sábado, 19 de fevereiro de 2022


19 DE FEVEREIRO DE 2022
ECONOMIA

FUGA DE CÉREBROS

Desde que os mesopotâmios criaram o primeiro calendário, por volta de 2.700 a.C., criamos também o hábito de, a cada virada de ano, renovarmos metas, planos e objetivos. Nesse espírito, ainda em janeiro, a Federasul reuniu dirigentes de suas mais de 170 entidades filiadas para ouvir as realidades regionais e projetar o ano. O que vimos foi uma reprise de demandas fundamentais para o aprimoramento da nossa competitividade: melhorias na infraestrutura, qualificação de mão de obra, redução de carga tributária, diminuição da burocracia.

Contudo, desta vez elas estão combinadas com um ar renovado de otimismo. Os altos índices de vacinação contra a covid-19 têm feito com que a variante Ômicron se alastre sem sobrecarga da rede hospitalar, deixando distantes as chances de novo fechamento de empresas. Além disso, por se tratar de ano eleitoral, são esperadas entregas e, quando menos, renovação de compromissos por parte da classe política com as pautas de quem produz.

O otimismo ampara-se, ainda, no fato de que, depois de muitos anos sem dinheiro, sequer para pagar salários, o governo gaúcho consegue não apenas retomar pagamentos em dia como também fechar 2021 com superávit, projetando investimentos.

Apesar do otimismo, sabemos que o Rio Grande do Sul ainda luta contra problemas históricos. Mesmo quando as diferentes etapas do Programa Avançar forem cumpridas - e acompanharemos para que isso ocorra -, teremos avançado somente uma parcela inicial. É a massa do bolo, quando falamos em competitividade e desenvolvimento. O recheio e a cereja dependem de outros fatores, como a evolução dos ecossistemas de inovação e a abertura para a Nova Economia.

É um desafio do Estado, mas também da nação. A retomada do desenvolvimento, necessariamente, passa por ciência, tecnologia e inovação. Países mais desenvolvidos já perceberam isso: dados do Índice Global de Inovação mostram que a Suíça investe 3,2% do seu PIB em CT&I. Lidera um ranking no qual o Brasil ocupa o modesto 57º lugar, com 1,15% do PIB aplicado na área.

Ocorre que, além de investir, performar bem em inovação também exige capital humano, algo que infelizmente estamos perdendo. Os salários em moedas mais valorizadas, como dólar e euro, atraem as mentes mais brilhantes. Enquanto isso, as escolas públicas não conseguem formar profissionais com o perfil exigido pelo mercado.

O modelo pedagógico meramente expositivo, utilizado em nossas salas de aula, está ultrapassado. As disciplinas não se conectam à vida real dos alunos e tornam-se desinteressantes. Falta instar os estudantes ao trabalho em grupo e à resolução de problemas reais. Não se trata de acabar com a aula expositiva, mas complementar o modelo atual com novas práticas, em que os alunos apliquem o conteúdo ao lado dos colegas. Essa escola do futuro também é digital e incorpora ao currículo temas caros à sociedade atual, como diversidade, sustentabilidade e empreendedorismo. O problema é que ela não sai do papel.

Ao contrário: impactada pela pandemia, a educação pública regrediu. A desigualdade social ficou escancarada durante as aulas online. Os filhos de famílias de baixa renda não tinham estímulo, tampouco acesso à internet. O resultado? Aumento de 171% na evasão escolar em todo o país, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua.

Uma nota técnica divulgada recentemente pelo Todos Pela Educação, com base nessa mesma pesquisa, ressalta que, entre 2019 e 2021, o número de crianças com seis e sete anos que ainda não sabem ler e escrever saltou de 1,43 milhão para 2,39 milhões - aumento de 66%. São dados que reforçam a necessidade de uma ampla reforma educacional.

Para um Estado e um país crescerem nos novos tempos, é preciso seguir um método. Requer investimento na educação das novas gerações e um enorme esforço para resolver grandes gargalos logísticos e de infraestrutura. Há de ter reformas que otimizem a máquina e evitem o desperdício de recursos, como a administrativa e a tributária, no campo federal. E focar na solução das demandas das pessoas, não em polarização política.

Temos o diagnóstico do problema e alternativas para a solução. Temos a disposição para enfrentar e a resiliência para não desistir. Temos força e otimismo. E o melhor: temos um ano inteiro pela frente para trabalhar para que essas mudanças se concretizem. Mas não haverá mudança sem a dedicação e o envolvimento de cada um de nós. Não percamos essa oportunidade!

Presidente da Federasul - ANDERSON TRAUTMAN CARDOSO


19 DE FEVEREIRO DE 2022
DRAUZIO VARELLA

ERVAS QUE MATARAM ENFERMEIRA SÃO NOVO TRUQUE DA MEDICINA NATURAL

Enquanto os médicos receitavam o que lhes dava na cabeça, a medicina fazia pouca diferença na vida dos doentes.

