sábado, 23 de outubro de 2021


23 DE OUTUBRO DE 2021
MONJA COEN

NÃO EXISTE TERRA FIRME

Era Almirante da amada Armada. Navegava por mares nunca dantes navegados. Já vivera tantas eras que não se lembrava mais quando nascera, nem onde. Era Almirante e de branco reluzente ficava às noites brilhando tanto quando a lua cheia.

Lua tem fases e faces. Redonda, vazia, pela metade e aos pouquinhos. Lua de três dias, lua de fazer pedido. Quarto crescente, quarto minguante. Lua nova - vazia de si mesma. Como o vazio do zen.

Sempre em transformação, dependendo da situação. A narrativa da lua varia. No Japão, nela habita um coelho grandão que amassa o arroz cozido, deixando-o uma pasta. Elegia ao trabalho. Aqui no Brasil, está São Jorge matando o dragão.

No Japão, o dragão é legal, não é mal. Dragão é símbolo das águas, embora solte labaredas pela boca e voe pelo céu da nossa imaginação. Por que São Jorge, protetor de um time de futebol de São Paulo, haveria de matar, ferir, acabar com o imaginário dragão? Feras estranhas povoam as mentes humanas.

O Almirante, na proa do barco, via a lua refletida nas águas. Luz infinita, como o nome do Buda Amitaba. Havia aprendido nomes de Budas nas suas viagens ao Oriente. Se não fosse pela bússola, talvez nem se lembrasse se ele mesmo era ocidental ou oriental. Nunca se olhava no espelho. Há muito perdera sua face.

O céu estrelado. O anel em volta da lua declarava um compromisso formal. Seria casamento, aliança inquebrantável? Ou o anúncio natural de que chuva estava a caminho?

Afinal, o Almirante, embora fizesse poesia, era um homem sério. Solteiro, pois se casara na verdade com a Armada. Barcos, navios, submarinos, jangadas. Amava o mar e o movimento que o deixava sempre com os joelhos semiflexionados. Mesmo em terra firme.

Há terra firme, gente? O que significa o vulcão lá nas Canárias despejando fogo e lava? Estamos na camadinha fininha de uma bola em brasa. Tudo se movimentando, tudo vivo, sem a menor estabilidade, como os navios pequenos, os barquinhos e mesmo os maiores navios à mercê das ondas, dos icebergs, das rochas, das chegadas, das partidas, dos desastres, dos desaparecimentos e da doçura de morrer no mar.

Nunca saber o que irá acontecer. Cada instante um novo instante. Parece até história de monge zen. O Almirante amava a Armada sem esperar que ela correspondesse. Era amor de criança, dos barquinhos de papel que seu avô dobrava com o jornal já lido. Sonhava, viajava. Foram tantas idas e vindas, tantas viagens no tempo e no espaço que o Almirante às vezes duvidava se vivia na Terra ou na Lua.

Branco como a espuma que o acariciava na praia. Inerte, foi levado pela maré. O Almirante ficou gorducho, com a barriga inchada de tanta água salgada. Um pajé o viu naufragado. Fez reza, fogueira e assado. Espremeu sua barriga, tirou a farda branca e molhada. Nu, sem barco, sem lua, sem nada, o Almirante acordou e percebeu que sua amada havia armado uma cilada. Sorriu e ninguém nunca mais o viu.

No céu, a lua brilhava - cada dia de um jeito, cada hora com um formato, sem jamais se repetir. O mar virou lagoa, coberta de estrelas prateadas.

Uma história sem moral, apenas para contar que em nossa face se revelam as fases da vida. E somos todo o passado da humanidade e todo o futuro também. Entretanto, só percebemos este instante, este momento e nele toda a alegria e todo o tormento.

Só há uma solução: desarmar a amada e tomá-la em seus braços para que nunca mais arme uma cilada. Tornar-se uno com o Todo. Que a paz prevaleça na Terra. Mãe amada... Desalmada? Mãos em prece

MONJA COEN

23 DE OUTUBRO DE 2021
J.J. CAMARGO

VIVER NUNCA É O BASTANTE

Ainda que viver mais não tenha, que se saiba, compromisso com viver melhor, esta é meta mais pleiteada. Se será bom ou não a gente verá depois. Alguns muito velhos admitem que não foi uma ideia boa ultrapassar a média, e na minha experiência esta queixa está, geralmente, relacionada à irrealização dos projetos da prole.

Deixando de lado esse grupo de desencantados, a maioria festeja a perspectiva de envelhecer, muitas vezes sem nenhuma noção das perdas que virão associadas à decrepitude.

A ideia desta crônica é esquecer esses eventuais rabugentos da terceira idade em diante e fixar-nos naqueles que não viveram tanto para enfastiar e se sentem ameaçados de morte por alguma doença extemporânea.

Para esses, cada fatia de vida ampliada, não importa a que custo, é festejada com euforia - e entre os bem amados o tempo extra reconquistado nunca será suficiente.

Quem trabalha com transplante convive com essa população selecionada pela reciprocidade do afeto, que encanta e justifica a vida, porque eles têm amor para dar e amor para receber.

No arquivo da Secção de Cirurgia da Academia Nacional de Medicina, está guardada a história de uma mulher de 30 anos, de Manaus, operada pelo Fabio Jatene, que representa esse modelo perfeito da vontade de viver, sempre pela mais nobre das razões: o amor dos seus.

Portadora de um tumor extremamente agressivo e situado ente estruturas vitais do tórax, ela expressou, ao ser informada da indicação cirúrgica, uma confiança absoluta, este sentimento que coloca o cirurgião no seio da família, com tudo o que ele tenha de recursos técnicos, acrescido do peso da responsabilidade, pois todos dependem dele. Quem já viveu esta situação sabe de que peso estou falando.

Antes da primeira cirurgia, ancorada no amor dos pais, o apelo foi que ela precisava muito viver para criar seus filhos pequenos. Nos 18 anos que se seguiram, vitimada pela tendência desse tumor de recidivar em diferentes órgãos, ela foi operada seis vezes, sempre voltando à vida útil entre os seus amados.

Quando internou para a sexta operação, quase duas décadas tinham se passado, os filhos haviam crescido, estavam formados, e um neto agora alegrava a família. Às vésperas da operação, o Fábio foi visitá-la. O trio inseparável lá estava. Mais velhos, mais desgastados pelas idas e vindas do destino e pela doença. Mas a confiança seguia intacta, apesar dos tempos difíceis.

"Mais uma vez, meu querido doutor", disse ela. "Estou cansada! Foram tantas operações e elas estão se tornando cada vez mais difíceis. Estou com medo de numa hora dessas não resistir."

E aí ela disse algo que relembrou o início de tudo, 18 anos atrás, e que mostrou que não há limites para a fé e para a esperança de alguém. E o Fabio Jatene, um gigante de coração mole, encheu o olho para anunciar o último pedido: "Queria apenas um pouco mais de tempo por aqui. Queria muito poder ver meus netos crescerem!".

J.J. CAMARGO

23 DE OUTUBRO DE 2021
DAVID COIMBRA

Os mais ferozes entre os leões

Você já ouviu falar nos terríveis Leões Mapogos? Os Leões Mapogos eram uma coalizão de seis leões machos que viviam na reserva de Sabi Sands, na África do Sul. Eram cinco irmãos e um estranho que veio não se sabe de onde, não se sabe por quê. Atingiram um nível de brutalidade e de crueldade jamais visto no mundo animal. Para conquistar território, matavam leões machos e seus filhotes, e tomavam o bando de fêmeas. Se as fêmeas não se submetessem, matavam-nas também.

