sábado, 25 de dezembro de 2021


25 DE DEZEMBRO DE 2021
J.J. CAMARGO

UM PRESENTE DE NATAL

Depois de dois anos infindáveis de ameaças reiteradas, incertezas plantadas pelo surgimento de novas cepas e esperanças combalidas pela ausência de prazos, chegamos aqui, animados pela redução das mortes provocadas por uma enfermidade que não tem tratamento específico, mas que, felizmente, ao bater de frente com as vacinas, arrefeceu. A descoberta, aqui e ali, de novas variantes segue a cartilha da biologia do vírus, sempre tentando, através de mutações, adaptar-se a condições desfavoráveis de sobrevivência.

No rescaldo dessa pandemia, restaram subprodutos indesejáveis: as sequelas da doença que, ao contrário das outras viroses, não se limitou a afetar os pulmões, revelando-se desde logo uma doença sistêmica. O achado de múltiplos pequenos focos de hemorragia no cérebro dos mortos autoriza supor que os portadores de formas menos graves, e que por isso sobreviveram, tenham também lesões cerebrais hemorrágicas, ainda que em menor grau.

As alterações de comportamento, com tendência à depressão, e desdobramentos para psicoses e suicídio têm mantidos os psiquiatras, que nunca trabalharam tanto quanto na pandemia, atentos e perplexos. Na mesma trilha, chamou a atenção o achado de microtrombos em vasos da retina em pacientes com covid-19 que foram submetidos a exame de fundo de olho, e que estavam circunstancialmente assintomáticos (mas com nenhuma certeza que continuarão assim), na fase de cicatrização dessas minúsculas lesões. O sistema muscular, um dos mais atingidos, rendendo sintomas dolorosos intensos na fase aguda da doença, também afetou o rendimento motor, como se pôde observar em atletas que, por serem jovens e saudáveis, superaram a fase aguda, mas ainda que aparentemente recuperados, demoravam semanas para se aproximarem do desempenho exigido de quem trabalha em alta performance. Se transferirmos essa preocupação para o coração, um órgão cheio de charme, mas na essência um músculo com o imprescindível cacoete de se contrair, como será a sua força de contração, depois que a cascata inflamatória passar?

Como doença capaz de afetar múltiplos órgãos e sistemas, a impressão é de que precisaremos, pelo menos, uma década para dimensionar os danos dessa viremia.

Com as curvas de mortalidade em rápida regressão em todos os países que tiveram condições estruturais e econômicas de vacinação em massa, tudo parecia encaminhar-se para um final feliz, mas que ninguém, contabilizadas as mortes, classificaria como precoce.

E então aumentaram o tom dos resmungos, indicativos de um ranço histórico, que já se ouviam um ano atrás, mas os médicos, de boa vontade, admitiam que tudo era uma questão das vacinas se mostrarem efetivas. Pois nada disso aconteceu: os incautos, armados de preceitos sectários e fake news, passaram a repetir conceitos debiloides para justificar serem contra um dos maiores trunfos da ciência médica de todos os tempos: a vacina. Mesmo depois que a mortalidade entre os vacinados entrou em queda livre. Pessoalmente, acho ingenuidade querer argumentar quando o radicalismo tingiu de sangue o olho das suas vítimas. Só fico querendo ajudar aqueles que se precipitaram na escolha do lado, e agora, convencidos de que a ciência estava certa, têm vergonha de voltar atrás. A esses, meu conselho: se dê um presente de Natal, a si e a sua família. Vá a um posto de saúde e vacine-se.

Os fanáticos ignoram que a liberdade de opinião não estimula a produção de anticorpos. Mas nem por isso vamos desistir deles: se forem punidos pela opção estúpida da doença, nós, já protegidos, poderemos ajudá-los, como fizemos todos os dias, neste tempo para esquecer.

Enquanto isso, Feliz Natal para todos, porque, afinal, o perdão é o maior símbolo desta festa.

J.J. CAMARGO

25 DE DEZEMBRO DE 2021
DAVID COIMBRA

Jesus merece ser celebrado

A religião atrapalha quando você tenta dimensionar a figura de Jesus. Porque Jesus foi o homem mais importante da história ocidental, só que não pela religião, e sim pela filosofia. As ideias de Jesus mudaram o mundo. Não a crença; as ideias.

Até o surgimento dele, a desigualdade entre os seres humanos era vista como algo natural. Platão defendia o governo aristocrático dos mais sábios e Aristóteles dizia que a escravidão era uma condição do próprio ser. Ou seja: a pessoa nascia para ser escrava e viveria melhor sendo escrava.

As primeiras considerações morais de uma religião foram feitas pelos egípcios. Eles acreditavam que, depois que a pessoa morria, ela era julgada no Tribunal de Osíris. A principal cerimônia desse julgamento era presidida pela deusa Maat, uma bela morena que tinha asas sob os braços e que enfeitava os cabelos negros com uma pena de avestruz. Essa pena Maat colocava no prato de uma balança e a apresentava ao réu, que devia acomodar o próprio coração no outro prato. Se seu coração fosse mais pesado do que a pena, significava que estava cheio de pecados que cometera em vida e ele era condenado sem direito a apelar para o STF.

Então os egípcios tentavam ser bons em vida para não serem condenados após a morte.

Gregos e romanos não incorporaram essa noção moral dos egípcios. Para seus deuses, pouco importava se os homens fossem bons ou maus, desde que lhes prestassem homenagens e lhes fizessem sacrifícios. Os deuses greco-romanos apreciavam a bajulação mais do que a decência.

Jeová, dos antigos hebreus, fazia mais exigências éticas. Começou com os 10 Mandamentos e foi se aperfeiçoando na poeira dos séculos. Por volta de 750 antes de Cristo apareceu o terrível profeta Amós, o primeiro socialista da Humanidade, que defendia os pobres e amaldiçoava os ricos. Sua pregação era uma denúncia:

"Vendem o justo por dinheiro, o indigente por um par de sandálias, esmagam a cabeça dos fracos no pó da terra e tornam a vida dos oprimidos impossível!"

"Ai dos que vivem tranquilos em Sião! Dos que estão confiantes no Monte da Samaria! (...) Ai dos que se deitam em camas de marfim ou se esparramam em cima dos coxins, comendo cordeiros do rebanho, vitelos cevados em estábulos! (...) Acabou a festa dos boas-vidas!"

Os profetas tornaram o judaísmo uma religião asperamente moral.

Jesus bebeu dessa ética, mas foi adiante. Jesus dizia que todos somos irmãos, pregava contra a vindita e, ousadia inominável até os dias de hoje, intimava os homens a amar os próprios inimigos. Pela primeira vez na História, o amor ao próximo se transformou na maior valência do caráter humano.

O Ocidente é o que é graças a Jesus. A Declaração dos Direitos Humanos, a Revolução Francesa, o voto universal, a abolição das escravaturas, o feminismo, o antirracismo, os direitos dos homossexuais, a ideia de que todas as pessoas nascem iguais, independentemente da melanina, do gênero ou dos atributos físicos, tudo isso é fruto da filosofia de Jesus.

Jesus merece ser celebrado. Feliz Natal.

DAVID COIMBRA

25 DE DEZEMBRO DE 2021
FLÁVIO TAVARES

NATAL OU NOEL?

O Natal é, antes de tudo, a celebração da humildade. Festejamos uma criança nascida numa estrebaria e cujo berço foi uma manjedoura. Esta festa fez do Natal uma bússola a nos indicar os caminhos da fraternidade.

Em minha infância, já ansiávamos pelos presentes, mas o importante eram os presépios armados em cada casa e que atingiam o ponto máximo nos templos católicos e luteranos. A festa do Natal só era completa conhecendo os presépios nas igrejas. Até agnósticos e ateus os visitavam como obra de arte.

A sociedade de consumo, porém, substitui pouco a pouco o espírito fraterno do Natal pela presença quase única do Papai Noel distribuindo presentes. O Natal deixa de ser o mais profundo festejo do Ocidente para limitar-se a uma festa profana em que a única atividade é presentear. Ou, então, empanturrar-se na ceia natalina, algo inventado nas últimas décadas e que imita a ceia de Ano-Novo.

Mesmo abandonando sua origem sagrada, ou até com Papai Noel suplantando o Menino Jesus, a noite de Natal tem em si mesma um tom de magia, pois marca nossa fase adulta ao descobrirmos que Papai Noel não existe e que os presentes vêm de nossos pais. Recordo até hoje aquela noite em que me libertei da inocência infantil e o mundo da verdade se abriu na vida.

Sim, pois o Natal vai além do significado religioso. Recordo nos anos 1950, o dono de uma fábrica de bonecas na Rua São Pedro, em Porto Alegre, Israel Wengrover, que era judeu (e, assim, não tinha ligação com a data), saía com um saco de brinquedos para doá-los às crianças na noite de Natal.

