinados, mas que pode deixar sequelas físicas prolongadas.

Já que não há como contar com o atual Ministério da Saúde, despreparado e subserviente, as secretarias estaduais e municipais devem assumir a liderança na promoção do uso de máscaras. Num esforço conjunto com a iniciativa privada, temos que repetir exaustivamente pelos meios de comunicação de massa que a máscara é a única saída.

As máscaras de pano atenderam às necessidades, enquanto eram a única solução para um país dependente das que chegavam da China. Elas ajudaram a conter a disseminação do vírus, mas agora dispomos de opções mais eficazes. Temos que fazer as máscaras cirúrgicas e as N95 chegarem às mãos dos que mais precisam: os brasileiros mais pobres que utilizam transportes públicos.

Incrível que ainda não tenhamos providenciado essa distribuição nas estações de trem, de metrô e nos pontos de ônibus das áreas periféricas e centrais das cidades brasileiras.

Não é possível que faltem recursos financeiros para uma intervenção tão barata. Quantas máscaras podem ser compradas com o dinheiro gasto para cobrir os custos de uma só diária de alguém entubado numa UTI do SUS?

A manter a tendência atual, o número de óbitos no Brasil ultrapassará o dos Estados Unidos. Ostentaremos humilhados esse recorde mundial. Não podemos deixar que a sociedade viva a fantasia de que a pandemia está em seus dias finais. Não está, o vírus ficará por aqui.

DRAUZIO VARELLA 


21 DE AGOSTO DE 2021
BRUNA LOMBARDI

DUAS ESTRELAS

Entre milhares de pessoas que partiram, o público brasileiro perdeu dois talentos imensos e eu perdi dois colegas queridos, dois parceiros de jornadas e histórias.

Durante décadas, rimos, choramos, emocionados com os personagens que criaram e eu tive o privilégio de conviver com cada um deles de um jeito diferente.

Com Paulo José, durante mais de um ano, fiz a peça de teatro Eu te Amo, do Arnaldo Jabor, que também a dirigiu. Fazíamos sete sessões por semana, duas no sábado e duas domingo, num convívio íntimo e diário. Muito camarim, muita conversa, muita troca, muita intimidade de bastidores, confidências e amizade. Paulo era culto, inteligente, apaixonado pelo ofício. Nunca perdeu seu sotaque gaúcho e nem sua mania de contar causos, histórias. Conhecia centenas. Gostava de reflexões, citações e poesia. Adorava fazer surpresas e chegava declamando poemas pelos corredores, depois entrava no meu camarim para receber aplausos. Tinha a vaidade de um eterno adolescente e sabia brincar sobre isso. Analisava tudo com olhar agudo e senso crítico e nunca perdia o humor, nem o sarcasmo.

Com seu talento versátil, sempre soube construir personagens adoráveis e era querido por todos, um menino que envelheceu de repente, como ele mesmo dizia.

Trabalhei muitas vezes na TV com Tarcísio Meira, que já era uma figura icônica quando o conheci. Eu o assistia, ainda menina, nas novelas e nunca imaginei que um dia fosse contracenar com ele. O Tarcísio parece ter vindo ao mundo para ser o ícone que foi, esse gigante, o maior nome da televisão e o rosto mais marcante.

Ele era grande, forte como um touro e indizivelmente delicado. Um ser de imensa gentileza com todos que o cercavam. Todo mundo adorava o Tarcísio e de certa maneira temiam o poder que emanava dele, de forma tão natural.

Mas quando o conheci melhor, além dessa imagem, descobri um cara tímido, introvertido, que sonhava ir para sua fazenda no Pará, de adentrar no mato e ficar quieto, longe dessa vida da cidade.

Fiz alguns trabalhos memoráveis com ele na TV Globo, como Roda de Fogo, Corpo e Alma e a série Grande Sertão Veredas, direção do Walter Avancini. Vivíamos ainda na época final da censura no Brasil quando Roda de Fogo quebrou os paradigmas e foi a primeira obra a falar da corrupção nas camadas privilegiadas da sociedade. Falava da impunidade da dita "elite", que faz e desfaz com seus podres poderes, comete todo tipo de crime, sem sofrer julgamento e castigo. Nunca antes esse assunto tinha vindo à tona e corrupção da classe alta era um tabu perigoso durante a ditadura.

Tarcísio quebrou sua marca registrada e viveu um vilão. A TV quebrou sua tradição e fez o vilão ser protagonista e eu fiz uma juíza que, mesmo sendo defensora rígida de princípios e valores, acaba cometendo a grande falha humana de se apaixonar.

Em Corpo e Alma, também fizemos juntos grandes cenas dramáticas e lembro da cena final de abandono, nós dois aos prantos, e depois enlouquecida dirigi pela estrada até cair do penhasco num acidente de automóvel. Uma daquelas paixões trágicas que superam a morte.

O nosso encontro maior e mais difícil foi no ermo do sertão, no meio do nada, nonada, eu Diadorim, ele o demo, o horrível Hermógenes, com quem eu tinha que lutar fisicamente e vencer e matar a facadas o meu maior inimigo. na cena lendária de Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa.