O objetivo dos Mapogos era formar uma grande descendência, por isso matavam os filhotes alheios - quando o filhote morre, a leoa mãe entra no cio novamente. Assim, os Mapogos asseguravam que todos os filhotes do território fossem seus e não de outros leões mais fracos. Os cientistas da reserva calculam que eles mataram mais de cem leões, leoas e filhotes.

Se fossem pessoas, os Mapogos seriam Gengis Khan, que teve centenas de filhos, tem mais de um milhão de descendentes e vivia repetindo:

- A felicidade do homem é vencer o inimigo, pô-lo de joelhos a sua frente, cavalgar seus cavalos e violar suas mulheres e filhas.

Só que com todos os homens e bichos acontece o mesmo: se eles ficam vivos por muito tempo, acabam envelhecendo. Gengis Khan, ao chegar aos 65 anos, não suportou os efeitos de uma bebedeira e morreu em sua tenda mongol. Já a média de vida de um leão na selva é menor: cerca de 12 anos. Os Mapogos alcançaram essa idade e, assim, se tornaram um bando de velhinhos. Leões, sim, mas velhinhos. Isso encorajou um bando de leões jovens e arrojados a atacá-los e lhes tomar territórios e leoas. Alguns Mapogos morreram em combate, outros foram embora com o rabo entre as pernas e sumiram sem jamais voltar a dar notícia.

O que significa toda essa história animal? Que não há paz na natureza nem para o majestoso leão, aquele que os humanos nomearam O Rei da Selva. Até os invencíveis Mapogos um dia foram vencidos. Ou seja: os momentos de paz e tranquilidade têm de ser sorvidos até o último segundo.

Um pátio ensolarado com uma rede pendurada entre duas árvores. Uma noite de frio que você passa em frente à lareira acesa ou de chuva que você passa entre os cobertores da sua cama confortável. As gargalhadas dos amigos na mesa do bar. O sorriso da mulher amada. O beijo do filho.

Esses pequenos momentos em que não há glória nem tragédia, em que o dia escorre devagar e suavemente, em que há concordância entre os seres humanos, esses pequenos momentos devem ser bebidos como se fossem o néctar da vida. E são. Na verdade, são.

DAVID COIMBRA

23 DE OUTUBRO DE 2021
FLÁVIO TAVARES

A GARGALHADA

A CPI do Senado sobre a pandemia transformou-se em magistral aula de Direito Criminal. Todos os crimes possíveis (até os inimagináveis) ali aparecem, perpetrados por diferentes órgãos e escalões do governo central ou por indivíduos ligados a ele. Foi como, se em medicina, todas as enfermidades (do simples resfriado ao câncer) se reunissem num mesmo enfermo, facilitando assim descobrir as inter-relações de causa e efeito.

Pela primeira vez na história do Brasil, um presidente da República acabou acusado por "crimes contra a humanidade" ou responsável direto por omissões e atos que levaram à morte milhares de cidadãos ou deixaram terríveis sequelas nos sobreviventes. Nos meus anos em Brasília, presenciei a marcha de diferentes comissões parlamentares de inquérito que, no entanto, se desenvolviam burocraticamente, mesmo investigando com seriedade, mas sem que revelassem a desfaçatez dos implicados.

Agora foi diferente. Bastava assistir aos depoimentos pela TV ou acompanhá-los pela imprensa para conhecer a dimensão dos crimes e seus autores diretos ou indiretos. Por exemplo, os depoimentos do insuspeito deputado bolsonarista Luís Miranda e do seu irmão, funcionário do Ministério da Saúde, mostraram que o presidente conhecia a bilionária corrupção armada para comprar a vacina indiana.

O relatório final da CPI sobre a covid-19 indicia 66 pessoas pela disseminação da pandemia, entre elas o presidente Bolsonaro e seus três filhos parlamentares. Este número amplo mostra como a ideia de negar o perigo se infiltrou no governo, a partir da prole presidencial. O alto número de indiciados tem, também, o lado mau de diluir entre muitas dezenas as culpas ou responsabilidades concentradas no alto escalão do governo.

Bolsonaro diz que as conclusões do relatório "propagam o ódio", mas não questionou qualquer fato apontado. Nada, porém, supera o cinismo da gargalhada do senador Flávio Bolsonaro na TV, ao imitar o que faria o pai, Jair, quando lesse o relatório da CPI. Ou a gargalhada não ecoou como deboche aos mortos e sequelados?

A gargalhada reproduzida na TV era o oposto do sorriso terno que conforta e acalma. Tinha tom forçado de falsa ironia, num momento em que a morte, a doença e o horror exigem ser enfrentados com seriedade.

Resta agora esperar que as conclusões da CPI se transformem em algo concreto e objetivo, punindo a quem deva ser punido. Só assim, gargalhar no Palácio do Planalto não será trágico.

FLÁVIO TAVARES

23 DE OUTUBRO DE 2021
OPINIÃO DA RBS

POPULISMO E INTERESSES ELEITOREIROS

Se ainda havia alguma dúvida, não há mais. As forças que comandam o país em Brasília têm apenas uma motivação. Lamentavelmente, não é a construção de um projeto de nação próspera e moderna. O grande impulso do governo federal e de seus aliados do centrão, na Câmara e na Esplanada dos Ministérios, é a própria sobrevivência eleitoral e a busca obstinada por evitar os riscos de não terem mais, a partir de 2023, a proteção dos cargos que ocupam. Em nome de interesses particulares de um pequeno grupo, no entanto, arrisca-se jogar o Brasil em uma espiral nefasta de deterioração fiscal e desconfiança crescente que levará à manutenção de inflação elevada, juros altos e economia claudicante. O que é feito alegadamente para proteger as camadas mais baixas terá, como efeito colateral, danos que afetam principalmente esse mesmo estrato da sociedade, mas são pagos por todos os brasileiros.

O Palácio do Planalto e apoiadores no parlamento justificam as artimanhas para driblar o teto de gastos e os preceitos da responsabilidade fiscal com a premência de criar um programa de transferência de renda robusto para socorrer dezenas de milhões de pessoas afetadas pelo desemprego persistente, pela escalada dos preços e o aumento da miséria. Sem dúvida, existe essa necessidade, ainda mais devido ao fim próximo do auxílio emergencial, neste mês. Ocorre que há mais de um ano o governo fala sobre a criação do chamado Auxílio Brasil, mas por inépcia e desarticulação política não consegue encontrar uma fonte de custeio para a iniciativa. Agora, agarra-se à urgência do calendário para detonar o mecanismo que era a garantia de que não haveria descontrole fiscal.

Melhor fariam o governo e seus aliados se cortassem ou diminuíssem gastos não prioritários neste momento de escassez de recursos, como as fartas emendas parlamentares ou o fundo eleitoral. Ou então se tivessem entregue as privatizações eternamente prometidas, assegurando receitas extras. Ou, ainda, se mostrassem empenho em levar adiante versões consistentes das reformas administrativa e tributária, racionalizando despesas e garantindo maior competitividade à economia brasileira. A característica do governo, no entanto, é de fugir de decisões difíceis, ainda mais se significar indispor-se com a base de sustentação e existir risco de perda ainda maior de popularidade.