Até com Noel, o Natal une.

Mas dezembro não vive só o espírito de Natal. Agora, a invasão dos sistemas de computação da pandemia por hackers é uma pirataria perversa que supera todos os absurdos.

A nova variante cresce, e o desastre se agrava com o ministro da Saúde sugerindo consultar o público sobre se as crianças devem vacinar-se, em um plebiscito sobre viver e morrer.

FLÁVIO TAVARES

25 DE DEZEMBRO DE 2021
OPINIÃO DA RBS

OLHAR PARA FRENTE

A época do Natal e do Ano-Novo costuma ser um período de reflexões, de balanço dos acontecimentos dos últimos meses e um momento de fazer planos e traçar metas para a virada do calendário. São elucubrações que permeiam aspectos pessoais, profissionais e mesmo sobre as angústias da sociedade.

Um olhar para o passado recente mostra um 2021 com sentimentos voláteis. O mundo, o Brasil e o Estado adentraram janeiro com a esperança da chegada das vacinas. Mas também, em seguida, conviveu-se com o período mais duro e temido da pandemia e seus picos de mortes, enquanto a cobertura da imunização não avançava o suficiente para derrubar os números de casos, hospitalizações e vítimas fatais, o que viria no decorrer do ano. Esta montanha-russa de sensações também foi observada na economia, com receio inicial de uma recessão que não se confirmou, com um resultado surpreendentemente positivo da atividade no primeiro trimestre, depois seguido por novas frustrações. Mas, à medida que os meses passavam, mais atividades reabriram e, mesmo em velocidade abaixo do ideal, as taxas de desemprego começaram a cair. Não foram poucas as provações a que foram submetidos empresários e trabalhadores.

Mas chega a hora de olhar para a frente e para o ano cujos primeiros raios surgem no horizonte. Obstáculos e instabilidades políticas não faltarão. Enfrentar e suplantar dificuldades, por outro lado, fortalece. Após dois anos de angústias, acreditar no futuro deixou der ser sinônimo de utopia. Passou a ser uma necessidade, somada à resiliência, à espera de tempos de mais paz social, tolerância e tranquilidade para empreender e trabalhar.

As crises encarrilhadas no país muitas vezes ofuscam as boas notícias, os progressos e as superações de adversidades que acontecem no Estado ou nas cidades gaúchas que, alheias à confusão nacional, conseguem avançar e proporcionar uma melhor qualidade de vida às suas populações. A orla revitalizada do Guaíba, apenas para citar um exemplo, orgulha não apenas os porto-alegrenses, mas todos os gaúchos, pela potencialização de uma convivência harmoniosa da Capital com a sua principal beleza natural.

No Estado, projetos de infraestrutura há muito esperados avançam com concessões, como as duplicações da BR-386, entre Lajeado e Carazinho, e da RS-287, de Tabaí a Santa Maria. Mesmo incompleta, a nova ponte do Guaíba tem ajudado a desafogar o trânsito na Região Metropolitana. A ampliação da pista do aeroporto Salgado Filho, aguardada há duas décadas, está próxima do fim. São obras que melhoram a logística e fazem as empresas gaúchas mais competitivas.

Por muitos anos, abordar o tema das finanças gaúchas significou tratar de penúria, escassez de recursos e salários atrasados. Como resultado também de uma série de reformas, o Estado passou a ser superavitário, recuperou a capacidade de investir e, em 2022, os gaúchos serão beneficiados por alíquotas menores de ICMS. No campo, a grande conquista foi o certificado internacional de área livre de febre aftosa sem vacinação, o que abre perspectivas animadoras para o setor de carnes. A queda contínua dos indicadores de criminalidade é outro fato a ser reconhecido.

O cenário está longe de ser cor-de-rosa, mas não é de terra arrasada. Existem desafios importantes, como inflação e juro altos, economia nacional estagnada, crescimento da miséria e as turbulências políticas que virão, próprias de um ano eleitoral. Mas há soluções que, com unidade e convergências, podem ser internas. Com os pés no chão e aguerrimento do setor produtivo do Estado, é possível crer que a sociedade é capaz de superar as turbulências já enfrentadas ou as que estão à espreita ao se dobrar a esquina de 2022.

OPINIÃO DA RBS

25 DE DEZEMBRO DE 2021
ENTREVISTA

"Entendo que a privatização do Banrisul é inevitável"

EDUARDO LEITE Governador do Rio Grande do Sul

Às vésperas de completar o terceiro ano de mandato, o governador Eduardo Leite já absorveu a derrota na prévia do PSDB, congelou o projeto de ser candidato a presidente da República e está decidido a cumprir o mandato até o fim. Não vê sentido em renunciar para ser candidato a senador ou deputado, muito menos para ser coadjuvante em um processo que o obrigaria a sair do PSDB. Como prometeu na campanha de 2018, disputar a reeleição está fora do seu radar, apesar do desejo de eleger alguém que defenda seu legado e dê continuidade ao projeto.

Ao falar sobre o principal desafio de 2022, deu uma resposta que soaria impensável nos dois anos anteriores: gastar os recursos disponíveis para investimentos, fruto de um processo de ajuste de contas, combinado com a inflação que fez crescer a receita.

O governador também falou do cenário que espera seu sucessor e opinou que a privatização do Banrisul terá de ser discutida na campanha eleitoral:

- Eu entendo que é inevitável. O Estado terá que discutir e levar essa privatização adiante.

Usando camisa com gravata, Leite conversou com ZH por quase uma hora, no Salão dos Espelhos do Palácio Piratini, na última quarta-feira. Ao lado, a síntese da entrevista.

Encerrado o ano de 2021, que foi um ano difícil, mas teve arrecadação surpreendente, qual o grande desafio para 2022?

A capacidade de execução do Estado. Tal qual uma pessoa que não se exercita, o Estado, sem ter capacidade de investimentos, foi enferrujando, foi atrofiando sua capacidade de execução das políticas públicas. Não havia investimentos, então a máquina trabalhava com menos capacidade. Agora, temos os recursos e o grande desafio é destravar a máquina e fazermos os investimentos. O programa Avançar tem recursos assegurados e o fluxo financeiro pactuado com a Fazenda. Estou me dedicando a acompanhar no detalhe a execução de cada um dos investimentos previstos nos mais de 240 projetos.

Seria possível investir mais em 2021 se o Estado não estivesse com essa "atrofia"?

A gente teve a capacidade financeira retomada. Quitamos dívidas de curto prazo com municípios, fornecedores e hospitais. Estamos com tudo em dia. A gente tem recursos para investimento, agora temos de ter a capacidade de execução. Estamos avançando em convênios e parcerias com as prefeituras para a execução desses recursos.

O regime de recuperação fiscal (RRF), que se tornou quase lenda, será assinado quando?

São duas etapas. A primeira é da adesão, em que a gente faz o pedido, a Secretaria do Tesouro Nacional faz a análise e deve dar a resposta em até 30 dias (o Piratini deve encaminhar o pedido ainda em dezembro). Nesse momento, o Estado já entra no regime. O passo seguinte é a homologação do plano, com tudo o que o Estado vai fazer e o que poderá dispensar das restrições. O importante é que, ao final do processo, a gente consiga ter capacidade de pagamento da dívida. A homologação é feita pelo presidente da República, e a expectativa é de que isso aconteça no primeiro semestre, entre 90 e 120 dias depois da adesão. Ou seja: entre maio e junho.

O Banrisul sempre esteve na mira para a adesão ao regime de recuperação fiscal, e acabou ficando de fora. O próximo governador terá de vender o Banrisul?

Essa discussão deverá ser feita. A decisão será do próximo governador, creio que esse assunto virá ao debate na eleição, e acho que tem de vir. Tem duas questões: a primeira é a condição de um banco público concorrer no mercado bancário, que se altera profundamente por causa da tecnologia, mais ainda no momento em que os grandes bancos privados estão ameaçados pelas fintechs e os novos bancos digitais. O outro ponto é que essa será uma década de transição, em que vamos estar vedados de acessar recursos para investimentos até que concluamos o regime de recuperação fiscal. O banco é também um ativo que pode ser convertido em investimentos estratégicos, em áreas que ajudem a se desenvolver, em vez de ver o ativo patrimonial perder valor. Acho que é um assunto que terá de vir na eleição. Nesse governo, tínhamos discussões sobre empresas que operam em regime de concessão de serviços públicos e as reformas na estrutura das carreiras e da previdência. A discussão do banco exigiria um esforço político imenso e não resolveria o problema do Estado.

Sua posição é pela privatização?

Eu entendo que é inevitável. O Estado terá que discutir e levar essa privatização adiante. Agora, não é algo que se faça pela mera vontade de um governador. Nós não fizemos e não faremos, porque tínhamos outras prioridades, não havia tempo na agenda para colocar a discussão sobre o banco, que consumiria um esforço político. O capital político é finito, se escolhe onde vai alocar.