Lembro disso tudo porque atrás de cada uma dessas grandes encenações existia nossa parceria, nosso companheirismo, a força que ele e a Glória, sua mulher da vida toda, me davam em qualquer situação. Agradeço ao destino por me proporcionar esses lindos momentos e olho para o céu sabendo que agora existem duas estrelas a mais.

BRUNA LOMBARDI

21 DE AGOSTO DE 2021
J.J. CAMARGO

OS AMIGOS POLÍTICOS

Logo depois que conquistamos o privilégio de sair de casa com a chave no bolso e tudo o que isso significava de liberdade, aprendemos que os maus frequentam todas as rodas, com uma naturalidade proporcional ao número de maus que os rodeiam. A periculosidade de um lugar ou bairro, e a polícia sabe bem disso, se estima por este percentual da malignidade presumida.

Mesmo os ambientes mais sacrossantos não estão livres de toda a iniquidade, e a presença de Judas entre os discípulos de Jesus é a prova mais antiga disso.

Por outro lado, a escolha de uma profissão pode ser vista como um indicativo do tipo de personalidade, pois se imagina que um guarda florestal seja mais meigo do que um agente de narcóticos, ou que um funcionário da receita federal seja menos tolerante a explicações do que um selecionador de candidatos para um trabalho voluntário.

Mas ainda assim, respeitadas essas vicissitudes e descontadas as implicâncias, vamos encontrar bons e maus em todas as atividades humanas.

Há, inegavelmente, uma tendência crescente de demonizar os políticos, o que não se constitui em nenhuma novidade, porque eles já eram fontes de humor cáustico nas comédias satíricas desde sempre, com Dante, passando por Shakespeare, Cervantes e Molière.

Talvez o que mais afeta a confiabilidade nos políticos profissionais seja a sensação permanente de que a sobrevida deles no meio que poluem se condiciona à manutenção de vínculos que assegurem estabilidade na janela que a mídia decora semanalmente, e que é consultada pelas lideranças para decidir, com isenção de um capo napolitano, quem permanece na vitrine e a quem se pedirá, com ares de generosidade, que solicite umas férias por razões de saúde, em nome, claro, da amizade tão antiga quanto fraterna.

A luta pela sobrevivência, em qualquer função, deve ser entendida como um instinto primário e ser vista como compreensiva, pura e natural como a preservação da vida. Mas quando essa dependência é transferida para a política, antes de ser antiética e indecente ela é pobre e humilhante. Encha uma sala de celebridades para uma cerimônia qualquer que tenha a regência de um político de ofício e descobrirá o esmero com que o político travestido de mestre de cerimônia citará todos os representantes de bancadas, preocupado em garantir igual deferência quando, no futuro, ele estiver na sombra dos holofotes.

Uma prática recorrente inclui o hábito novo de, ao iniciar um novo parágrafo, citar nominalmente algum dos colegas presentes, dando prestígio ao anunciado e deixando a galera com a sensação de anônima insignificância.

Claro que pode ser implicância minha, mas recomendaria aos mais jovens que tenham não preconceito, porque isso encolhe o portador, mas um certo cuidado com amigos políticos, porque se um dia algum interesse pessoal deles se atravessar entre você e outro político, eles sacrificarão essa amizade consigo, sem titubear. E sem remorso. Então, admita para si, e em silêncio, que a amizade com o escorpião era desde o princípio uma iniciativa temerária, porque a infidelidade é um traço de caráter que, como tal, não se modifica. Então, quando isso ocorrer, não se queixe, nem aparente surpresa. Não fará bem para a sua autoestima combalida os outros descobrirem que só você ainda não sabia disso.

J.J. CAMARGO

21 DE AGOSTO DE 2021
DAVID COIMBRA

Uma prova de amizade

Faltavam 12 minutos para a meia-noite de quinta-feira quando recebi uma mensagem pelo celular. Não vi a mensagem - já estava dormindo. Vinte anos atrás, jamais admitiria dormir antes das duas da madrugada, mas o tempo passa e tudo muda, inclusive você e eu. Além do mais, aquele fora um dia afanoso, então, estava usufruindo do repouso dos justos e só vi a mensagem na manhã seguinte. Era do meu amigo Cabeça, o Nelson Guahnon. Tratava-se de um alerta:

"Tô vendo na Globo: Maria Casadevall e Sophie Charlotte".

Ler aquilo me comoveu. Realmente me tocou. Mas, antes de dizer por que, preciso observar que já gostei mais de Maria Casadevall. Ela me cansou por parecer muito opiniática. Entenda: não é que ache que ela não devia ter opinião. É bom que as pessoas tenham opinião. Só que uma pessoa que está sempre emitindo a sua opinião aborrece o meu pequeno cérebro. Ele, meu pequeno cérebro, tem de ficar decidindo se aquilo que a pessoa disse está certo ou errado, o que é trabalhoso. É chato. Em geral, inútil. Descobri, a respeito do meu pequeno cérebro, que ele está pouco se lixando para opiniões, inclusive as minhas.