A mudança na fórmula para calcular o teto de gastos, incorporada na PEC dos precatórios, para limitar o pagamento de dívidas judiciais, é apenas uma gambiarra para justificar a implosão da principal âncora fiscal do país. Ao fim, calcula-se que os dois artifícios abrirão R$ 83 bilhões de espaço no orçamento. Parte pode ser capturada para uma turbinada adicional nas emendas parlamentares, o que fragiliza ainda mais a explicação de que a "licença", como disse candidamente o ministro Paulo Guedes, seria para amparar os mais pobres. Há ainda a promessa de Bolsonaro de socorrer caminhoneiros com uma bolsa de R$ 400, sem especificar de onde sairiam os recursos.

Somados, são episódios que escancaram o fim da ilusão de um governo liberal. Recorreu-se ao velho populismo movido por interesses eleitoreiros. Os reflexos imediatos apareceram no estresse do mercado financeiro, além da debandada de quatro secretários do Ministério da Economia, contrariados com o abandono da austeridade. Ficou claro que, na queda de braço interna, venceram o centrão e a ala política. Fórmulas que sempre deram errado tendem a seguir produzindo desastres. E a conta, como mostra a História, será apresentada à população.

 


23 DE OUTUBRO DE 2021
UM NORTE PARA O ESTADO

Saída é "repensar a educação"

Especialistas afirmam que a saída é "repensar a educação" para diminuir o abismo entre a oferta de mão de obra sem qualificação e a demanda no mercado de trabalho. A fórmula? Unir esforços entre o poder público e o setor produtivo.

Conforme o diretor de Educação da Federasul, Fernando de Paula, cada vez mais as empresas terão de levar iniciativas de preparação para além dos próprios muros. Na outra ponta, o governador Eduardo Leite diz que o papel do Estado é oferecer, no ensino regular ou em cursos, formações mais condizentes com as demandas da economia.

- Por isso, temos cada vez mais o reforço de professores de matemática para aumentar a capacidade de raciocínio lógico. O poder público deve estar alinhado para que a formação venha na direção do que o mercado de trabalho vai exigir - afirma o governador.

Em 2022, lembra Leite, entra em vigor o novo Ensino Médio. A ideia é corrigir, em parte, o problema com a ampliação das atuais 800 horas-aula/ano para mil. Com a carga horária acrescida, estudantes optarão por cursos técnicos e de qualificação.

Disparidade

Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, só 10,5% dos estudantes de Ensino Médio brasileiros fazem algum tipo de curso técnico. A média dos 38 países desenvolvidos signatários da entidade fica em 42,2%. No Brasil, diz Carlos Trein, diretor do Senai-RS, há prevalência pelos cursos superiores.

- Não jogo contra a graduação, mas fica evidente que existe desequilíbrio entre o que se vê em países desenvolvidos e o que praticamos aqui. Enquanto nesses paí­ses existem mais pessoas inseridas no mercado de trabalho, aqui, para cada um aluno que faz curso profissional existem seis que preferem a graduação. Isso atrasa a formação técnica, retarda o ingresso no mercado de trabalho e provoca essa grande falta de profissionais - argumenta Trein.

O dilema do setor industrial

O mundo passa por transição para a chamada indústria 4.0. Com a meta de aumentar a eficiência e reduzir custos, as novas tecnologias digitais devem flexibilizar as linhas de produção.

Por isso, é comum ouvir falar em onda de desemprego no segmento. No entanto, executivos e industriais afirmam o oposto, ainda que a adaptação traga para o chão de fábrica o mesmo dilema enfrentado na tecnologia da informação: investir em tecnologias, sem profissionais para operá-las.

Conforme a Confederação Nacional da Indústria (CNI), sete em cada 10 indústrias já investem em tecnologia 4.0 no país. Todas relatam - ao contrário do senso comum - que a implantação dos modelos demandou contratações.

No Rio Grande de Sul, por exemplo, a indústria geral empregava mais de 1 milhão em 2012. Hoje, são apenas 768 mil ocupações. Entre as empresas, 96% reportaram dificuldade para contratar operadores e 90% tiveram problemas para encontrar técnicos de nível médio. A mesma base aponta que 97% afirmam que isso afeta a produtividade e a qualidade do produto.

Na CMPC, gigante do setor de celulose, por exemplo, tecnologia e automação industrial trazem desafios. No que se refere à indústria 4.0, para se ter uma ideia, a empresa mapeou 1,3 mil cursos de softwares necessários para fazer a transição dos profissionais para a nova realidade da fábrica.

Diversidade

Na Gerdau, a diretora global de pessoas e responsabilidade social, Caroline Carpenedo, explica que a resolução do problema está além das empresas, mas diz que elas têm papel fundamental na preparação de colaboradores.

A saída, avalia, é antecipar estratégias e soluções. Por isso, há uma série de programas como o G-Start (estágios), G-Future (trainees), G-Lide (posições de liderança), G-Makers (inovação) e G-Data (cientistas de dados).

A partir de 2017, a companhia abriu o leque para trazer mais diversidade e criou programas para equilibrar raça e gênero. Um deles elevou a posição de mulheres em cargos de liderança. Batizada de projeto Helda, a ação ampliou de 17% para 23% a participação feminina nos postos de chefia. A meta é chegar a 30% em 2025. O parâmetro é um dos itens que formam o plano de remuneração variável dos colaboradores.

Mãe do Miguel, de dois anos, Paloma Pasqualina Colombo é a nova gerente jurídica trabalhista da empresa. Ela é uma das 27 integrantes da primeira turma do Helda e já passou por duas ascensões profissionais. Há quatro anos, durante seleção, relatou na entrevista que gostaria de ser mãe. A resposta recebida foi: "Aqui, nós adoramos crianças".

- Naquele momento, soube que estava no lugar certo - diz.

Recentemente, também foram criados e ampliados programas para contratação de pessoas com deficiência e para o público LGBT+. Além disso, em outubro, a Gerdau lançou o projeto de longevidade para trabalhadores acima dos 50 anos.


23 DE OUTUBRO DE 2021
MARCELO RECH

O candidato populista

"Meu povo querido, sou candidato a presidente e já me dei conta de que o negócio é distribuir dinheiro. Não interessa que há uns anos, pra baixar os juros e segurar a inflação, o Congresso tenha aprovado um certo teto de gastos. Dizem que era pra impedir tentações populistas, mas não sei o que é isso. Aliás, nem entendo bem esse teto. Mas entendo de eleição.

Olhem aquele que já foi presidente duas vezes. Na primeira, parece até que cuidou das tais contas públicas. Colocou um craque no Banco Central e aguentou as pontas da gastança no seu partido. O Brasil até parou de falar em dívida externa e passou a ter reservas em dólar. Pra que, não sei. Se fosse comigo, torrava tudo. Lixe-se quem vem pela frente. Mas voltando praquele presidente. Querem fazer crer que, com as contas em dia, foi possível dar confiança a empresários e investidores e tirar 30 milhões da miséria - e não só num ano eleitoral.

Pode ser, mas dá muito trabalho convencer todo mundo de que o respeito ao orçamento é a base da prosperidade. Melhor prometer aquilo que todo mundo entende: dinheiro na mão, aqui e agora, e seja o que Deus quiser ali na frente. Aquele presidente se meteu depois a andar de jatinho de braços dados com uma turma da pesada. Abriu o cofrão pra eles e, com um monte de obras, elegeu a sucessora. Azar dela que criou uma tal de contabilidade criativa (Que ideia boa, hein? Pena que eu não tive) pra maquiar as contas penduradas.