Durante séculos, médicos prescreveram sangrias, aplicações de sanguessugas, lavagens intestinais, vomitórios e poções preparadas com mistura de ervas e cascas de árvores, em nome da autonomia no exercício da profissão.

A medicina foi praticada dessa maneira desde os tempos das cavernas, quando a expectativa média de vida era de 20 e poucos anos. Milhares de anos mais tarde, no século 18, essa expectativa mal passava dos 30 anos, pouco mais do que no Império Romano. No início do século 20, atingia 40 anos, mas apenas na Europa desenvolvida.

A prática médica baseada em evidências científicas foi decisiva para elevar a expectativa para mais de 70 anos, na maior parte dos países.

Por incrível que pareça, a autonomia irrestrita dos médicos para receitar o que bem entenderem foi ressuscitada pelo mau-caratismo de alguns políticos para justificar o emprego de remédios inúteis no tratamento da covid-19, em pleno século 21.

São desprezíveis esses homens com intenções inconfessáveis, que pregam a liberdade dos médicos para receitar até o que não serve para nada, até o que pode fazer mal, mas que ao ficar doentes correm para os melhores hospitais de São Paulo e chamam os médicos mais afamados, para serem tratados em obediência às melhores evidências científicas.

Dias atrás, uma enfermeira teve um quadro de hepatite fulminante. Era uma moça de 42 anos, saudável, que perdeu a vida em poucos dias, mesmo depois de receber um transplante de fígado. Tomava por conta própria cápsulas contidas num frasco que trazia no rótulo "50 Ervas Chá Emagrecedor", indicado para diabetes, colesterol, para regularizar o intestino, combater a ansiedade e a celulite, além de emagrecer sem necessidade de dieta, segundo o fabricante apregoava.

A internet, terra de ninguém, o rádio e a TV estão infestados de anúncios de produtos como esse que se beneficiam de uma legislação ridícula, na qual são enquadrados como suplementos alimentares, portanto comercializados sem passar pela fase de estudos clínicos para demonstração de eficácia nem de avaliação pela Anvisa.

O argumento mais convincente para os incautos de boa fé que os compram é de que são "produtos naturais", portanto, se não fizerem bem, mal não farão.

O professor Raymundo Paraná, que coordena o grupo que recebe os casos de hepatite fulminante no Hospital da Universidade Federal da Bahia, identificou sete ervas hepatotóxicas entre as 50 da panaceia em questão que levou a enfermeira à morte. Tempos atrás, fui consultado por uma paciente com múltiplas metástases hepáticas que tomava essas cápsulas de 50 ervas, prescritas por um médico que se dizia "especialista em medicina natural".

Você perguntará, leitora incrédula, como é possível um cidadão ter passado seis anos numa faculdade de medicina sem ter adquirido um mínimo de formação científica a ponto de receitar ervas com componentes tóxicos para pessoas doentes ou saudáveis?

É possível, cara amiga. Os médicos que se dedicam a essas áreas pertencem a dois grupos: o primeiro é o daqueles que saíram da universidade sem noções básicas do pensamento científico; o segundo é o de espertalhões que farejam nesse campo um mercado mundial avaliado em cerca de US$ 20 bilhões anuais.

Nas faculdades particulares que proliferaram nos últimos anos para atender interesses políticos e comerciais - mas não apenas nelas -, milhares de profissionais foram graduados sem ter ouvido falar em estudos fase três, significância estatística e nas evidências científicas necessárias para indicar ou contraindicar qualquer tratamento.

Por essa razão, muitos médicos defenderam a famigerada "pílula do câncer" e os poderes curativos de João de Deus, e milhares deles prescrevem ainda hoje hidroxicloroquina, ivermectina e azitromicina, para pacientes com covid-19, sob o olhar acovardado dos conselhos de medicina. A ignorância dessa gente foi capturada pelos espertalhões que passaram a vociferar pela sagrada autonomia médica.

Ao médico deve ser assegurada a liberdade de apresentar ao paciente as opções de tratamento com eficácia demonstrada em estudos clínicos, para ajudá-lo a escolher a melhor opção. Liberdade para receitar remédios inúteis que apresentam efeitos colaterais ninguém pode ter, nem o companheiro de mesa no botequim.

DRAUZIO VARELLA

19 DE FEVEREIRO DE 2022
BRUNA LOMBARDI

ABISMO E ASAS

Uma amiga me ligou desesperada dizendo que não conseguia dormir direito e sentia uma crise de ansiedade por não saber o que vai acontecer.

Estamos todos confusos e perplexos diante de uma realidade que muda a cada dia, num misto de falta de perspectiva e de esperança, e a tentativa de compreender que caminho seguir num mundo que parecia de um jeito e foi ficando de outro? Mas pensando bem, alguma vez na vida a gente soube o que ia acontecer? Não, claro que não.