Desconfio de que tudo seja uma questão de economia de esforço. Meu pequeno cérebro é definitivamente preguiçoso. Assim, ele faz tudo para fugir do trabalho. Se ele já formou conceito acerca de alguma coisa, ele abandona aquela coisa. Para que ficar pensando sobre Bolsonaro e Lula, se ele já se decidiu sobre eles? É uma perda de tempo. Melhor jogar um xadrezinho ou ver Peaky Blinders na TV.

Sophie Charlotte tem opinião, reflete sobre o mundo e tudo mais. Mas não está a todo instante fazendo julgamentos, denúncias e protestos. Aparentemente, é uma pessoa mais relaxada. Claro, posso estar enganado. Já me decepcionei com homens públicos, ao conhecê-los pessoalmente.

De qualquer forma, a análise das personalidades de Sophie e Maria não é o mais importante, agora. O importante é a mensagem que o Cabeça me mandou. Ele sabe que nutro profunda admiração não apenas pela competência profissional dessas duas atrizes, mas por sua beleza física. Até porque ele partilha dessa admiração. Que, aliás, não tem nada de sexual, não maliciem - é uma questão estética, quase que artística, praticamente religiosa, de admirar a obra do Senhor.

Agora, entenda o que aconteceu: o Cabeça estava diante da TV e viu que, em algum filme ou seriado ou seja o que for, Sophie Charlotte e Maria Casadevall estavam juntas. Com o que, pensou: "Cara, tenho que avisar o David!" E foi o que fez. Mandou-me, prontamente, uma mensagem por Zap.

O que significa isso?

Amizade.

Porque o amigo de verdade não é só o que liga nas horas ruins, é o que quer compartilhar com o amigo as coisas boas da vida. Ele está comendo um churrasco delicioso e de imediato lamenta: "Pena que meu amigo não está provando desse entrecot". Ele está vendo um filme ótimo e, antes mesmo do final, decide: "Vou dizer para o meu amigo ver esse filme". Ele lê um livro espetacular e compra outro igual para dar ao amigo. Isso é bonito.

Já aconteceu de um amigo meu se encontrar em plena contemplação de uma bela mulher e me ligar:

- Cara, tu tinha que ver essa morena! Tu tinha que ver!

Quer dizer: o amigo queria dividir comigo a visão de uma beldade. E eu, do outro lado da linha, me alegro ao saber que meu amigo está passando por esse bom momento, peço para ele me descrever o que está vendo e digo a frase mais amorosa e mais verdadeira que poderia dizer:

- Queria estar contigo aí, amigo. Queria estar contigo.

DAVID COIMBRA

21 DE AGOSTO DE 2021
OPINIÃO DA RBS

O MAU EXEMPLO DO GOVERNO

O nome técnico pode confundir ou mesmo mascarar um fato irrefutável. Precatórios são dívidas do governo com empresas, com instituições e com cidadãos, reconhecidas pela Justiça e sem possibilidade de novos recursos. Logo, não deveria ser favor ou mesmo uma opção pagá-las, por mais penoso que seja para os cofres públicos. Além de cumprir uma obrigação, seria um exemplo positivo para a sociedade. Quando os governos são os primeiros a oficializar o calote, cria-se um cultura de impunidade em cascata.

Compreende-se que as dificuldades impostas pela pandemia pressionaram os fluxos financeiros da União, dos Estados e dos municípios. Uma observação mais detalhada da realidade, porém, revela que os governos são historicamente, com raras exceções, maus pagadores.

Se o problema é mesmo estrutural, o mais lógico seria enfrentá-lo na sua raiz, que é o gigantismo ineficiente do Estado e a ausência de uma cultura de gestão que proteja ativos públicos a médio e longo prazos. É no mínimo questionável depositar na covid-19 toda a culpa por essa tentativa de empurrar ainda mais as dívidas com a barriga, empreendida agora pelo governo federal. 

O auxílio emergencial, sempre que transitório e administrado com transparência, se transformou em uma ferramenta imprescindível para milhões de famílias brasileiras afetadas pelo desemprego e pela fome. Não se defende aqui acabar com esse mecanismo, e sim a necessária responsabilidade fiscal, que vai muito além de um preceito econômico, para significar a garantia de saúde nas relações entre o poder público e a sociedade em uma perspectiva de perenidade.

Há muito ainda para modernizar e para cortar no Estado brasileiro. Uma reforma tributária corajosa e completa é um desses caminhos óbvios, mas de bem mais difícil execução do que uma pedalada nos precatórios. Simplificar a tributação e fortalecer os municípios seriam dois pilares de uma transformação que contrariaria interesses poderosos em Brasília, mas que daria mais oxigênio ao resto do Brasil.

Igualmente importante ressaltar que muitas das despesas que agora pressionam o Ministério da Fazenda poderiam ter sido evitadas ou minimizadas se o governo tivesse acordado na hora certa para a gravidade da pandemia e de seus efeitos na vida dos seres humanos e das empresas. O cidadão pagará duas vezes pela incompetência dos seus representantes, eleitos para zelar pelos interesses do país, mas que parecem hoje mais preocupados com disputas de poder e com choques de ego.