Agora vejam esse atual presidente. Esse clima de barata voa é bem do seu jeitão. Ele se elegeu sete vezes deputado, sempre com a conversa de aumentos sem fim pro funcionalismo e contra as privatizações. Tão irresponsável e corporativista como a esquerda. E aí, do nada, chegou a presidente, fazendo de conta que ia adotar uma agenda liberal e ficar longe do centrão. Mas ele é populista dos bons, de fazer inveja ao tal estelionato eleitoral daquela presidenta. Teve até uns liberais que embarcaram na lorota e no governo (a maioria já saltou fora, um tanto corada pela ingenuidade).

Bom, mas agora aquele que já foi presidente concorre de novo e diz que vai dar R$ 600 por mês. O atual diz que dá R$ 400 de qualquer jeito, mesmo torrando o que não tem. Nem pensar em cortar gastos e emendas pra pagar esse auxílio. Ok, a taxa de juros disparou, o câmbio foi lá em cima e a inflação e o desemprego estão liquidando com o presente e o futuro dos mais pobres. Mas meu negócio é prometer dar mais dinheiro ainda. Que se dane a história de ensinar a pescar. Não sou dono da peixaria, sou? Vou é dar todos os peixes que posso e não posso e passar a dívida adiante. É só subir imposto a torto e a direito e imprimir mais dinheiro. O país vira Argentina ou Venezuela, mas e daí? Quem prometeu fazer o Brasil dar certo?"

MARCELO RECH

23 DE OUTUBRO DE 2021
J.R. GUZZO

"Conclusões" da CPI

Eis aí: a "CPI da Covid" afinal soltou, após muita briguinha e brigona entre os seus sócios-controladores, a famosa lista de crimes que, no seu entendimento, o presidente Jair Bolsonaro cometeu no combate à epidemia. Fica evidente, logo de cara, que algo deu profundamente errado: não aparece, entre os nove diferentes delitos imputados ao presidente, nenhuma denúncia de corrupção. Nada? Nada.

Tinha de aparecer, é claro: há seis meses o grupo que manda na CPI, a esquerda em geral e a mídia em particular prometem, sem descanso, que a qualquer momento iriam estourar casos de ladroagem capazes de mandar o governo todo para fora do sistema solar. Mas não apareceu nada.

Fake news? Segundo a definição das "agências de checagem de notícias", do ministro Alexandre Moraes e do seu inquérito para salvar a democracia no Brasil, dizer durante 180 dias que a CPI vai descobrir corrupção, e no fim da linha não denunciar corrupção nenhuma, é notícia falsa, sim senhor.

Mas e daí? "Fake news", por aqui, só funciona da mão direita da rua; sempre foi assim e continuará sendo, e ninguém precisa perder cinco minutos de sono por causa disso. O que chama a atenção é outra coisa: se nem a CPI, que é a mais desesperada ação contra o presidente da República desde a sua entrada no Palácio do Planalto, não encontra roubalheira, qual a seriedade que se pode ter com o resto das acusações?

Muito pouca, com tendência a nenhuma. Não foi só a corrupção que ficou faltando na festa. Vê-se, no fim das contas, que sumiu outra acusação monumental, tratada durante seis meses inteiros como a joia da coroa da CPI: o genocídio. Sumiu isso também, o genocídio? Sumiu.

Na hora de soltar a lista de crimes com a qual pretendem enfiar Bolsonaro na cadeia pelos próximos 80 anos, viram que não conseguiriam manter de pé durante cinco minutos a ideia de que ele fez o que a lei brasileira define como genocídio. Não é fácil, como se pode ler ali, o sujeito ser genocida neste país. Ele tem de destruir um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Precisa matar o grupo, ou impedir que haja nascimentos ali, ou fazer transferência forçada e maciça de suas crianças de um lugar para outro, além de outros horrores. Como seria possível acusar alguém de um negócio desses?

Se os crimes que não estão na lista são esses aí, os que estão seguem pela mesma trilha. Crime de epidemia? Isso, segundo diz o Código Penal, não é andar "sem máscara", nem produzir "aglomeração" - é disseminar germes patogênicos na população. Crime de charlatanismo? O que Bolsonaro fez não foi isso, pela lei: ele elogiou o uso da cloroquina, uma terapia declarada perfeitamente legal pelo Conselho Federal de Medicina. Crime contra a humanidade? Também não dá.

A qualidade das "conclusões" da CPI é essa. Vale a pena pensar um pouco antes de tirar as suas.

J.R. GUZZO

sábado, 16 de outubro de 2021


16 DE OUTUBRO DE 2021
LYA LUFT

A pálida esperança

Não quero brincar de morrer, como em criança fazia, me deitava na cama, no assoalho, tentando ficar assim por um pouco de tempo que fosse: não conseguia muita coisa. Achava morrer muito ameaçador, e se nunca mais eu conseguir acordar desse sono maluco? Melhor pegar um dos meus amados livros, e entrar naquelas histórias.

Se eu morrer, Pandora vai desaparecer? Ou vai continuar como meu reflexo, com todas aquelas suas sombras no espelho? Não sei se sobreviveríamos separadas. Eu existo nisto que penso ser realidade, ela bruxuleia quando as luzes se apagam: e assim resistimos, as duas.

Não quero ser uma criatura dessas que se movem quando tudo dorme. Não quero ser essa imaginação que ameaça se tornar realidade. Quero meu sangue nas veias, os dentes na boca, o riso, o grito, o olhar, o abraço, as pessoas que importam mais do que os seus reflexos. Quero a juventude que me rodeia, as crianças que me fazem rir, a amizade que me faz florescer sempre de novo, e o amor.

Pois na Caixa de Pandora sobrou o que chamaram "a pálida esperança".

- O que você vê quando olha para mim - perguntei a alguém. Depois de pensar um pouco, ele respondeu: - Vejo calor e vida.

Então eu quero ainda ser isso. Não quero ser uma Penélope cujos dias se resumem a tecer a própria mortalha.

Não quero terminar neste jardim de adeuses, nem subir escadinha fatal nem ter o fio cortado. Não sou Pandora, nem o rosto dela que bruxuleia no espelho é de verdade o meu. Eu a inventei para não me sentir sozinha? Para não ser imortal? Espelhos não serão tão mais importantes, mas a vida em si, a carne, a pele, a voz firme, o mar, o amanhecer vermelho, até mesmo um pedaço da solidão e lágrimas, isso eu quero ser, e por que não?

(E assim que traí Pandora.)

Livro encerrado, mesmo que eu não compreenda nada do que se desenrolou nestas páginas. Jornada de um dia? Trabalho de uma vida? Uma longa ilusão? Não há de fazer muita diferença. Porque a vida e a morte, e o claro e o escuro, e a realidade e a imaginação se entrelaçam, se fundem, se ocultam e se desvendam.

Porque o grão de loucura ilumina a noite e fertiliza a terra. Porque somos melhores do que nos fazem crer que somos. Porque para nós, amadores, indagar é melhor do que entender.

Porque o consolo está em que nada faz muito sentido. Porque, se uma parte de viver são escolhas, a outra parte é milagre dos deuses.

Este texto é um trecho do livro A Casa Inventada

LYA LUFT

16 DE OUTUBRO DE 2021
MARTHA MEDEIROS

Festa de um

No período de 18 meses, as portas do mundo fecharam, ninguém entrou, ninguém saiu. De fronteiras a residências, isolamento foi a palavra adotada. Quem ainda circulava pelas ruas, não fazia por diversão: atendia doentes, comprava mantimentos, ia à farmácia e voltava direto pra casa, sem a habitual passadinha no bar ou na academia no final da tarde. Diante das estatísticas trágicas, e por respeito a tantas perdas, pouco se falou na solidão como efeito colateral da pandemia.