Faltou capital político para aprovar uma reforma tributária mais progressiva, como a que o senhor propôs em 2020?

Sempre entendi que o primeiro ano e meio de governo seria para fazer as reformas estruturantes, e que faríamos a reforma tributária no primeiro semestre de 2020, mas aí sobreveio a pandemia, que alterou o cenário. Se tivéssemos aprovado a reforma tributária, possivelmente o Estado não precisaria aderir ao regime de recuperação fiscal e teria capacidade imediata de retomar o pagamento da dívida, mas são as decisões que se tomam a partir do contexto em que se vive. Entendemos que a sociedade gaúcha, a partir de debates travados na Assembleia, tinha dificuldade de compreender aquela reforma, então optamos por outro caminho, mas fizemos ajustes importantes na estrutura tributária avançando na redução da regressividade do ICMS.

Sua maior frustração nesse período do governo é não ter conseguido fazer a educação avançar?

A educação é algo que tem de estar no topo da agenda. Era difícil para um governo que tinha credores batendo à porta conseguir sonhar com transformação mais profunda. Claro que é uma frustração, mas, ao mesmo tempo, estamos cientes das circunstâncias com as quais trabalhamos. Agora, estamos em outra condição. A pandemia vai sendo superada, já sabemos os efeitos nas crianças, o Estado tem capacidade de investimento e está pagando em dia. Temos capacidade de sonhar e planejar um ganho de qualidade na educação ao longo dos próximos anos. Estamos plantando as primeiras sementes, com o projeto do ICMS na educação, buscando fazer parcerias para que melhore o papel do Estado na contribuição com municípios (o projeto aumenta repasses do ICMS para quem melhorar indicadores de educação). Queremos que a Secretaria da Educação, mais do que gestora da rede estadual, seja articuladora da educação ao Rio Grande do Sul, e pretendemos fazer isso com o apoio de entidades nacionais que trabalharam nos cases mais bem sucedidos do Brasil. E queremos deixar como legado, começando em 2022, a expansão do ensino integral no Ensino Médio.

O senhor estará no Palácio Piratini no final de 2022 para fazer um balanço do seu governo?

Estarei como governador ou se for convidado pelo governador Ranolfo (risos).

Mas há possibilidade de se candidatar a algum cargo que o obrigue a renunciar em abril?

Não pretendo renunciar. Uma candidatura a senador, que exigiria uma renúncia, não faz sentido para mim. Será o melhor ano do governo, com as melhores entregas, e de grandes desafios para garantir a execução de todos os investimentos projetados. Pretendo concluir meu período como governador sem concorrer a qualquer outro cargo.

Diante dos convites que o senhor tem recebido, há possibilidade de deixar o PSDB?

Estou no PSDB há 20 anos, não é algo que eu goste de considerar. Mas precisamos ver que cara será dada ao PSDB pela candidatura do governador João Doria. Quais serão as alianças, os discursos e os posicionamentos, em uma eleição que é crítica para o Brasil. Quero ver uma alternativa, não um terceiro polo de radicalização. Não pretendo sair do PSDB, mas se o PSDB deixar de ser o PSDB ao qual me identifico, talvez continuar no partido seja sair dele.

Fala-se muito que o senhor poderia ser o vice de Sergio Moro (Podemos), o que exigiria troca de partido. Isso pode acontecer?

Não trabalho com essa possibilidade. Nada contra o papel do vice, mas teria de renunciar ao mandato, o que não faz sentido para coadjuvar um projeto nacional. Para ser coadjuvante, não preciso estar na chapa, posso empunhar bandeira, distribuir santinhos e fazer tantas outras coisas conciliando com a tarefa de governador.

Santinhos do Moro ou do Doria?

Da candidatura que construirmos. A de meu partido no momento é a de João Doria. Mas sempre disse que, se fosse o escolhido, trabalharia na lógica de buscar o apoio com a humildade para apoiar, se fosse o caso. E tenho ressaltado que é importante que o governador João Doria se mantenha na mesma posição. Com a rejeição que tem, e o índice de votos que tem, não pode se impor como candidato. E se houver outro candidato que melhor consiga aglutinar apoios e ter capacidade eleitoral, estar disposto a apoiar. Não tenho convicção de que seja Sergio Moro porque também tem rejeição alta que precisa trabalhar.

A possibilidade de concorrer à reeleição é 100% descartada?

Não serei candidato à reeleição. Sei que só consegui fazer um governo que enfrentou o tema da crise fiscal da forma como enfrentamos em razão dessa posição. Tenho consciência de que se fosse um virtual candidato à reeleição, não teria feito mandato de transformação do Estado. E pretendo cumprir minha decisão. Mas não vou me omitir ao processo da sucessão, vou trabalhar para garantir a continuidade de nossa agenda.

E quem teria condições de defender o legado do governo?

Essa é uma discussão que vamos fazer com a base, começando pelo meu partido. Atualmente, o PSDB deseja ter o protagonismo, e é legítimo que queira, mas não fizemos a transformação do Estado sozinhos. Tivemos apoios importantes de outros partidos e pretendo me reunir com eles durante os primeiros meses de 2022 para formar liga e manter essa base o máximo possível unida. É justo que cada um queira buscar o protagonismo no processo, mas minha parte será de tentar manter o grupo unido para que possamos ter a agenda do governo representada com fôlego.

O senhor apoiaria um candidato a governador alinhado ao presidente Jair Bolsonaro?

Esse é um tema mais difícil, mais complexo, porque o Rio Grande do Sul não é uma ilha. Não precisamos ter convergência em tudo, mas o governo nacional interfere nos interesses do Estado, e estamos vendo um país que cresce menos do que deveria, com problemas de ordem institucional, instabilidade constante, conflitos e confrontos que geram impactos econômicos. O Brasil vai crescer menos que o mundo em 2022, talvez tenha recessão, está com inflação em alta, muito por conta da incapacidade do governo federal de tratar da crise e fazer as reformas que precisam ser feitas. A gestão da pandemia, a gestão econômica, a falta de sensibilidade social, o governo lamentavelmente incorre em muitos problemas e equívocos que afetam os interesses do Estado. Essa questão nacional vai pesar muito sobre as possibilidades de construir alianças.

Se os maiores partidos da base lançarem candidatos, a continuidade de sua gestão estará ameaçada?

Ainda é prematuro fazer essa análise, mas entendo que o governo chegará com força e capital político na eleição.

O vice-governador Ranolfo Vieira Júnior entrou no PSDB com a expectativa de ser candidato a governador. Ele é o nome do partido? E se houver aliança com o MDB, o mais afinado com o governo é o presidente da Assembleia, Gabriel Souza?

São naturalmente dois nomes que despontam. Ranolfo acompanhou comigo toda a agenda, as reuniões com secretários, com a equipe do núcleo duro, em que se definem estratégias para todas as agendas. Foi um parceiro leal, com muita capacidade técnica e política, e tenho certeza que pode ser o líder desse projeto no processo eleitoral. No PSDB, é o nome que tem melhor condição para ser representante desse projeto. Tenho muita confiança e segurança nele. O presidente da Assembleia, deputado Gabriel Souza, desde que era líder do governo Sartori, depois na bancada do MDB, sempre teve interlocução, debateu as questões mais cruciais, ajudou o governo e teve papel importante como presidente da Assembleia. Considero que é também um quadro muito qualificado que tem toda a capacidade de ser um líder desse projeto. Mas o entendimento não tem de ser meu, tem de ser do grupo.

No caso do MDB, os nomes que aparecem, além do presidente da Assembleia, são de Alceu Moreira, que faz parte do mesmo grupo político de Gabriel Souza, e o de José Paulo Cairoli, que foi vice de José Ivo Sartori. Há jogo com eles?

Não vou me intrometer na questão partidária, essa discussão é do MDB.

Como observa o movimento do ex-governador Geraldo Alckmin, que saiu do PSDB e poderá ser candidato a vice na chapa presidencial de Lula?

Respeito muito o governador Geraldo Alckmin pela sua história e sua trajetória, mas acho um erro. Não entendo que seja o tempo de nos resignarmos de que, para tirar Bolsonaro, precisamos voltar ao um passado que também não foi bom e que deixou heranças negativas. Embora Lula tenha terminado o mandato com crescimento econômico, ali germinava tanto a corrupção quanto uma política econômica que rendeu profunda recessão em 2015 e 2016, algo que impactou muito a vida das pes­soas. Não acho que a solução para o Brasil seja o retorno de Lula, temos de trabalhar até o último instante por uma alternativa.

O que o senhor planeja para seu futuro político após 2022?