 


21 DE AGOSTO DE 2021
FLÁVIO TAVARES

HÁ 60 ANOS

Neste final de agosto comemoram-se os 60 anos do Movimento da Legalidade, iniciado no Rio Grande do Sul pelo então governador Leonel Brizola e que se expandiu pelo país unindo povo e exército numa rebelião em defesa da Constituição. Parecerá estranho que uma rebelião garanta os direitos constitucionais, mas assim ocorreu em agosto de 1961, quando o presidente Jânio Quadros renunciou e os chefes militares decidiram que o vice-presidente João Goulart não poderia assumir o governo, por considerá-lo "simpático ao comunismo".

Eram tempos da Guerra Fria, com EUA e Rússia soviética disputando a hegemonia no mundo. Aqui, os três comandantes militares empossaram na chefia do governo o presidente da Câmara dos Deputados e anunciaram que o vice-presidente Jango Goulart seria preso se voltasse ao Brasil. Goulart estava na China comunista, em visita oficial, para lá enviado pelo renunciante Jânio Quadros.

Consumava-se o golpe de Estado, aceito pelos governadores, exceto Brizola, no RS. Em plena madrugada, Brizola afirma pelo rádio que "o Rio Grande resistirá" e apela a que as Forças Armadas se unam para "cumprir a Constituição". A linguagem é incisiva mas respeitosa, mas, mesmo assim, o Exército fecha as rádios Gaúcha e Farroupilha por transmitirem as palavras do governador.

O fechamento das duas rádios leva o governo a requisitar a Rádio Guaíba (a única no ar, por negar-se a transmitir a fala de Brizola) e vai instalá-la nos porões do palácio. Surge aí o dínamo propulsor da campanha pela posse de Jango. Recém haviam surgido os aparelhos a pilha e o rádio era, então, o grande veículo de comunicação.

Em horas ou dias, emissoras do Interior (e as duas fechadas pelo Exército na Capital) entram em rede e se forma a Cadeia da Legalidade, que foi decisiva para - além de tudo - mudar a posição do Exército nos três Estados do Sul, que no início havia apoiado o golpe. Em cada cidade gaúcha, formam-se os "comitês de resistência democrática" e é comum que homens e mulheres portem revólver à cintura.

Em Brasília, os chefes militares ordenam o bombardeio aéreo do Palácio Piratini. Na Base Aérea de Canoas, porém, os sargentos legalistas desarmam os jatos, furam os pneus e escondem as bombas de inflar, impedindo o bombardeio.

Antes, o comandante do Exército no Sul, general Machado Lopes, foi ao Piratini comunicar a Brizola que as tropas apoiavam a Legalidade e se integravam ao governo gaúcho.

A palavra de Brizola havia derrotado o golpe de Estado, num triunfo da audácia.

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES

21 DE AGOSTO DE 2021
CHAMOU ATENÇÃO

Sonho sem prazo de validade

Vicente Alminhana, 82 anos, sempre teve a casa cheia. Seus pais geraram 20 filhos. Quando criança, lidou no campo, em uma chácara no interior de Santo Antônio da Patrulha, no Litoral Norte, e ajudou na criação dos irmãos. Com as responsabilidades, precisou deixar para mais tarde atividades comuns à infância - segundo os familiares, pouco brincou.

- Teve uma vida bem difícil na roça - conta o advogado Maurício Alminhana, 39 anos, filho do seu Vicente.

No início da vida adulta, se mudou para Porto Alegre, estabeleceu morada e por mais de quatro décadas tocou uma fábrica de móveis sob medida. Retornou ao Litoral, dessa vez para Tramandaí, em 2016, já aposentado. Com a calmaria da praia, reiniciou a busca por algo que para a maioria das pessoas é trivial: andar de bicicleta.

O desejo que havia ficado para trás se concretizou no último Dia dos Pais, quando foi presenteado com um triciclo.

- Esse aqui não vira - garante, sobre a bike de três aros.

Um cestinho instalado sobre o quadro possibilita idas à feira, nos dias de sol - quando chove, ele pedala na garagem do edifício. O veículo é bastante comum no município, segundo o idoso. Ele próprio já havia comentado que tinha vontade de adquirir um.

- Ele falou que com esse conseguiria, aí resolvemos dar de presente. É uma alegria ver ele pra cima e pra baixo, não para, anda três, até cinco quilômetros - detalha a esposa, Noeli Soares, 67 anos.

Na sexta-feira, a reportagem de GZH acompanhou o novo ciclista. Bem-humorado, Vicente compara a etapa atual com a adolescência, quando tentou aprender a pedalar:

- Eu tentei, mas tinha que olhar pra um lado, pro outro, não me coordenava. Aí desisti, tive que trabalhar. Com essa aqui é fácil, e muito bom.

TIAGO BOFF

Na direção do Talibã

Enquanto militantes do Talibã adentravam o palácio presidencial em Cabul e se entreolhavam perplexos, sem saber o que fazer, um porta-voz dos jihadistas anunciava no Cairo o triunfo da insurreição. "Alcançamos o que pretendíamos: a liberdade do nosso país e a independência de nosso povo", proclamou Mohamed Naheem, intérprete de um movimento que já governou o Afeganistão como se fora a Era das Trevas.