E efeito sério, solidão deprime. Não a todos - há quem lide muito bem com a própria companhia -, mas o ser humano é gregário, sente falta de se juntar, misturar, confraternizar, coisas que só agora, vacinados e aos poucos, tomando os cuidados necessários, começamos a nos atrever. Mas demorou. Antes dessa lenta alforria, foi um tal de dialogar com o espelho do banheiro, passar um tempão no sofá maratonando séries, bater papo com os amigos por WhatsApp, pedir comida por delivery e engordar. Pois é, não bastasse a deprê, solidão engorda. Muita gente ganhou uns quilinhos extras durante o recuo forçado.

Mas a gente se entrega? Se entrega nada. Crises estão aí para serem revertidas, compensadas. Se você não reparou, eu reparei: durante o confinamento, o pessoal começou a dançar entre quatro paredes. Quem estava namorando ou estava casado quando o coronavírus chegou para estragar a festa (e manteve-se heroicamente casado, apesar do excesso de grude), passou a fazer bailinho na sala, pagode na cozinha, ensaiou um tango no corredor. Uma pequena caixa de som, uma boa playlist no Spotify e quem diria? Bebida por conta da casa.

Já quem foi surpreendido pela pandemia em plena entressafra amorosa, sem um par perfeito ou imperfeito, se virou como? Do mesmo jeito. Fez festa de um. Suou a camiseta como se estivesse na pista, cantou alto sem medo de acordar a vizinhança, levantou os braços como se não houvesse amanhã - e ninguém sabia se haveria mesmo. Quem não soltou suas feras, nem caiu na gandaia, ficou mais triste e pesado.

Nunca precisei de uma ameaça global para dançar em casa, mas agora peguei gosto pra valer e enquanto não fraturar uma vértebra, continuarei com minha rave individual ou a dois (ambas as modalidades disponíveis por aqui), embalada por Fade Out Lines (The Avener), Ring My Bell (Anita Ward), Don´t Think I Could Forgive You (Tell me Lies), The Only Thing (Claptone), Save Your Tears (The Weeknd), Sunshine (Cat Dealers, LOthief, Santti), Again & Again (Oliver Tree) e outras músicas da minha playlist específica para noites incontidas. As sugestões são brinde da colunista. De nada.

Se não é meio ridículo dançar sozinho? Pode acreditar, é maravilhosamente ridículo.

MARTHA MEDEIROS

16 DE OUTUBRO DE 2021
CLAUDIA TAJES

Ser pobre faz mal à saúde 

Há pouco mais de um mês, entrevistei o padre Julio Lancellotti, que atende a população mais vulnerável e mais abandonada da cidade de São Paulo. Chamou a atenção que, além da refeição - a única do dia para a maioria daquelas pessoas -, o padre também distribuía máscaras, sabonetes, absorventes e escovas de dente para os moradores de rua. Um deles, inclusive, pediu duas escovas, a segunda para o cachorro que o acompanhava.

A gente, que pode ter mais ou menos, mas que ainda assim tem, esquece que um simples sabonete pode ser artigo de luxo para muitas famílias. O mesmo valendo para o papel higiênico. Para o creme dental. Nem vamos falar em xampu e condicionador, embora baste ter cabelo para saber que são produtos importantes. No mundo em que falta comida, eles são completamente dispensáveis.

A pobreza de higiene é apenas uma entre tantas, a pobreza alimentar, a pobreza de moradia, a pobreza para estudar, a pobreza de perspectivas. Onde tomar banho, se não há casa? Onde escovar os dentes?

No começo da pandemia, o Padre Julio mandou instalar uma pia na entrada da igreja de São Miguel Arcanjo, bem no limite entre os bairros da Mooca e do Belenzinho, para que os moradores de rua pudessem lavar as mãos - a medida mais elementar de combate ao vírus. Se não fosse aqui, ele perguntou, onde eles se lavariam? De que adianta martelar lave as mãos, lave as mãos, lave as mãos, se nem água limpa para isso existe? A ideia do padre Julio bem que podia inspirar outras igrejas.

A essa altura você já deve saber onde este texto vai parar: no veto do presidente à distribuição de absorventes para meninas e mulheres em situação de pobreza. Um projeto que custaria aos cofres públicos R$ 84 milhões. Muito menos que, por exemplo, os R$ 3 bilhões em emendas distribuídas a parlamentares previamente escolhidos e usadas, entre outras coisas, para a compra de tratores com preços superfaturados. Não, não é fake news.

Adolescentes em idade escolar chegam a faltar 45 vezes por ano à escola pela pobreza menstrual, a impossibilidade de comprarem absorventes em seus períodos. Para quem diz "minha avó usava paninho e nunca reclamou", vale lembrar que muitas meninas sequer têm água em casa para lavar os arcaicos paninhos. Acabam usando folhas de jornal.

Por que o presidente vetou o projeto? Segundo ele, por não ter verba de custeio. Damares, a ministra (com caixa baixa mesmo) da Mulher, Família e Direitos Humanos, justificou: querem vacina ou absorvente? Querem arroz ou absorvente? Como se uma coisa tivesse a ver com a outra.

Não que seja um fato isolado. Em julho, o presidente vetou o projeto que reduzia as exigências para que os planos de saúde custeassem remédios orais contra o câncer. Pouco antes, havia vetado integralmente o projeto que assegurava internet grátis para professores e alunos da educação na rede básica. É o Caco Antibes fazendo escola: eu tenho horror a pobre.

Mas faz sentido. No país onde mais de 19 milhões de pessoas passam fome, osso e pelanca viraram iguarias. Remédio, educação, absorvente, tudo isso é perfumaria. Mas o que se tornou supérflua mesmo foi a dignidade.

Que fase.

CLAUDIA TAJES

16 DE OUTUBRO DE 2021
LEANDRO KARNAL

PROCURA-SE COM URGÊNCIA 

Necessito, para admissão imediata, de um profissional muito capacitado. Claro, deve ser bem formado em uma faculdade. O candidato deve dominar a teoria da sua área. Será questionado todos os dias sobre seus conhecimentos. Necessário que seja atentíssimo à demanda de atualização. Nossos clientes são exigentes em grau elevado. Reconheço até que são, eventualmente, chatos.

A tipologia do nosso cliente implica enorme resiliência diante de desgastes pessoais. Indispensável a solidez no campo psicológico. A pessoa que assumir o cargo oferecido deve enfrentar longos dias de estresse que podem crescer em momentos específicos. Deve ter estabilidade pessoal, equilíbrio e nenhum traço de perturbação grave. Nossa experiência ensina que, no cargo oferecido, quem entra equilibrado pode perder parte de sua estabilidade e quem já começa com instabilidades não completa um mês na função.

Pernas fortes são indispensáveis. A pessoa passará muitas horas de pé, quase o tempo todo. A voz deve ser muito especial, pois será usada ao extremo, nos limites da possibilidade humana. As costas merecem cuidados: costumam doer com frequência Importante notar que, além das 8 ou 12 horas diárias, nosso trabalho invade finais de semana. Serão marcadas reuniões aos sábados, por exemplo. Haverá coisas a preparar nos feriados. Nossa empresa gosta de promover festas juninas e precisa de todos os funcionários atuando nas barracas de forma voluntária e com um sorriso. Alguns clientes procurarão seu trabalho e conselho antes de o horário começar e depois de encerrar. Há relatórios a serem revistos até a véspera do Natal. Adoramos reuniões de planejamento ou de avaliação em datas as mais absurdas possíveis.