Tenho um ano inteiro de governo pela frente. Quando decidi não concorrer à reeleição como prefeito, muitos diziam que perderia a chance de me consolidar politicamente e que ficar dois anos fora da vitrine poderia ser fatal. Acabei me tornando governador. Estou muito feliz com o que fazemos no Rio Grande do Sul e isso me realiza. Se a minha vida política tiver de encerrar aqui, não tenho nenhum problema com isso. Vou estar na política tanto quanto o povo entenda que deva estar. Existem tantas outras possibilidades de ajudar lateralmente, através de organizações que dão apoio, ajudam governos. Tenho buscado institutos, fundações e organizações com projetos para educação, segurança, saúde e gestão estratégica. Eventualmente, uma delas possa ser um caminho, mas não tenho nada negociado.

 ROSANE DE OLIVEIRA PAULO EGÍDIO


25 DE DEZEMBRO DE 2021
MARCELO RECH

O vírus da incerteza

Dois anos depois do surgimento da covid-19, se há uma certeza é de que há poucas e frágeis certezas a se extrair sobre o curso de um vírus traiçoeiro. O contágio alcançou até agora mais de 275 milhões de habitantes da Terra, matou 5,4 milhões e sistematicamente aplica uma lição de humildade em quem se arvora senhor das verdades definitivas.

Uma das poucas convicções aceitas universalmente (malucos, aproveitadores e alienados não entram nessa conta) é a de que, além de vacinas e mais vacinas, a melhor forma de defesa é distanciamento social, máscaras de boa qualidade usadas de forma correta, ambientes arejados e higienização. Outra deveria ser a de que sensações de alívio são isoladas e fugazes - de uma forma ou de outra, o vírus reaparece e tenta se esgueirar por vacinas e infecções prévias, embora a produção de anticorpos se mostre uma poderosa barreira contra o agravamento da doença.

Fora daí, o mundo virou uma montanha-russa de situações que se desfazem como nuvens. Veja-se o caso da rica Dinamarca, que já foi um exemplo de controle da pandemia. Nesta semana, ela liderava a taxa mundial de contágio - média de 153 casos diários por 100 mil habitantes, incríveis 70 vezes a mais do que no Brasil. Alguns podem celebrar a comparação, mas não convém se apressar porque a Dinamarca vacinou mais, testa exaustivamente e, sobretudo, a variante Ômicron ainda não se difundiu por aqui.

Por via das dúvidas, já deveríamos estar há um bom tempo vacinando as crianças de cinco a 11 anos, o principal vetor da súbita disparada da covid na Holanda, que se vê em lockdown na véspera do Natal. A Holanda regrediu quase dois anos porque governo e população erraram. Raros holandeses usavam máscaras em locais fechados, só 30% diziam que pretendiam vacinar os filhos e o comando do enfrentamento à pandemia resistiu à dose de reforço. Quando os holandeses acordaram, já era tarde, e agora, assombrados pela Ômicron, correm atrás de um prejuízo humano e econômico imensurável.

Graças ao sistema de saúde ramificado, a prefeitos e governadores responsáveis, a uma imprensa incansável e a tribunais conscientes, o Brasil passa um Natal relativamente tranquilo. Mas ter um presidente com a mente abotoada por tuítes disparatados e teorias mirabolantes é um risco permanente, como se constata no caso da vacinação de crianças. Jair Bolsonaro é o único chefe de Estado no planeta a crer na "imunidade de rebanho" para enfrentar a covid, uma teoria mais apropriada para a Idade Média, quando não havia outros recursos, e que, se adotada, já poderia ter matado mais de 3 milhões de brasileiros.

A única certeza, portanto, é que é melhor não ter certezas e guarnecer o quanto antes as defesas contra a nova onda.

MARCELO RECH


25 DE DEZEMBRO DE 2021
INFORME ESPECIAL

O presente de R$ 20 milhões de uma família para a Capital

Feliz Natal, Porto Alegre e todo o Rio Grande do Sul. Alexandre Grendene e Nora Teixeira confirmaram a doação de mais R$ 20 milhões para a Santa Casa. O dinheiro será usado na oitava unidade do complexo, que está com mais de 60% das obras prontas e será inaugurada em 2022.

Com mais este aporte, o casal Grendene totaliza R$ 80 milhões em doações. Foram R$ 60 milhões iniciais, em fevereiro de 2019, e, agora, mais R$ 20 milhões. Além de uma nova emergência do SUS, que passa dos atuais 400 para 2,3 mil metros quadrados, o Hospital Nora Teixeira terá uma nova estrutura, com leitos de convênios e particulares, que possibilitará o custeio do SUS como um todo na instituição, projetando equilíbrio econômico e financeiro nos próximos anos.

Fator de sucesso

Li na coluna da Rosane de Oliveira que o governo Leite aprovou 215 propostas desde o começo do mandato. Esse número representa "todos os projetos votados em três anos". Sem qualquer demérito à eficiência da articulação política do Piratini, essa façanha só foi possível graças a uma decisão tomada pelo governador, antes mesmo de assumir: não concorrer à reeleição. Se Eduardo Leite planejasse disputar um segundo mandato, boa parte dessas vitórias não teria acontecido. A lógica da política é, infelizmente, muito focada na destruição. Não dar palanque para o provável adversário é o mais importante.

Na década de 1990, quando a reeleição foi aprovada, diziam que um mandato era pouco para implementar uma plataforma de mudanças e evoluções. Hoje, questiona-se esse mesmo mecanismo, porque, por mais estranho que pareça, a única forma de conseguir exercer o poder com relativa tranquilidade é prometer não se beneficiar eleitoralmente com eventuais sucessos.

Se um mandato é pouco e dois é demais, fica fácil concluir que o problema não é esse, mas sim a forma como disputamos e enxergamos o poder. E aí, não há lei, sistema de governo ou decreto que imponha uma transformação cultural, que costuma levar uma geração para se solidificar. Desde que exista mesmo vontade e investimento para mudar.

TULIO MILMAN 


25 DE DEZEMBRO DE 2021
J.R. GUZZO

Costura política

De todas as fraudes já praticadas pelos políticos brasileiros contra os eleitores deste país, poucas poderão ser comparadas, no passado, presente e futuro, com essa anunciada aliança entre Lula e o ex-governador Geraldo Alckmin para disputar as eleições presidenciais de 2022.

O grau de sinceridade de uma chapa entre ambos, se pudesse ser medido em números, daria um zero absoluto; ao dizerem que se admiram mutuamente e têm ideias em comum, estão mentindo com um cinismo capaz de fazer inveja aos piores momentos da vida política nacional - e olhem que essa vida tem um caminhão de piores momentos. A curiosidade, no caso, é saber qual dos dois está mentindo mais.

Deve ser Alckmin. Lula mente o tempo todo e sobre todos os assuntos; está mentindo há 40 anos e não será agora que vai mudar, mesmo porque não consegue dizer a verdade nem quando lhe perguntam que horas são. É coisa de cabeça. Mas Alckmin, para fazer um acordo desses, está se transformando numa pessoa que não existe.

Isso não é uma "reinvenção", como dizem os consultores de carreira, nem uma mudança honesta para corrigir erros do passado. É uma falsificação pura e simples. Alckmin não tem nada, absolutamente nada, em comum com Lula, o PT, e a esquerda brasileira; ao contrário, sempre mostrou detestar isso tudo desde que entrou na política quase 50 anos atrás. Mudou agora por uma coisa que se chama oportunismo.

As desculpas que o ex-governador está dando para virar a casaca não resistem a 30 segundos de observação. Alckmin diz que está aceitando a ideia de ser vice de Lula por "patriotismo", "espírito público" e outras lorotas. O Brasil, diz ele, precisa do seu desprendimento, abnegação e demais virtudes; para atender ao apelo desesperado de uma "nação" em busca de "equilíbrio", aceita a vice-presidência na chapa do PT. Chega a ser cômico.

Há anos, desde os tempos do "mensalão", Alckmin vem chamando Lula de ladrão, corrupto, incompetente e daí para baixo. Lula, do seu lado, tem o mais completo desprezo pelo novo companheiro; é um dos que mais pisoteou, em sua coleção de inimigos. Não aconteceu nada de novo que pudesse justificar uma mudança das opiniões que um tem do outro.

Se resolveram se juntar, é unicamente porque Lula imagina que vai tirar proveito de Alckmin, e Alckmin imagina que vai tirar proveito de Lula - e que ambos vão enganar o eleitor com a fraude de uma chapa "moderada". É empulhação com teores de pureza de 100%.

J.R. GUZZO

sábado, 18 de dezembro de 2021


18 DE DEZEMBRO DE 2021
LYA LUFT

Natal outra vez?

Nada original para a colunista escrever sobre Natal no Natal. Talvez o hábito, ou o desejo de desbanalizar o tema. Ou certa irritação: gente que detesta Natal, que se isola e vai dormir cedo ou toma um porre, briga com a família ou só pensa em desgraça, ou chora pelos Natais da infância. Lista de infinitas chatices.