Sempre que se ouvirem as palavras "liberdade" ou "povo" na boca de lideranças políticas, é melhor colocar um pé atrás. Quando elas vêm juntas na mesma frase, então, deve-se acender o alerta vermelho de perigo de populismo mesclado com radicalismo. É o que se vê, por exemplo, em notas oficiais e posts de governos e políticos autocratas mundo afora, Brasil inclusive, que defendem uma suposta liberdade de contaminar seus semelhantes ou de planejar o fim da democracia. Liberdade não existe para matar a liberdade - nem outros seres humanos.

Estandartes de golpismos, os propositadamente vagos conceitos de liberdade e povo são como charuto em boca de bêbado: vão de um lado para o outro conforme a vontade do democracida de turno. Liberdade é, de fato, um sentimento único. Para uma carmelita enclausurada, pode ser a abdicação das coisas mundanas e dos prazeres terrenos em nome da espiritualidade. Para um jovem, pode ser o primeiro salário e a independência financeira. Para um pai, o sono tranquilo de que a filha pode caminhar à noite sem risco de ser importunada. E por aí vai.

Muitas vezes, liberdade precisa de um complemento para se autoexplicar. Liberdade de imprensa todo mundo entende. É não haver ameaças ou censura contra jornalistas e veículos de comunicação, que, aliás, têm responsabilidade legal e ética pelo que difundem. Já liberdade de expressão exibe mais nuances. Um exemplo clássico: o sujeito que grita "fogo" em um teatro lotado e causa mortes por pisoteamento pode alegar que estava apenas exercendo sua liberdade de expressão? A civilização avançou bastante para aceitar limites à liberdade, circunscrita pelo respeito à liberdade, aos direitos e à vida dos outros.

Para regular as liberdades, existem as leis, apadrinhadas pela Constituição. No Estado de direito, prevalecem as leis, que, antes de tudo, precisam ser defendidas e praticadas por todos os poderes. É o Estado de direito que assegura as demais liberdades, inclusive para se proteger contra os que tentam esmagar as liberdades democráticas do povo. Povo, por sinal, não é aquela bolha que vai na manifestação de um candidato. É o conjunto de uma nação, com todas as suas saudáveis diferenças. E quem se atreve a ser porta-voz dele como se fora uma massa uniforme já deu seu passo rumo ao extremismo, na mesma direção em que foi o Talibã.

MARCELO RECH 

sábado, 14 de agosto de 2021


14 DE AGOSTO DE 2021
LYA LUFT

Trágico divertimento

Tenho tido a minha disposição todo o tempo do mundo... mas não sem restrições, a saúde deu uma falhada, estamos de molho num tratamento longo mas que traz otimismo.

Portanto, curtir o ócio que tanto almejei: olhar as nuvens como em criança no terraço da casa; inventar histórias de bruxas e princesas encantadas embalada na rede; colher jabuticabas lá em cima, o que era proibido porque quase invariavelmente o velho jardineiro tinha de vir com a escada me tirar dali.

Hoje minhas distrações são outras, mas de repente tenho a sensação de que todos os livros estão lidos, todos os frutos colhidos, todas as artes feitas.

Sobretudo, falta ânimo para fazer ou buscar algo interessante.

Passo longo tempo me deliciando com viagens, aquela vez em que, de repente, em Atenas, a Lua subiu de trás do monte cujo nome tem algo de lobo e não lembro...

Ou o restaurantezinho de Veneza dentro de um minúsculo jardim parecendo secreto...

Ou a viagem de carro num lugar ermo da Toscana e, finalmente, chegamos ao paraíso...

Muitas lembranças parecem sonho, de tão impossivelmente bonitas. Por um tempo, algumas cruezas da realidade se esfumam, e nos alegramos com tantas belezas que ela também contém: filhos, netos, amigos, parceiro, arte, natureza com trovão e chuvarada.

Mas aí quero me distrair mais um pouco: um monstrinho chamado CPI. Por que faço isso comigo mesma? Caretas, esgares, insultos, gritos, tumultos raivosos, eu atônita imaginando que esses são nossos líderes, parte deles, e pobres de nós não temos quem venha com uma escada salvadora nos botar no chão. Aquilo é o chão.

LYA LUFT

14 DE AGOSTO DE 2021
MARTHA MEDEIROS

Aprimorar-se

"Aprimorada pelo tempo." Gostei dessa definição que li no livro A Ciranda das Mulheres Sábias, da Clarissa Pinkola Estés. Envelhecer não é nenhum escândalo, mas aprimorar-se é um verbo mais simpático. No próximo fim de semana, completo 60 anos de aprimoração, celebremos.

Cheguei aqui produtiva e com saúde, num mundo que começa a deixar de estigmatizar os cabelos brancos (penso até em suspender o tonalizante que passo de 20 em 20 dias) e em que Sarah Jessica Parker volta a gravar Sex and the City com rugas cultivadas desde o último episódio da série, em 2004: cada mulher é livre para fazer o que quiser do seu rosto, inclusive mantê-lo como é. Nossa aparência muda, isso todos enxergam. A transformação interna é que é invisível e merece ser narrada e compartilhada, pois é o lado melhor dessa história: assumir nossa autonomia, sem mais idealizações ou autocobranças.