Há um detalhe que escapa a muitos candidatos. Você será contratado por mim. Eu serei seu chefe. Porém, nossos clientes são considerados seus patrões também. Alguns consumidores do nosso produto, por serem menores, virão com os pais. Eles também costumam se considerar seus chefes. Darão opiniões sobre seu trabalho e nós ouviremos todos, quase nunca você.

Como plano de incentivo, oferecemos café, usualmente sempre passado há muito tempo. Temos unidades onde você terá de colaborar com a compra do pó de café. Há outras, mais generosas, onde o café é de graça. Em regiões nobres, providenciamos até um biscoitinho, mas não todos os dias. Não se acostume. Zelamos pela sua boa forma. Água à vontade, todavia não enquanto trabalha; apenas nas pausas. Se quiser água durante o expediente, traga a sua.

Você precisa ter domínio tecnológico para adaptação a épocas de pandemia. Iluminação, dinamismo de exposição, criatividade gráfica e habilidade de falar com um ponto luminoso na tela por horas de forma a deixar todos satisfeitos e felizes.

Claro: precisamos de você sempre tomado de entusiasmo, disponível diuturnamente, alegre, bem resolvido, sorridente e dócil conosco, com os clientes e seus pais. Uma vez por ano, em data próxima a este anúncio, fazemos uma festa com o dia dos nossos funcionários. Será um dia de cartões e de exaltação a sua tarefa extraordinária. Você será chamado de semeador do futuro, arauto da esperança, apóstolo do saber e servo do conhecimento. Aproveite. É um dia especial. No resto do ano, faremos o contrário de tudo que for dito no seu dia. Então, regozije-se com a data próxima.

Sendo uma profissão vocacionada e dedicada ao cultivo do conhecimento, sabemos que você não escolheu a carreira pela retribuição financeira. Você sabe que nem sempre as pessoas ricas são as mais realizadas. Há casos de milionários depressivos! Querendo evitar os males da tristeza e do apego aos bens materiais, faremos uma proposta salarial modesta. Ela varia de unidade para unidade. Há algumas que até garantem férias um pouco melhores. A maioria investe no seu sacerdócio permanente, beirando o voto de mendicância.

Assim, releia o anúncio. A jornada é muito longa e, para ter melhores rendimentos, você pode acumular várias unidades na sua grade de dedicação. Temos alguns funcionários exemplares que trabalham manhã, tarde e noite. Há danos muito comuns ao corpo: varizes, calos nas pregas vocais, estresse, ansiedade, algum pânico, muita dor na coluna e, frequentemente, depressão. A demanda é alta e está diminuindo a oferta de bons profissionais, mas temos certeza de que você estará seduzido pelas nossas condições.

Sentiu-se atraído? Envie seu currículo para nossa escola. Estamos carentes de professores excepcionais, acima da média, com talento teatral, domínio de conteúdo, habilidades de resistência física e imenso potencial criativo. Queremos professores e professoras que entendam que todos na família descansarão no domingo enquanto você corrigirá provas. E, no final do ano letivo, após terem sido bombardeados de todo lado, sorriam e façam uma avaliação na reunião destacando o amor que sentem pela profissão que abraçaram. 

Queremos nosso corpo docente satisfeito e atualizado. Em resumo, buscamos o perfil de alguém com mente de Prêmio Nobel, transbordando criatividade de artista genial, um corpo de fuzileiro naval, a paciência da Santa Irmã Dulce e o equilíbrio de um lama septuagenário do Tibete. A propósito: feliz dia dos professores e das professoras! É preciso ter esperança mesmo na ironia que, eu espero, alguém tenha ensinado a você na escola.


16 DE OUTUBRO DE 2021
COM A PALAVRA

JOVENS TIVERAM RETROCESSOS NA PANDEMIA. MUITOS RETROCEDERAM ANOS 

MARIA REBECA OTERO GOMES

Coordenadora de educação da unesco no brasil, 57 anos Foi uma das palestrantes do Experience Senac, evento online realizado na semana que passou

Se já não era fácil antes, os desafios da educação no Brasil só aumentaram com a pandemia. E buscar soluções é uma das cruzadas de Maria Rebeca Otero Gomes, coordenadora do Setor de Educação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) no Brasil. Maria Rebeca integra o escritório de Brasília desde novembro de 2001 e, em 2012, assumiu a coordenação dos projetos de cooperação em educação que a Unesco implementa no país. Mestre em Ciências da Saúde, com especialização em Saúde Pública, ela foi uma das palestrantes convidadas do Experience Senac, evento que ocorreu entre quarta e sexta-feira da semana que passou, com transmissão pela internet. ZH conversou com ela sobre educação plural, as dificuldades no Brasil e medidas mais urgentes.

A RESPEITO DOS DESAFIOS IDENTIFICADOS PELA UNESCO, COMO VOCÊ VÊ O ACESSO À EDUCAÇÃO HOJE NO BRASIL?

Nós temos desafios na questão do acesso à Educação Infantil, ao Ensino Médio, ao Ensino Superior e ao técnico ou profissionalizante. No Ensino Fundamental, a gente conseguia ter bons números de crianças na escola, mas, com a pandemia, estamos perdendo muitos alunos. Muitos não conseguiram fazer aulas remotas. Ou porque não tinham tecnologia, ou ela era insuficiente, como um celular para cinco irmãos. Outros não tinham alimentação adequada ou tinham que trabalhar, ajudar os pais. E muitos estudantes se desestimularam, acham que não aprenderam o suficiente e não estavam conseguindo acompanhar.

ALÉM DO ABANDONO DA ESCOLA, QUE OUTRO IMPACTO DA PANDEMIA DE COVID-19 NA EDUCAÇÃO VOCÊ DESTACARIA?

Estão saindo algumas avaliações mostrando que, infelizmente, muitos jovens tiveram retrocessos nesse período. Eu falava no início da pandemia que o importante era manter o jovem engajado, para ele pelo menos não perder o que aprendeu. Mas muitos retrocederam até alguns anos no aprendizado. Apesar de todos os problemas que já tínhamos, como de aprendizagem, agora nós temos um contingente maior de jovens fora da escola e, muitos alunos que retornaram, andaram para trás. Isso agora vai ter que ser recuperado.

E QUAIS SÃO OS PRIMEIROS PASSOS PARA ESSA RECUPERAÇÃO?

O primeiro é trazer o jovem de volta para a escola. A gente precisa fazer uma busca ativa, preparar as escolas, o currículo, o professor, até para aspectos relacionados à saúde mental e à autoestima desse estudante. A gente precisa fazer com que o aluno seja estimulado a aprender. Já tínhamos mais de 1,5 milhão de estudantes fora da escola, a maior parte dos alunos abandonam a escola no segundo ciclo do Ensino Fundamental. Muito provavelmente essas pessoas não terão uma profissão adequada, que possa trazer uma qualificação da sua vida, um aumento do salário. O segundo passo é fazer uma avaliação de como esses jovens retornaram e quais são suas reais necessidades. Será preciso arranjar novamente o currículo, de forma que atenda às necessidades dos alunos, e proporcionar a estrutura adequada para que tenha segurança e saúde dentro da escola, para a gente não ter que parar novamente.

O QUÃO IMPORTANTE É O DESAFIO DA INCLUSÃO NAS ESCOLAS BRASILEIRAS?