Já que ele existe, por que não curtir um pouco? Por que achar que datas são armação capitalista para empresas ganharem dinheiro? Ganharão dinheiro se eu permitir, se eu o gastar, sobretudo se me endividar com a festa em lugar de me alegrar com ela. Gente em filas gigantescas ou apavorantes multidões: "Tenho sete filhos mais seis netos mais oito sobrinhos mais..." e a pobre mulher com poucos dentes faz a conta, se atrapalha e, claro, vai gastar o salário, o décimo, as férias, e pagar pelo ano todo o delírio dos presentes.

Gosto de lembrar de coisas da infância, mas sem melancolia. Quase verão: o crepúsculo vermelho eram os fornos do céu onde os anjos preparavam os doces de Natal. E em algum lugar crescia uma árvore miraculosa que logo se multiplicaria em nossas casas. Velas e aquele cheiro de cera derretendo, bolas de mil cores, a música da caixa da avó, velhíssima mas intacta. Presentes misteriosos embaixo da árvore, nada de escolher antes no shopping. Não existia shopping. Existia segredo e encantamento.

Na véspera, ninguém podia entrar na sala, onde lençóis pendurados fechavam como biombos todo um recanto. Na cozinha, os biscoitos em forma de estrela com açúcar colorido em cima; adivinhar os presentes escondidos; gente da família chegando. Vestido novo de organza, sapato de verniz, promessas de me comportar, sim sim sim sim... dali em diante eu seria outra. Prometo ser boazinha prometo ser obediente prometo não responder pra mãe nem botar a língua nem me esconder na hora de dormir nem nem nem.

Por fim, na noite de Natal, um anjo dissimulado atrás dos panos alvos tocava sinetas, retiravam-se as cortinas improvisadas, e era o paraíso. A árvore dos milagres. Nós, em torno, éramos anjos também. A árvore chegava ao teto, pé-direito tão alto como se ali em cima houvesse sempre névoa. Girava vagarosa numa pinha de ferro sobre uma caixa de música, uns discos de metal com lasquinhas levantadas. O som metálico em canções natalinas, e nós ali, tomados de beleza. Depois havia abraços e presentes, os adultos tomavam champanha e alguém tocava piano, todos cantavam, as mulheres contentes, porque mães e avós gostam de reunir seus pintos de qualquer idade.

Atrás das portas de vidro que se abriam para o jardim, solenes anjos com asas de tule também giravam devagar - parecendo minha mãe numa foto de menina junto daquela árvore, ouvindo a mesma música, com um vestido de muitos tules, parecendo, ela mesma, um anjo contemplativo. Então, esta senhora que já viveu, leu, aprendeu, curtiu ou sofreu tanto - acredita em Natal? Pois ela acredita em fadas e duendes que de noite cochicham entre as árvores do seu jardim, acreditou

em Cegonha até uma idade vergonhosa, acredita em Deus. Acreditar é bom, se for em coisas positivas, que afinal existem.

Que este Natal seja de não ser nem lamuriento nem implicante, mas de acreditar.

Este texto foi originalmente publicado na edição de 22 e 23/12/2018

LYA LUFT

18 DE DEZEMBRO DE 2021
MARTHA MEDEIROS

Quem está "on"?

Postei uma foto no meu perfil do Instagram em que apareço tomando a vacina contra a covid-19. Na legenda, de poucas palavras, deixei claro que era a terceira dose. Recebi muitas curtidas e alguns comentários, entre eles o de uma moça que perguntou: "Martha, você já tomou a terceira dose?"

Dias antes, havia postado sobre o lançamento do meu novo livro no Rio, em fevereiro próximo, e disse na legenda: "Não há outras cidades confirmadas. Quando houver, avisarei". De novo, muitas curtidas e alguns comentários, entre eles: "E Goiânia?", "Curitiba quando?".

Não sou louca de desconsiderar: é carinho, eu sei. Mas é também um sintoma. Houve um tempo em que as pessoas liam livros, muitos deles extensos, divididos em dois ou três volumes. Depois veio a era tecnológica e com ela a impaciência: leituras rápidas, cultura do aperitivo. E agora nem isso: a criatura passa os olhos por duas linhas e não registra nada.

Ninguém mais quer perder tempo, é o argumento de defesa. Mas não me convenço. A falta de foco, sim, é que nos faz perder tempo: somos obrigados a repetir as perguntas, repetir as respostas, voltar aos mesmos assuntos duas, três, cinco vezes. Estamos nos comunicando miseravelmente, trocando mensagens cifradas por WhatsApp, com preguiça de dar uma informação completa, de prestar atenção nos detalhes, de facilitar o entendimento. Agimos como aquelas telefonistas estressadas que atendiam um cliente enquanto deixavam outros sete pendurados (na saudosa época em que não falávamos com robôs).

Essa pressa toda pra que mesmo? Dizem que é o tal do fear of missing out, ou em bom português, "medo de ficar por fora". Em vez de a pessoa se dedicar uns minutinhos a concluir o que está fazendo - uns minutinhos!! -, ela some e já está em outra e depois outra e ainda outra interação, que serão igualmente capengas. Isso é medo de ficar por fora? A pessoa já está em órbita e não percebeu. Fica batendo de porta em porta e não entra em lugar nenhum.

Adentre, amigo. Puxe uma cadeira e sente. Converse. Pergunte pela família. Olhe nos olhos. Cinco minutos de atenção não arrancarão pedaço. Fique o suficiente para demonstrar que se importa com seu interlocutor. Cale-se e escute. Nutra esses preciosos cinco minutos, para que eles não se dissolvam por inanição.

Ando bem tonta com a esquizofrenia cibernética, com o parcelamento de informações, com a falta de cuidado e de concentração. Ninguém mais se esforça minimamente para estabelecer uma conexão verdadeira. Agora virou moda dizer que fulano tá on, sicrana tá on. Balela. On a gente estava quando se importava. Agora estão todos off, desligados crônicos, vivendo a falsa ilusão de uma vida plena. On está aquele que consegue pausar.

MARTHA MEDEIROS

18 DE DEZEMBRO DE 2021
CLAUDIA TAJES

Amores difíceis

Italo Calvino que perdoe a apropriação indébita deste lindo título por uma humilde colunista de Porto Alegre, mas olha a notícia da semana passada: "O bispo espanhol Xavier Novell foi formalmente destituído de seus poderes e proibido de realizar sacramentos após se casar com uma autora erótica que também escreve sobre satanismo. A oficialização ocorre cerca de quatro meses depois de ele decidir abandonar sua carreira na Igreja para levar adiante seu matrimônio".

Único comentário possível nessa hora: rapaaaaaaaz. Não bastava o padre ter se apaixonado por uma autora erótica, ela ainda escreve sobre o cramulhão e seus mistérios. Estava quase comovida pela história de amor improvável quando li outra parte da notícia: "Novell se tornou o bispo mais jovem da Espanha aos 41 anos, quando foi nomeado para o município catalão de Solsona em 2010. Ele teria apoiado e participado das chamadas terapias de conversão para gays".

Pronto, foi-se a minha simpatia pelo ex-santo homem. O mais jovem bispo dedicado à cura gay? Mas vá plantar batatas, ou patatas, em catalão. Curioso é que, embora destituído e proibido, o recém-casado Xavier vai manter o seu título de bispo - embora já esteja encaminhado em sua nova vida: "Formado em engenharia agrícola, Novell está trabalhando para uma empresa que extrai e vende sêmen de suínos".

A partir do romance do bispo e da satanista, pensei em outros casais de interesses diversos, por assim dizer. De sexos opostos ou do mesmo, pode não haver monotonia, ainda que, eventualmente, falte um pouco de harmonia entre os pares. Mas esse é o amor. Ninguém disse que seria fácil.

A zen e o apressadinho

Tudo o que ela faz é na marcha lenta. No salão em que trabalha, leva duas horas para fazer as mãos das clientes - e tem fila para marcar, tão perfeito é o trabalho. Passa horas recuperando os arquivos de computador que a família perde e, quando inspirada, pode levar um dia inteiro preparando o jantar. Já ele é o famoso pé de vento, vive de passagem pela vida e descansa do serviço - é especialista em trânsito rápido - treinando para os cem metros, categoria Lendários. Ninguém entende como estão juntos há quase 20 anos, mas dá para arriscar um palpite. Pelo menos da porta do quarto para dentro, ele acompanha o ritmo dela.