Eu sei, 100% livre, não há ninguém. De minha parte, nunca estive tão atrelada às necessidades de meus pais idosos e às de minhas filhas, mesmo adultas. Laços nos prendem e tudo certo, são os imprescindíveis vínculos afetivos. A liberdade que celebro está relacionada ao que desamarrei dentro de mim. Preconceitos, paranoias, desperdícios. É uma obrigação moral se livrar das obstruções que impedem o avanço da mente. Em termos físicos, a idade traz limitações que não controlamos, mas somos mais do que um corpo, e da nossa cabeça cuidamos nós - desatando os nós, pra começar.

Já não espero por grandes acontecimentos, o que tinha pra acontecer, já aconteceu. Agora é usar o que aprendi e o que sei a meu respeito para tratar a vida com a elegância que ela e eu merecemos. Envolvimento profundo com o que importa; de resto, sorrisos leves e silêncios prudentes, o sábio "deixar pra lá".

Confiar na minha força interior e não interromper a busca pelo bem-estar, que nunca está na mentira, na vulgaridade, na grosseria (infelizmente, para muitas pessoas é mais fácil ser cruel do que ser gentil). Dançar sempre, até a alma escapar pelos poros. Azeitar paixão e razão, fazer as duas conviverem sem tanto conflito. Mandar o ego calar a boca, que ele já apitou demais. Não encaixotar a vida, ela sempre pode alargar-se, expandir-se, transbordar.

Sabedoria e doçura, juntas, desenredam aquilo que aperta o peito e dificulta a respiração. Estou diante de um portal que costuma assustar, mas passarei por ele feito uma bailarina, leve e delicadamente. Não me irrito mais (só não perco o senso crítico, #forabolsonaro). Ainda sou útil para alguns e me divirto comigo mesma. Desembaraçar-se, uma tarefa que se aprimora com o tempo, é verdade. Então que o tempo passe.

MARTHA MEDEIROS

14 DE AGOSTO DE 2021
CLAUDIA TAJES

Confunde, mas não ofende

Fui chamada de negacionista. Nunca duvidei da pandemia, cumpro todos os protocolos, não saio sem máscara, estou viciada em álcool gel, não aglomero nem com os meus parentes, comemoro cada vacina, mas fui chamada de negacionista - xingamento que me ofendeu bem mais do que outros impropérios que colunistas, em geral, costumam receber. E que, com o passar do tempo, já não fazem nem cócegas. Couraça que chama.

Fui chamada de negacionista por ter me rendido às Olimpíadas. Acho até que foi a primeira vez que me interessei por elas dentro do meu histórico de não atleta. E até isso se relaciona com o respeito ao isolamento social, contrariando o cidadão que me vociferou o NEGACIONISTA na cara. Ainda é preciso ficar em casa - nós, os que temos casa.

Isso lembra que o projeto de lei que impedia os despejos e desocupações até o fim de 2021 em razão da pandemia foi totalmente vetado pelo presidente, mesmo tendo sido aprovado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal. Totalmente vetado. Não sobrou sequer uma condiçãozinha, pessoa doente e sem recursos, mães sozinhas, idosos, nada. Entende-se a necessidade dos proprietários de receber seu justo aluguel, mas é cruel ver tanta gente que teve casa e profissão ser jogado na rua com seus poucos pertences e muitos filhos. Número que agora vai aumentar, cortesia da presidência da República.

Voltando ao negacionismo. O ex-jogador de futebol Tadeu Ricci disse uma vez que "(...) o futebol aliena e, no que se coloca o futebol neste plano exagerado, outras situações básicas para a vida do ser humano ficam esquecidas". Talvez o sujeito que me julgou por sentir orgulho do desempenho dos atletas brasileiros nas Olimpíadas se enquadre nesse caso. Julgar, como se sabe, é a regra número um da internet.

E como não sentir orgulho? Só um coração de pedra ficaria indiferente à trajetória do Isaquias. Às dificuldades que a Rebeca passou para voltar de Tóquio com duas medalhas. E não só ela, como ficou claro nos depoimentos da grande maioria dos atletas depois de ganhar, ou perder, o pódio. Falta de contratos, de patrocínios, de lugar para treinar, de dinheiro para pagar as contas, até de comida.

Mais um breve aparte, agora sobre o tema comida. A deputada estadual Janaína Paschoal, de São Paulo, encontrou o grande responsável pela Cracolândia, região do centro da cidade. Segundo ela, ao atender e alimentar aquela população, o padre Júlio Lancellotti, que dedica a vida ao acolhimento dos invisíveis, incentiva as pessoas a ficarem nas ruas. É como botar a culpa da fome no mundo na criança que não limpa o prato. A reação ao comentário infeliz da deputada foi a explosão de doações ao trabalho do padre Júlio. Ouro para quem pratica a solidariedade.