É importante porque a gente precisa dar uma educação de qualidade para todo mundo, não só para uma parte dos jovens. Isso não se faz dando vaga, colocando para dentro da escola. Isso se faz dando a real oportunidade de aprendizagem. É matricular com as devidas oportunidades. Por exemplo, o estudante que é LGBT+ tem que se sentir integrado e incluído. Muitas vezes, o estudante trans abandona a escola por bullying ou por não ter banheiro adequado. Se é um estudante cego, surdo, paraplégico, eu tenho que dar condições para ele, para que possa, de fato, aprender. Se é um estudante pobre, que andou vários quilômetros para chegar na escola, com fome, eu preciso suprir essas necessidades. A escola tem que estar atenta e promovendo inclusão. No Brasil, quando se fala de educação inclusiva, se pensa só em aluno com deficiência, mas, para a Unesco, é geral.

EQUIDADE DE GÊNERO AINDA É UMA QUESTÃO NA EDUCAÇÃO BRASILEIRA?

O Brasil alcançou a paridade de gênero, a gente dá o mesmo número de vagas para meninos e meninas. Mas a gente não tem uma equidade de gênero, realmente. Se uma menina engravida, por exemplo, ela não é acolhida pela escola. Às vezes por causa da amamentação, ela acaba abandonando, porque a escola acha que não é problema seu.

E QUAL VOCÊ CONSIDERA O PRINCIPAL DESAFIO DA EDUCAÇÃO NO BRASIL HOJE?

O desafio da qualidade é o mais importante, e não é alcançado se não tivermos trabalhados esses outros desafios que citei. Há uma série de componentes nele, como o componente curricular. Hoje a gente tem a Base Nacional Comum Curricular, o que é muito bom. Mas cada município tem que desenvolver seu currículo de acordo com sua realidade, fazer um currículo abrangente, que incorpore os aspectos daquela comunidade. 

A parte de estrutura também é importante na qualidade, eu tenho que ter uma sala de aula segura, tenho que ter banheiro, quadra de esportes, computadores, internet rápida, tenho que ter biblioteca. Preciso oferecer uma estrutura que proporcione ao estudante expandir seu aprendizado. Além disso, a gente tem o planejamento educacional, desde o planejamento na secretaria, até dentro da escola, e o relacionamento com os pais também é importante para a qualidade do ensino. Outra questão que influencia demais é a formação dos professores: eles têm que estar preparados para o estudante.

E COMO OS PROFESSORES PRECISAM SER PREPARADOS?

O professor faz o curso de Licenciatura, cai numa sala de aula de educação básica e não sabe como lidar com a realidade que tem ali. É muito diferente do que é ensinado na formação inicial. A gente precisa melhorar o currículo da formação inicial, para que tenha mais prática, para que ele conheça melhor onde ele vai trabalhar depois. Além disso, é necessário haver uma formação continuada, que vai discutindo com o professor, atualizando ele e debatendo os temas mais atuais e importantes de acordo com a sua necessidade de formação. A ideia é ir avaliando e vendo as deficiências do professor para poder saná-las. Mas uma avaliação construtiva, que pretende melhorar e não punir.

E A QUEM CABE RESOLVER TODOS ESSES DESAFIOS?

Do ponto de vista da Unesco, principalmente a educação básica tem que ser pública e gratuita. A implementação cabe ao Estado, e as famílias devem estar dando todo o respaldo para que isso aconteça. No entanto, a responsabilização por uma educação de qualidade é de todos. Ela é da comunidade, dos professores, dos estudantes também, de todas as pessoas.

FALA-SE MUITO SOBRE EDUCAÇÃO PLURAL. O QUE É ISSO?

Educação plural é uma educação para todos, uma educação que compreende as dificuldades existentes e faz com que todas as pessoas, de qualquer etnia, de qualquer raça, qualquer gênero, orientação social, pobre ou rica, tenham oportunidade de aprendizagem igual. A educação plural reconhece a diversidade existente, e a diversidade é muito rica, são muitas experiências, muitas formas de conhecimento. Não há uma juventude no Brasil, há juventudes. Cada estudante tem a sua forma de aprender, e nenhuma é melhor que a outra. Todas são boas, desde que valorizem o aluno e possamos dar a oportunidade de ele aprender. Por exemplo, os indígenas. 

Eles aprendem de uma forma diferente da nossa, têm uma forma de pensar que não é errada, é diferente. E eu tenho que ofertar ensino na língua deles, sei que a criança aprende muito mais quando aprende na língua materna. É minha obrigação fornecer uma educação em português e também na língua dele. Essa pluralidade é muito importante de ser reconhecida por todos, incluindo os pais. Há pais que não querem seus filhos em salas com deficientes, ou então são racistas. Isso infelizmente existe. É preciso ir ensinando a essas pessoas sobre essa pluralidade. Que somos todos diferentes e que, se somos todos diferentes, somos todos iguais.

COMO A EDUCAÇÃO PLURAL IMPACTA A SOCIEDADE COMO UM TODO?

Uma educação que reconhece as diversidades é qualificada e consegue ter melhores resultados. Não no sentido de "tirar 10" na prova, mas no sentido de ter uma construção, uma transformação daquele jovem em uma pessoa melhor. E ele vai poder usar esse conhecimento na sua cidade, no seu Estado, no seu país e globalmente. E progredir. É assim que a gente progride. É importante aprender a viver juntos e desenvolver uma compreensão dos outros, até mesmo um apreço pela interdependência. Por isso é importante respeitar os valores do pluralismo e aprender a gerir conflitos.

DE QUE FORMA SE ENSINA A GERIR CONFLITOS EM SALA DE AULA?

É trabalhar as habilidades socioemocionais, como a empatia, a autoestima, o respeito, o pensamento crítico. Isso você trabalha desde a Educação Infantil, claro que adaptado à idade. Se eu tiver autocontrole, eu não vou entrar em uma briga. Se eu respeito a diversidade, não vou fazer bullying com os colegas. O professor tem que construir uma educação que seja contra a violência e a favor da paz, trazendo todos os elementos da diversidade cultural e da pluralidade.

COMO VOCÊ VÊ O AUMENTO DA LACUNA ENTRE O ENSINO PRIVADO E PÚBLICO DURANTE A PANDEMIA?

O ensino público se prejudicou porque o público com o qual trata é mais pobre, precisa de mais cuidado e de estrutura. Mas eu considero que o setor privado também teve um grande desafio, precisou trabalhar a metodologia, um sistema híbrido. Esse setor conseguiu segurar melhor a peteca, mas também teve dificuldades. A lacuna aumentou mais pela perda do setor público do que pelo privado ter ido melhor.

O ENSINO HÍBRIDO VEM PARA FICAR?

O que a gente fez na pandemia foi o ensino remoto, muitas vezes intermediado por uma apostila ou outros materiais. Uma educação híbrida não necessariamente é assistir à aula transmitida por computador, na casa do aluno. A educação híbrida é aquela que utiliza tecnologia para complementar a aprendizagem. E a tecnologia veio para ficar, então é importante formar os professores na tecnologia, formá-los nas metodologias que devem ser usados com a tecnologia. Devemos pensar em formatos híbridos de educação para cada disciplina e implementar, de fato, uma educação híbrida.

ESPECIFICAMENTE NO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, QUAIS SÃO OS PRINCIPAIS DESAFIOS IDENTIFICADOS PELA UNESCO?

O Rio Grande do Sul tem mais ou menos os mesmos desafios do que o Brasil na sua totalidade, com uma condição um pouco melhor em alguns aspectos, como na aprendizagem. Mas tem um problema também bastante grande, por exemplo, na questão da diversidade. Ainda há muito racismo no Estado e, falando em equidade, há também a questão de gênero, ainda há muito machismo. É claro que tem muitos lugares avançados, tem muita gente boa. Mas trabalhar a diversidade é superimportante.