O esculhambado e o furacão branco de Ajax

Se um adivinhasse o outro, é quase certo que nem teriam se cumprimentado. Mas então se apaixonaram e, quando viram, já estavam dividindo a casa - e as broncas. Um atira as roupas no chão do quarto, outro não suporta um vinco no edredom. Um pode empilhar louça até que não reste um garfo limpo, outro ama lavar as vidraças no sábado. Um jamais virou o cestinho do banheiro, outro desce com o lixo, devidamente separado, três vezes por dia. Um não sabe há quanto tempo estão juntos, outro contabiliza até os segundos desde o primeiro encontro. São mais de cinco anos, e contando. Até que uma cueca usada e largada no meio da sala os separe.

A #EleNão e a #EleSim

Ela estava com a camisa da CBF e um pixuleco na mão quando botou o olho na baixinha de preto, a cara barbuda de você-sabe-quem estampada nas costas da jaqueta. Amigos em comum deram um jeito de promover o encontro e as duas descobriram que, embora as divergências irreconciliáveis, gostavam uma da outra. Os últimos três anos não foram fáceis, as duas sempre em passeatas diferentes, as tantas crises econômicas, da saúde, ambientais e humanitárias do país estourando dentro do quarto delas. Estão pisando em ovos com as últimas pesquisas. Se o amor vai sobreviver às próximas eleições, só as urnas - eletrônicas - dirão.

A gremista e o colorado

Esse é o tipo de casal comum, que a gente encontra em qualquer ida ao supermercado ou em uma voltinha pela Redenção. É uma situação facílima de levar, desde que o/a parceiro/a entenda que o amor maior mesmo, sem um segundo de dúvida, amor para sempre, é pelo clube dono do seu coração. O recente infortúnio do Grêmio pode ter abalado alguns relacionamentos, notadamente aqueles em que a flauta é liberada. Passado o choque, segue a vida. Não é essa ou aquela divisão que vai mudar o que a gremista sente. Não pelo marido, óbvio, mas pelo clube.


18 DE DEZEMBRO DE 2021
LEANDRO KARNAL

A frase é do poeta e pregador John Donne (1572-1631). O inglês comentava que não deveríamos perguntar, quando o toque no campanário anunciava uma morte, por quem era o som. A humanidade é una e ninguém, portanto, é uma ilha. Assim, independentemente de quem estivesse sendo velado ou rememorado, os sinos dobravam por você, sempre... (And therefore never send to know for whom the bell tolls; It tolls for thee.)

A frase foi usada como título de Ernest Hemingway, em 1940, em romance sobre a terrível Guerra Civil Espanhola. Dali surgiu um clássico do cinema com a mesma dúvida de Donne, estrelado por Gary Cooper e Ingrid Bergman. O diretor, Sam Wood, foi o mesmo que terminara a filmagem de ...E O Vento Levou, depois que Victor Fleming abandonou o set em uma crise de estresse. Por fim, o tema do toque de finados moveu Raul Seixas a compor música com o mesmo título. Em versos de teor psicanalítico, o baiano colocou na letra: "É sempre mais fácil achar que a culpa é do outro/ Evita o aperto de mão de um possível aliado/ Convence as paredes do quarto, e dorme tranquilo/ Sabendo no fundo do peito que não era nada daquilo".

Os sinos dobram por nós. Somos parte de um todo. Cada homem ou mulher que termina sua existência torna a humanidade menor. A retirada de uma pequena porção de terra de um vasto território pode não se mostrar logo, mas o continente ficou menor. A metáfora é poética e religiosa.

O ano de 2021 foi de enormes perdas humanas no Brasil e no mundo. Ficamos bem menores com a pandemia. Entre tantas tragédias, eu perdi dois amigos. No começo, foi-se Contardo Calligaris (que não morreu de coronavírus). Era cheio de vida e transbordava de ideias e de planos. No fim do ano da peste, faleceu Marcelo Cunha, conhecido oftalmologista de São Paulo.

A convite da família Cunha, falei na igreja na missa de réquiem. Seguindo Donne, toda liturgia de finados é para nós. Ritos fúnebres sempre nos envolvem pelo afeto a pessoas amadas e pelo medo que ronda a incerteza do nosso destino. Choramos por quem vai e pelos que ficam. Choramos por nós. Fiz, na Igreja São José, apinhada, o elogio necessário e sincero a um grande amigo, pai, avô, médico, marido e cidadão. Lembrei-me do seu humor refinado e atenção com os outros.

Fiz muitas viagens com Marcelo e Rosana, sua esposa. Na missa, lembrei-me de uma frase confessional enunciada diante do Muro das Lamentações, em Jerusalém. Estávamos de quipá, separados das mulheres (a área de visita é diferente). Diante do Kotel, ele me disse que tinha pouco a lamentar e que a vida dele era intensa e feliz. Ele avaliava, sem saber que era profético, que a vida dele tinha valido a pena e que ele poderia morrer tendo feito o que queria fazer. Respondia à pergunta do filósofo Luc Ferry: "O que é uma vida bem-sucedida?".

Vou citar outro inglês. O arquiteto da monumental catedral Saint Paul, de Londres, foi Sir Christopher Wren. Enterrado na base daquele prédio, a lápide anuncia, em latim, que se algum leitor quiser ver obras, monumentos da sua autoria, basta olhar ao redor ("Lector: Si monumentum requiris circumspice"). Para aferir o gênio de Wren, basta olhar ao redor do túmulo e teremos a prova em pedra. O talento dele cobre a memória do túmulo. Pensei na ideia naquela missa na Igreja de São José, aliás, o padroeiro da boa morte no mundo católico. Se eu quisesse ver as obras do Marcelo, ali estavam: a família, os pacientes, os amigos e os funcionários da clínica e da fundação. 

Ali, do púlpito, eu via a construção de uma vida: pessoas gratas e emocionadas. Naquele dia 19 de outubro de 2021, entendi que os sinos dobravam por nós. Todavia, não apenas anunciavam seu toque melancólico de dor, também o repicar entusiasmado de vida. Os sinos badalam, sem cessar, pela ilha-homem que se liga ao arquipélago vasto da humanidade. Somos o bem que fizemos, resta o carinho como obra, imortaliza-se o amor. Sim, os dois netos pequenos, Gabriel e Cecília, talvez não se lembrem do avô brincalhão no futuro, mas a vida do Marcelo estará neles e eles levarão adiante o dever de tocar mais sinos, anunciando a todos que a lista de passageiros muda sempre e que a viagem continua.

A obra dele continua na visão de milhares de pessoas que ele tratou, a minha inclusive. O toque é por todos nós, em sons eufóricos a bimbalhar ou em toque de nênias. Vida que fica ou que segue: do alto das torres os sinos mostram nossa combalida mortalidade como um hiato possível de felicidade entre dois toques, o do nascer e o de morrer.

Querem obras, querida leitora e estimado leitor? Olhem para as pessoas ao seu redor. Há novos sineiros a cultivar. No aniversário da morte do meu pai, na semana que passou, ouvi o som forte dos carrilhões que ele amava escutar. Há algo maior indicado por Donne, algo que nos excede: cada outra pessoa que seguirá quando eu, ser oxidável, deixar de poder ouvir qualquer coisa. Cuide muito das obras ao seu redor. É isso que move os sinos da eternidade e do afeto. Os sinos choram e riem conosco, como a vida. Neste fim de ano, cuide muito do seu mundo imediato. Cultive, no seu campanário, a mais profunda esperança!

LEANDRO KARNAL

18 DE DEZEMBRO DE 2021
FRANCISCO MARSHALL

O PASSEIO DE BUDA

Sidarta Gautama nasceu em data incerta, entre os séculos VI e V a.C., na cidade de Lumbini, reino hindu de Shakya, hoje no Nepal. Sua biografia carece de documentação e só foi narrada após alguns séculos, já mesclada com lendas e episódios folclóricos. Seu pai, Suddhodana, seria um rei ou alto aristocrata, casado com Maha Maya; quando Sidarta nasceu, oito sábios o examinaram e indicaram que seria ou grande rei ou grande Buda, termo hindu para religioso iluminado. Para evitar que se tornasse monge, o rei tratou, então, de confiná-lo no palácio, envelopado em comodidades.

Aos 29 anos, porém, o príncipe conseguiu sair, conduzido pelo amigo cocheiro Chandaka, e teve, no passeio, quatro visões que o espantaram: um homem velho, um doente, um corpo morto e um asceta. Ao saber da dureza da vida, Sidarta abandonou o palácio e a família, com o cocheiro e o cavalo Kanthaka, e partiu para uma senda de mortificação, meditação sob a figueira e, após algum tempo, iluminação (bodhi), quando compreendeu as quatro nobres verdades: 1) a vida é sofrimento (Dhukka); 2) o sofrimento é causado pelo desejo, especialmente o de que o transitório se torne permanente (Samudaya); 3) a dor cessa com a supressão do desejo (Nirodha); 4) para superar o sofrimento, há oito caminhos nobres (Magga) - as virtudes budistas. E se Sidarta vivesse nesta cidade e saísse de sua mansarda para um passeio?