Voltinha final nas Olimpíadas. Eu sei que foram mais de 400 casos de covid entre as delegações e o pessoal de apoio, mais de quatro mil casos em Tóquio apenas no último dia das competições. Ainda assim, prefiro mil vezes ligar a TV e ver a Ana Marcela, o Abner e o Alison festejando suas medalhas, que um desfile de blindados. Ou uma motociata - desde já uma das piores novas palavras da língua portuguesa, tanto na forma pelo que representa.

Sendo bem corporativista, cada vez me emociono mais com os discursos que citam as mães. Porque, vamos combinar, essa é uma instituição que desde sempre apoia o esporte, a arte, o desenvolvimento. O Daniel, bronze no judô, dedicou a vitória à mãe dele: "Acho que a gente sonhou junto isso, e vou ser bem sincero que queria era pegar, ligar para ela e falar que valeu a pena. Quando uma vez estava em um treino, pequeno, voltei chorando porque tinha apanhado muito. Ela falou: ?Não, Dani, vamos comer alguma coisa e amanhã é um novo dia.?"

Amanhã é um novo dia. Que seja.

CLAUDIA TAJES

14 DE AGOSTO DE 2021
LEANDRO KARNAL

IMORTAIS

A piada é conhecida. Ao ser questionado sobre o que significava ser imortal, Olavo Bilac afirmava que era não ter onde cair morto. O humor é certeiro: a pretensão é desmantelada pela ironia. Desejamos o cume das montanhas com nossos qualificativos e pronomes de tratamento; somos recobertos pelo pó da insignificância nos caminhos da vida. É a lição permanente de Ícaro: cuidado com a luz do sol. Quando as penas da vaidade, unidas pela frágil cera da glória fátua, encontram a realidade do calor do real, sabemos que o céu não é nosso lugar. Aqui, seria o lugar ideal para inserir um brocado do Lácio: sic transit...

O parágrafo inicial pode funcionar, na retórica clássica, como a petição de clemência, na qual o orador invoca seus defeitos para cativar a benevolência da plateia. "Sou o último que deveria estar aqui proferindo este discurso", diz, humílimo, do púlpito, o ego inflado do orador. "Todos me excedem, aqui, em conhecimento e elegância", arremata com a frase que, se fosse levada ao pé da letra, causaria a imediata deposição do falso modesto do púlpito. Temos egos enormes, todavia, mesmo eles não são imortais. "Lembra-te que és pó" é a sábia disposição do início da Quaresma. Como todas as pessoas, seremos todos, a meu/nosso tempo, pulverizados.

Tenho consciência do fato. A humildade, forçada pelo real e por sóis superiores sobre mim, produz um efeito bizarro. Sendo mortal e não o mais brilhante das criaturas de Prometeu, tenho de arrumar o banquete da vida com a louça disponível. O que tenho como vontade é ter amigos, bons e inteligentes, próximos a mim. Foi com tal desejo que aceitei a eleição para a Academia Paulista de Letras. Anseio por gente de verdade e com um epíteto extra: "gente de letras".

Leitores podem ser (ou deveriam ser) interessantes. Mesmo um canalha como Ricardo III, na imaginação de Shakespeare, faz discursos memoráveis. Os ambíguos, como Hamlet, ora assassino e ora consciente, liam bastante. Os heróis, como Henrique V, proferem frases agudas.

A Academia Paulista de Letras é uma instituição mais do que centenária, com 40 membros que se reúnem às quintas, agora de forma virtual. Quanto eu tive o privilégio de entrar para o time de escritores do Estadão, pensei na honra de ser colega de Ignácio de Loyola Brandão. Um dia, tomei um susto: ele me enviou e-mail dizendo ser leitor dos meus textos. Na APL, encontro-o quase toda semana. O presidente, José Renato Nalini, conduz com habilidade a tarefa complexa de lidar com tantos perfis. A riqueza da casa é sua variedade e cromatismo.

As academias consagram talentos literários indubitáveis. A Paulista divide sócios com a Brasileira: Lygia Fagundes Telles, Celso Lafer e o já citado Ignácio de Loyola Brandão. Também partilhamos Fábio Lucas com a Academia Mineira.

Acho a diversidade da Paulista muito notável: músicos (como João Carlos Martins e Júlio Medaglia); um fotógrafo (Marcio Scavone); um arquiteto (Ruy Ohtake); um bispo católico (dom Fernando Antonio Figueiredo); médicos (Raul Marino Jr., Raul Cutait); um jornalista (Luiz Carlos Lisboa); diplomatas (Rubens Barbosa, Synesio Sampaio Goes Filho); educadores (Paulo Nathanael Pereira de Souza, Gabriel Chalita); cientistas políticos e sociais (Jorge Caldeira, Bolívar Lamounier, José de Souza Martins, José Pastore); um publicitário (Roberto Duailibi); um físico (José Goldemberg); um artista dos quadrinhos (Mauricio de Sousa) e atores (Juca de Oliveira e Jô Soares). Há vários filhos de Santo Ivo (juristas/advogados/juízes), como Miguel Reale Jr., Célio Debes, Eros Grau, José Gregori, José Fernando Mafra Carbonieri, Ives Gandra da Silva Martins, Antonio Penteado Mendonça, Tércio Sampaio Ferraz Jr.