QUAL É A REALIDADE DA EDUCAÇÃO NO BRASIL EM COMPARAÇÃO COM OUTROS PAÍSES DA AMÉRICA LATINA E DO MUNDO?

A América Latina é a região mais desigual que existe. Em todos os países, a gente tem problema de inclusão, de qualidade, todos os problemas que existem no Brasil se repetem nas outras nações. E o Brasil é um país continental, tem 48 milhões de estudantes, 2 milhões de professores, uma realidade extremamente difícil de trabalhar. Quem está um pouco melhor são o Chile e o Uruguai, mas há países piores em termos de proficiência mínima, conhecimento de leitura, matemática - casos de Honduras, Guatemala e Paraguai. Com relação aos países desenvolvidos, é complicado fazer esse tipo de comparação, porque os currículos e a realidade socioeconômica são muito diferentes. A Coreia do Sul, por exemplo, no século 12 já tinha universidade. Acho melhor fazer comparações dentro da América Latina, tem uma realidade mais parecida com a nossa.

ENTRE AS METAS DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU) PARA O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL, QUAIS SÃO AS PRIORITÁRIAS PARA A REALIDADE DA EDUCAÇÃO DO BRASIL?

Os objetivos para desenvolvimento sustentável da ONU são 17, e o número 4 é o que fala da educação, que é "garantir o acesso à educação inclusiva, de qualidade e equitativa, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos". Dentro dele, tem metas para a Educação Infantil, de dar aprendizagem profissional aos jovens, de formar professores. Depois, cada país desenvolve suas prioridades. O Brasil tem um Plano Nacional de Educação muito bom, mas muito desse plano, que se estende até 2024, não vai ser cumprido. 

Já estamos vendo que não vai ser cumprido, não está sendo e não vai ser. Na realidade do Brasil, dentro das metas da ONU, eu destacaria a meta 4.7, que diz o seguinte: "Até 2030, garantir que todos os alunos adquiram conhecimentos e habilidades necessárias para promover o desenvolvimento sustentável, inclusive, entre outros, por meio da educação para o desenvolvimento sustentável e estilos de vida sustentáveis, direitos humanos, igualdade de gênero, promoção de uma cultura de paz e não violência, cidadania global e valorização da diversidade cultural e da contribuição da cultura para o desenvolvimento sustentável". Uma educação de qualidade depende disso, depende de que seja transformadora.

NO SEU ENTENDIMENTO, QUAL É O REAL OBJETIVO DA EDUCAÇÃO?

É promover o cidadão para que ele realmente transforme sua vida. Para que ele saiba aprender a aprender, porque ele tem que continuar aprender ao longo da vida; aprender a fazer, ou seja, ter uma profissão; aprender a ser, e aí entra a questão de virtudes, de ética; e aprender a conviver, que é onde vai aprender a viver em sociedade de uma forma harmoniosa. A educação não é apenas aquela que passa conhecimento cognitivo, ela visa a transformar.

 JÉSSICA REBECA WEBER


16 DE OUTUBRO DE 2021
DRAUZIO VARELLA

PREVENT SENIOR DEFENDE AUTONOMIA DO MÉDICO PARA SE SAFAR DE SUAS PRÁTICAS 

A autonomia do médico nunca foi tão defendida. Entre outros, são ferrenhos defensores dela a diretoria da Prevent Senior, os senadores governistas da CPI, o Conselho Federal de Medicina e, pela primeira vez na história da medicina mundial, um presidente da República que a considerou um tema de tanta relevância que fez a apologia dele num discurso de abertura que ficará para sempre nos anais da Organização das Nações Unidas.

É claro que a autonomia é requisito imprescindível para o médico tomar decisões em emergências com risco de morte, situações em que o doente muitas vezes está inconsciente ou incapaz de compreender o perigo que corre. É fundamental, também, para preservar o profissional de pressões para adotar condutas que ele considera erradas ou antiéticas, venham de instituições hospitalares, planos de saúde, autoridades governamentais ou do próprio paciente e seus familiares.

Não é difícil identificar, no entanto, a origem do interesse súbito por esse item do nosso código de ética - vem do famigerado tratamento precoce para a covid-19, defendido com unhas e dentes por muitos políticos e pessoas tão ignorantes em ciências médicas quanto o atual ocupante da cadeira presidencial.

O tratamento precoce caiu com uma luva no discurso dos assim chamados negacionistas, seguidores da orientação daquele que usou o poder de mandatário supremo da nação para conclamar os brasileiros a andar sem máscara e a formar aglomerações, "com coragem e de peito aberto". Se, ao seguir tais conselhos, os incautos porventura se infectassem, não haveria por que ter medo - contariam com remédios maravilhosos.

Com o aval do Ministério da Saúde, cloroquina, ivermectina, azitromicina, zinco e diversas vitaminas foram empacotados num "kit" apregoado como a cura da doença. Embora inúmeros estudos realizados durante a pandemia tenham demonstrado que nenhuma dessas drogas apresentava atividade contra coronavírus, não faltaram médicos para prescrevê-las.

Alguns o fizeram por ignorância, por não terem o hábito de estudar; outros, por imitar colegas que, como eles, não aprenderam a ler e avaliar trabalhos científicos. Outros, ainda, por acreditar nas notícias falsas da internet e por solidariedade ao presidente. Entre esses, estavam os dirigentes do Conselho Federal de Medicina, um grupo que já comungava dos ideais bolsonaristas antes mesmo de Bolsonaro disputar a eleição.

Temerosos de que recomendar o emprego do tal "kit" provocasse forte oposição da academia e dos especialistas mais respeitados do país, os membros do CFM entenderam que a melhor forma de provar lealdade canina ao governo atual seria garantir aos profissionais o direito de prescrevê-lo sob o manto obscuro da autonomia.

Teria sido mais honesto se os nossos conselheiros federais se dirigissem aos médicos que pagam as anuidades em dia para dizer a eles que, por apoiar a linha política do presidente da República, o conselho garantiria a eles o direito de prescrever medicamentos inúteis, sem que precisassem se preocupar com desvios éticos passíveis de punição por parte do Conselho Federal ou dos conselhos regionais.

Depois, bastaria esperar que os médicos fossem obedientes às ordens do general que comandava o Ministério da Saúde e aos "protocolos" adotados pelas operadoras de planos de saúde, como a Prevent Senior, por exemplo.

Atribuir à autonomia a liberdade para receitar remédios inúteis é tão grave quanto admitir que cirurgiões operem doentes sem indicação cirúrgica ou que médicos insuflem ozônio no reto de pacientes intubados e mantidos em ventilação mecânica nas UTIs. Nos Estados Unidos, o ex-presidente também insistiu que a cloroquina era uma grande arma no combate ao vírus. Em meados do ano passado, assim que surgiram os primeiros trabalhos científicos demonstrando a ausência de atividade da droga, os médicos americanos pararam de prescrevê-la. Sabe por que razão, prezado leitor?

Para evitar punições dos conselhos deles e processos na Justiça por "malpractice" com indenizações milionárias de pacientes que se sentissem prejudicados pelos efeitos colaterais de um medicamento sem atividade. O que fez o ex-presidente americano? Para evitar as consequências legais do investimento desperdiçado, desovou no Brasil toda a cloroquina encalhada por lá.

DRAUZIO VARELLA