Hoje andamos nas ruas e vemos quadro desolador, de pungente miséria. As cidades brasileiras, há muito marcadas por subúrbios com condições degradantes, ora cobrem-se de uma arquitetura patética, de barracas iglu em canteiros, tendas de trapos e lonas pretas, e já não há mais pontes desocupadas, nem semáforo sem mendigo. Não é preciso um Sidarta para perceber a gravidade desse quadro, sua dor, sua urgência.

Mas pior do que a miséria urbana é a crueldade humana. Caminhando por uma das ruas mais ricas do planeta, a Av. Paulista, o artista Gustavo Nakle viu, na esquina com a Haddock Lobo, a prefeitura recolhendo a casa de lona de um lúmpen desesperado; entre os escombros, via-se uma arvorezinha de Natal, já destruída.

Em Porto Alegre, para poupar príncipes e princesas, a prefeitura, com a Guarda Municipal e o DMLU, destruiu as choupanas de lona das calçadas da Rua Gaspar Martins e levou bens e colchões, espoliando deserdados que clamam por assistência social. Um padre heroico, Lancelotti, parece emergir da saga de Artur para ele mesmo destruir com marreta as pedras agudas que desalmados põem para impedir que pobres sem teto possam ali dormir. Tal como aconteceu na Índia há milênios, hoje essa dor e o cerco da crueldade acendem-nos o desejo de que algo seja feito para pôr-se fim a tanta desumanidade - o despertar ético, samvega moderno.

A solução de Buda, como a de epicúreos e estoicos, foi uma ética individual com escasso efeito social, incapaz de resolver esse tipo de dor na cidade, chaga de nossa civilização. Precisamos mais. Na era digital, teclaremos números que combatam a miséria e façam cessar a torrente de ignorância e ódio que nos assola nesses anos mórbidos.

FRANCISCO MARSHALL

18 DE DEZEMBRO DE 2021
COM A PALAVRA

COM A PALAVRA

Depois de um ano no qual a covid-19 colapsou hospitais brasileiros, o médico infectologista Alexandre Prehn Zavascki, 47 anos, avalia que a vacinação e a continuidade de algumas restrições devem evitar novo pico de mortes no país em 2022. Haverá, no entanto, risco de piora se novas variantes do vírus surgirem. Filho do ministro do Supremo Tribunal Federal Teori Zavascki, falecido em acidente de avião em 2017, Alexandre é infectologista no Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), chefe da Infectologia do Hospital Moinhos de Vento e professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Após integrar o comitê de cientistas que assessorava o governo Eduardo Leite (PSDB) na tomada de decisões durante a pandemia, Zavascki abandonou o posto por discordância das medidas adotadas. Nesta entrevista, ele avalia o passado e projeta o futuro da atual crise sanitária no Estado e no país.

FECHAMOS O SEGUNDO ANO DA PANDEMIA DE COVID-19. AO OLHAR PARA TRÁS, O QUE O BRASIL ACERTOU E ERROU NESTE 2021?

O grande erro de 2021 veio do fim de 2020, quando houve relaxamento bastante grande com hospitalizações em baixa, mesmo sem vacina e com número de casos muito alto. Não tivemos a visão do Brasil como um todo, de que há deslocamento de pessoas. No Rio Grande do Sul, houve detecção da variante Gama e não tomamos nenhuma medida para dificultar a disseminação tão rápida. Aí tivemos aquela situação de fevereiro e março, que se estendeu até abril, uma verdadeira guerra nos hospitais, com colapso, falta de leitos e muitas mortes evitáveis. Esse foi o grande erro do ano. Mas, depois, se seguiu um acerto. Medidas de proteção, como o uso de máscaras e a restrição de número de pessoas em determinados locais, se estenderam por bastante tempo, ao contrário de outros países. Ao liberar o uso de máscaras, depois não se recupera se for preciso voltar atrás. Não houve grande estrago da variante Delta no Brasil pela grande aderência à vacinação, pelo percentual de pessoas que recebeu só uma dose e teve covid prévia, além de certo hábito criado por boa parte da população de usar máscaras.

O QUE SEGUIMOS ERRANDO NO COMBATE À PANDEMIA E PRECISAMOS MUDAR URGENTEMENTE?

Em nível nacional, a gente continua errando. Há contrainformação ou mensagem dúbia, como dizer que vacina é perigosa ou fazer deboche de quem tomou vacina e pegou covid. Em nível estadual, há uma falta de investimento em informação para a população. Poderíamos ter evitado muitas infecções novas se as pessoas soubessem que a vacina, neste momento, protege contra o agravamento, mas não necessariamente contra a infecção e a doença mais leve. A maioria dos médicos, inclusive, sequer sabia disso. Acreditavam que, vacinados, estariam completamente imunes a qualquer tipo de invasão do coronavírus. Há pouca conscientização sobre como se dão as formas de contágio e quais são as medidas de proteção. As pessoas não são orientadas a abrir janelas. Isso é algo tão simples e que poderia fazer efeito enorme.

COMO O SENHOR AVALIA A GESTÃO DO MINISTRO EDUARDO PAZUELLO E A DO SEU SUCESSOR, MARCELO QUEIROGA, NESTE ANO?

A do Pazuello foi péssima. Era um ministro sem nenhum conhecimento técnico e que não teve a postura que se esperaria para um ministro de Estado em uma pasta tão importante no meio de uma pandemia. A CPI inclusive investigou a questão de colocar visões ideológicas da equipe governante acima dos interesses da população. Havia a expectativa de que o Brasil seria um caso de sucesso de vacinação no mundo, mas houve claramente um obstáculo para o início da vacinação. Em relação ao Queiroga, inicialmente se poderia esperar que ele, por ser médico, teria noção maior do impacto de certas medidas. Mas vimos que ele enfrentou bloqueios por uma corrente ideológica e não técnica que se instalou no Ministério da Saúde. Vemos, mais recentemente, uma adequação cada vez maior a essa corrente ideológica, inclusive com discurso pobre e agressivo. Isso no país que, neste ano, mais sofreu com mortes pela doença.

O SENHOR ENTENDE QUE O BRASIL FOI O PAÍS QUE MAIS SOFREU NESTE ANO NA PANDEMIA?

Sim, o Brasil foi o país que mais sofreu. A Delta, na Índia, foi algo muito impactante, mas o Brasil sofreu por muito tempo. Somente na segunda metade do segundo semestre é que conseguimos realmente respirar com mais tranquilidade. O impacto daquela onda de março se estendeu até agora, não só pela covid, que matou muita gente, mas porque desestruturou serviços hospitalares e gerou demanda enorme de outras doenças. Impactou até na rotatividade de profissionais da saúde.

QUAL SUA AVALIAÇÃO SOBRE A GESTÃO DA EPIDEMIA NO RIO GRANDE DO SUL?

Por um tempo, participei do Comitê Científico do governo do Estado. Mas, no fim de 2020, vi que, embora houvesse pessoas excelentes, coordenadas por uma pessoa muito capacitada e que sabia ouvir, o (secretário Luis) Lamb, isso não chegava ao poder decisório. Praticamente nenhuma decisão passou pelo Comitê Científico antes de ser tomada. As decisões eram tomadas e só aí nos perguntavam: o que vocês acham disso? O Comitê Científico era comunicado depois. Aquele esquema não funcionou. Saí no início de janeiro de 2021. Depois, houve a inação a partir da detecção de Gama em Gramado. Deveriam ter agido diante dessa informação. Mas não. E assim foi a tônica do Estado: o comitê decisório não passava aprofundadamente por questões científicas. A volta às aulas, por exemplo: víamos exposição de um conhecimento primitivo da questão da transmissão, e isso deixava a todos nós, avaliadores, inseguros. Um bom acerto foi não ter aderido, por pressão, à liberação de máscaras. E ter feito liberação gradual de eventos. Ou seja, não foi tudo em uma canetada só. Essas foram pequenas mensagens, indiretas, de que a pandemia não acabou.

E EM PORTO ALEGRE?

Temos um prefeito que começou querendo liberar "kit covid"nos postos de saúde e terminou vacinando toda sua população. Houve uma transformação. Se alguém fez propaganda de boa informação foi a Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre, que divulgava informação sobre uso de máscara e da Delta, em linguagem acessível, o que não se viu em nível estadual e muito menos federal.

A ÔMICRON CHEGOU. NOSSA SITUAÇÃO VAI PIORAR? O QUANTO O SENHOR ESTÁ PREOCUPADO?