Gente intensa e de biografia notável oferece dificuldades de classificação. João Lara Mesquita é músico, fotógrafo, autor e jornalista. Ruth Rocha é formada em Ciências Sociais, mas a conhecemos como consagrada autora de literatura infantojuvenil. Maria Adelaide Amaral é brilhante dramaturga e, igualmente, tradutora. A saudosa Renata Pallottini (falecida em julho) escrevia e traduzia com talento. Walcyr Carrasco é autor consagrado e conhecido do grande público por grandes novelas. Célio Debes é da tribo jurídica e, igualmente, historiador de três alentados volumes históricos sobre o presidente Washington Luiz. Jô Soares, muito conhecido do grande público, seria tradutor, ator, humorista, diretor de teatro, entrevistador ou literato? Diversa no todo, a APL também o é em cada um dos membros.

Há desafios. Há muitos homens e poucas mulheres. A diversidade de carreiras é impressionante, todavia, faltam grandes intelectuais negros e indígenas. Há muito a ser feito, sempre, sinal da sua vitalidade.

O membro da Academia Brasileira de Letras R. Magalhães Júnior (falecido em 1981) falou, em uma entrevista, sobre um conselho aos novos que reproduzo. "Jovem literato: seja rebelde com as academias, casas de medalhões e de glorificação fácil." Porém, dizia o cearense, "depois de gritar bastante, entre para a academia e tente melhorá-la". Enquanto houver críticos e jovens, a academia sobreviverá. O que é imortal, de verdade, é a vontade de recriar o mundo pelas letras e ideias. Todo nome de rua, um dia, já atacou o busto da praça ou a referência da avenida.

LEANDRO KARNAL

14 DE AGOSTO DE 2021
FRANCISCO MARSHALL

O PIOR INIMIGO

Os atenienses da era de Péricles sabiam que o pior inimigo da democracia é a tirania, que o império persa era ameaçador, e que o pior inimigo entre os gregos era o exército de Esparta, que terminou por arrasar Atenas em 404 a.C., após guerra que durou 27 anos. Eis o Brasil de hoje, com o fantasma da tirania espreitando a liberdade e a invasão de exército, nem persa, nem espartano, mas nacional, financiado com nossos recursos, que ora produz mais danos do que hostes estrangeiras, e que quando não nos mata com sua incompetência mata de vergonha com suas trapalhadas, e suga sem pejo a seiva da nação, mesmo enferma.

Nosso pior inimigo, todavia, é outro, e tem cativos também aos invasores fardados, assim como a parte importante da política nacional e sua dócil voz, a imprensa acrítica: a ideologia liberal em sua atual fase, hiperliberal despudorada. É essa ideologia que está por trás de erros homéricos na gestão pública, do massacre da democracia e do conluio de forças que mantêm no poder o atual presidente, malgrado sua letalidade e sua evidenciada inaptidão para qualquer cargo e para a vida social; por que não cai? Porque serve muito bem a uma ideologia que tem autores e beneficiários, e não somos nós, o povo brasileiro.

A ideologia liberal nasceu como filosofia ética, nas ideias de Adam Smith (1723-1790), e lutava contra o Antigo Regime, em que a nobreza dominava o Estado e tolhia a mobilidade da burguesia. Pouco após a Revolução Francesa, no início do século XIX, o liberalismo acomodou-se com a nobreza, sobretudo na Inglaterra, e propagou-se. À época, a ideia de liberdade ainda era importante, e com ela liberais ingleses combateram o escravismo, inclusive contra nações associadas e subordinadas, Portugal e Brasil. Desde cedo, todavia, a noção de liberdade liberal associou-se aos interesses de mercadores e industriais, e essa ideologia tornou-se o que é hoje, um sistema de valores e programas políticos articulado internacionalmente, e cuja finalidade é assegurar o domínio e incremento daquilo que poucos possuem, o capital.

Esse inimigo ataca camuflado: usurpa a palavra liberdade para entregar servidão, promete progresso mas traz dependência e fala de riqueza quando amplia a miséria. Outra camuflagem do liberalismo é fazer-se de moderno e profilático, quando é, de fato, jurássico e nocivo; na vida política, concedeu a governantes cativos o programa ideal para esconder sua incompetência na administração pública, resumido em uma única palavra, ecoada como mantra: privatiza. Pelo feitiço dessa ideologia simplória e oportunista, viola-se o patrimônio público, abandonam-se os verdadeiros problemas e desafios e arma-se o quadro sórdido com que hoje se degrada a cidade e se avilta o Estado: o domínio do mercado sobre a sociedade. Vem no pacote o desmonte dos direitos fundamentais, da proteção ao trabalho e ao meio ambiente e mil facilidades para deixar o capital livre, leve e solto; ele cresce concentrado, e a sociedade definha, fustigada.

Diante de tais inimigos, haja amizade, e aja a força da verdadeira liberdade, a nos guiar.

FRANCISCO MARSHALL