Uma coisa é a Ômicron se espalhar em uma população pobremente vacinada, como na África do Sul. No Brasil, temos um percentual bem maior de vacinação, incluindo de três doses, além de uma grande exposição prévia a uma variante que nenhum outro lugar do mundo teve como predominante. A proteção (natural) gerada pode ser benéfica contra uma nova variante. Agora que passaram mais semanas, vemos que, aparentemente, não se observa taxa de hospitalização tão grande com a Ômicron. Mas isso não quer dizer seja menos agressiva. Ela pode estar afetando uma população previamente infectada e/ou vacinada. Se a Ômicron chegar em uma população plenamente suscetível ou uma população de idosos e imunossuprimidos que já perderam sua proteção pelo tempo de vacinação, é possível que faça quadros graves.

A PFIZER ANUNCIOU QUE DUAS DOSES PROTEGEM CONTRA DOENÇA GRAVE, MAS HÁ MENOR PROTEÇÃO CONTRA A INFECÇÃO. COM A DOSE DE REFORÇO, A ÔMICRON É ANULADA. ISSO DEVE ACONTECER TAMBÉM PARA CORONAVAC, ASTRAZENECA E JANSSEN?

O dado de hospitalização é preliminar. Os dados publicados até agora são de que os níveis de anticorpos neutralizantes caem bastante com a Ômicron em pessoas que tomaram duas doses. A partir daí, você infere que as pessoas terão maior risco de serem infectarem, e isso a gente está observando: muitas infecções em pessoas vacinadas. Anticorpos neutralizantes são muito importantes para se prevenir a infecção, mas não necessariamente têm correlação com proteção para o adoecimento grave. O dado epidemiológico que vemos é que a proteção para o adoecimento, que depende de outros braços do sistema imunológico, como a imunidade celular, mantém-se preservada.

JÁ FOI DETECTADA NOVA LINHAGEM DA ÔMICRON. EM ALGUM MOMENTO PODE SURGIR UMA NOVA VARIANTE TOTALMENTE DIFERENTE E A PANDEMIA RECOMEÇAR DO ZERO?

O vírus erra (muta) nas cópias. Quanto mais cópias ele faz, mais erros vai ter. Precisamos de ações mundiais e de um maior número de pessoas vacinadas no menor tempo possível. O problema da vacinação escalonada é ter bolsões de não vacinados, onde o vírus se multiplica. Daqui a pouco, haverá uma nova variante que reduzirá a proteção de quem está vacinado.

QUANDO A PANDEMIA VAI ACABAR E VIRAR ENDEMIA NO BRASIL? FALAVA-SE QUE ISSO OCORRERIA NO INÍCIO DE 2022. COM A ÔMICRON, QUAL A SUA AVALIAÇÃO?

De certa forma, temos um nível endêmico, já, mas alto e muito suscetível a novos picos epidêmicos, não necessariamente de hospitalizações e mortes, porque temos boa parcela da população protegida, mas suscetível a surtos de infecção. Se pegarmos Porto Alegre, há bem menos vírus circulando, mas ele segue presente. Isso está configurando caráter endêmico. Só que nossa população está no primeiro ano da vacinação, não sabemos quanto tempo a proteção vai durar. Parte da população ainda usa máscaras. E como vai ser quando tirarmos as máscaras? É possível ter impacto epidêmico da Ômicron. Será na mesma intensidade de outros locais? Acho que será diferente.

ALGUNS CIENTISTAS DIZEM QUE PANDEMIAS VÃO SER RECORRENTES. O SENHOR ACREDITA NISSO? É ALGO JÁ PARA A ATUAL GERAÇÃO?

O principal fator para dizer isso é o comportamento do ser humano em sua relação com a natureza. A partir do momento em que você invade nichos não acostumados à presença do ser humano, há chances de encontrar viroses com potencial epidêmico e pandêmico. Quanto mais você invade a natureza, mais você se expõe. Isso já aconteceu na Bolívia, quando certos ratos invadiram espaços urbanos e passaram um vírus de febre hemorrágica para humanos. O desmatamento que ocorre na Amazônia, por exemplo, é um risco. Estima-se que haja arboviroses desconhecidas da gente. Por isso, não é questão de se vai ter pandemia, mas de quando vai ter. A influenza se rearranja com outros vírus, troca pedaços e faz um novo vírus. Vírus desconhecidos têm esse potencial.

CHEGOU A HORA DE SUSPENDER MÁSCARAS AO AR LIVRE? ESTUDOS MOSTRAM QUE A TRANSMISSÃO É MUITO PEQUENA NESSE AMBIENTE.

Não sei se chegou a hora, mas é muito mais tranquilo agora ficar sem máscara ao ar livre. Se você diluir pessoas ao ar livre, estar sem máscara é relativamente seguro em momento de baixa circulação do vírus. Mas não basta só estar ao ar livre. Se você estiver ao ar livre com ajuntamento de pessoas, você já perde muito do efeito benéfico. O problema é passar a mensagem inteira para a população. Quando você diz que pode tirar a máscara ao ar livre, as pessoas tiram a máscara e se aglomeram. Um estádio de futebol lotado com pessoas sem máscara não é um ambiente seguro. Um show musical ao ar livre não é um ambiente seguro.

O GOVERNO DO RIO GRANDE DO SUL TORNOU OBRIGATÓRIA A PRESENÇA DE CRIANÇAS EM ESCOLAS PÚBLICAS E PRIVADAS. EM PORTO ALEGRE, NÃO EXISTE MAIS EXIGÊNCIA DE DISTANCIAMENTO ENTRE AS CLASSES. O QUE O SENHOR ACHA DESSAS DECISÕES?

Foram decisões temerárias no sentido de proteção às crianças e a quem é mais suscetível no núcleo familiar. São medidas mais fáceis do que fazer as adaptações ao longo de dois anos para melhorar escolas. Mas isso não é omissão apenas do poder Executivo; é também do Legislativo. Você não viu proposição para levantar a necessidade das escolas, o que poderia ser ampliado ou não.

O CPERS FEZ UM LEVANTAMENTO.

Sim: não partiu do governo. Nos primeiros seis meses de 2020, quando se viu que a transmissão era predominantemente aérea, você tinha que ter implementado algumas medidas. Saiu um estudo na Suíça. Usando detectores de gás carbônico, compararam as escolas que tinham baixo nível de gás carbônico e aquelas que tinham mais. Como a gente elimina gás carbônico na respiração, se aumenta muito gás carbônico na sala significa que ela não está bem ventilada. As taxas de infecção foram muito maiores nas salas com alto nível de gás carbônico. No inverno suíço, muitos colégios tinham aberturas programadas da janela, apesar do frio, por alguns minutos. Alguém sugeriu isso aqui? Tirar o distanciamento de sala de aula significa aumentar a proporção de pessoas na sala, e isso tem impacto. Vi uma inação do governo para melhorar a estrutura das escolas. Não estou nem falando em colocar filtros de ar nas salas de aula, mas simplesmente abrir janelas, colocar um exaustor em salas sem janela. Ao longo de 2020 e 2021, poderia se ter feito isso. Não vai solucionar o problema das escolas, mas melhoraria.

O QUE O SENHOR ESPERA PARA 2022 EM RELAÇÃO À COVID?

Temos de aguardar o impacto da Ômicron. Espero eventualmente um surto epidêmico, mas não acredito que haverá surto de hospitalizações como tivemos em fevereiro e março. Vai ser difícil a transição de quando pode tirar a máscara, porque mesmo que tenhamos controlado o nosso ambiente o mundo todo não terá o mesmo nível de controle, então sempre haverá a possibilidade de entrada. Se está bem na minha região, mas fora dela está ruim, é preciso aumentar o sistema de vigilância epidemiológica. Deveríamos seguir testando mais gente para detectar casos novos. O Estado está se esforçando, o Lacen (Laboratório Central do Estado) faz um ótimo trabalho, mas a capacidade deles ainda é limitada. Precisamos ampliar em nível Brasil para fazer uma transição segura na retirada da máscara e termos uma vida mais tranquila. Vamos ver como será a transição.

PRECISAREMOS DE QUARTA DOSE?

É possível que sim. Mas eu não me arrisco a dizer se será a cada seis meses, pode ser até a cada dois anos. A contagem começou agora. Já aprendemos que a terceira dose faz uma diferença enorme. Mas não sabemos ainda quanto tempo dura essa diferença. Nosso ano dependerá do que acontecerá depois da terceira dose e como estará o ambiente à nossa volta.

O SENHOR É UMA DAS VOZES MAIS ATIVAS NO COMBATE À PANDEMIA, POSICIONANDO-SE NA ARENA PÚBLICA. APRENDEU ISSO COM SEU PAI, TEORI ZAVASCKI?

Até que não. O pai era uma pessoa muito discreta, sempre se manifestava pelos autos dos processos. Entrei no Twitter quando vi o mal que a desinformação causava. Escutava uma enxurrada de perguntas de todas as pessoas, muitos colegas, com questões muito absurdas. Pensei em botar em algum lugar o que pensava sobre alguma coisa. Eu queria divulgar informações corretas, conscientizar.

 MARCEL HARTMANN