Mesmo com todas as previsões e expectativas, com nossos sonhos e desejos, o futuro sempre foi desconhecido pra nós. Sempre será. Isso não mudou. Vivemos sempre apenas o momento presente, e sabe Deus o que vai acontecer amanhã.

A vida é tecida de incertezas. A única certeza que temos diante de nós é que vamos lidar com o desconhecido. Temos que aprender a nos adaptar e não deixar que cada instante nos coloque num estado de suspensão.

Quando estamos em suspenso, é como se a gente prendesse a respiração. Tudo paralisa e a gente não consegue agir.

Perdemos a fé, nos deixamos invadir pela dúvida, e o medo nos domina. E é assim que a gente se desconecta de nós mesmos e perde o fio da esperança.

A vida é aquilo que passa enquanto a gente faz planos, dizia John Lennon. A vida não tem rascunho, não tem ensaio, cada minuto é uma estreia, dizia Bernard Shaw. Aconteça o que acontecer, seguimos fazendo planos, inventamos novos desejos e possibilidades. Fazemos orações, renovamos promessas e sonhos?

E a vida continua nos surpreendendo com o inesperado e acontecendo do jeito que ela quer.

A gente muda o que pode mudar e aprende a aceitar o que está fora do nosso poder. Precisamos abraçar o mistério, a surpresa de cada virada, cada movimento, sem deixar que os vendavais de visões negativas nos arrastar e derrubem.

Tem um poema meu que diz: "Você pode me empurrar pro precipício

Não me importo com isso ? eu adoro voar"

No meu livro Clímax, tem uma poesia que começa assim: "Crio asas no abismo e sobrevoo devagar e distraída?". E tem também uma frase no meu livro Jogo da Felicidade: "Se tirarem seu chão, invente asas".

Esse tema foi sempre presente, a ideia de reagir, resistir, de criar asas à beira do abismo me acompanha desde sempre.

Aconteça o que acontecer, por mais impossível que pareça, sempre se acha uma saída. Seja por instinto, intuição, lógica ou razão, seja por um milagre, a gente sempre acha uma solução.

Carrego a certeza que mesmo quando nos sentimos ilhados, sozinhos, isolados, abandonados, mesmo quando parece que não há horizonte no céu escuro, nós vamos achar um caminho. Porque sempre existe um caminho.

Sou uma incorrigível otimista, e pensar positivo me dá coragem. Perguntei para minha amiga em quantas beiras de abismo ela já pisou. Um monte, ela me disse. Pois é, e estamos aqui.

Na hora, sempre aparece coragem ou sorte, sei lá. Mas sem coragem, a sorte passa por nós e não a vemos.

Na hora, sempre aparecem asas que a gente nem sabia que tinha.

Abismos existem para que a gente aprenda a sobrevoar.

BRUNA LOMBARDI

19 DE FEVEREIRO DE 2022
J.J. CAMARGO

SOLIDÃO, UMA BIZARRA CAUSA DE MORTE

"A morte deveria ser assim: um céu que pouco a pouco escurecesse e a gente nem soubesse que era o fim" (Mario Quintana)

A expectativa de que a superpopulação e a instantaneidade dos meios de comunicação favorecessem a aproximação dos inquilinos do planeta não se confirmou.

E ninguém foi capaz de prever esta forma invulgar de solidão produzida pelo individualismo, que ergue muros altos para dizer aos vizinhos de porta que não têm nenhum interesse neles.

A intimidade beneficiada pela vizinhança na pequena comunidade, onde todos se conhecem, se perdeu a caminho da cidade grande, onde a insegurança pelo medo do desconhecido eliminou o estímulo à conquista de novos amigos.

E antecipou o isolacionismo que Drummond, genial como só, usou para definir velhice "como aquela fase da vida em que você admite que já tem todos os amigos que precisa".

Mas nada disso passa perto de explicar o ocorrido com Marinella Beretta, moradora de Prestino, na Lombardia, encontrada sentada em sua cadeira, dois anos depois da sua morte, aos 70. O que naturalmente reacendeu o debate sobre a dramática solidão dos idosos.

E o encontro do seu corpo mumificado não foi resultado da busca de um ente querido por algum familiar saudoso e carente de notícias. Nada disso: os bombeiros que a encontraram estavam apenas atendendo um chamado dos vizinhos que alertaram para o risco de queda de árvores no seu pátio negligenciado.

O que quer dizer que, passado esse tempo, a pobre Marinella continuava não fazendo falta a ninguém. Talvez ela estivesse pensando nisso quando a morte interrompeu o simulacro de vida que deixaria como único fato marcante esta história, relatada pela imprensa italiana com dois anos de atraso, e que se não fosse tão bizarra nem isso teria merecido.

"Esta morte solitária de Marinella fere as nossas consciências", admitiu a ministra da Família, Elena Bonetti.

Infelizmente, o ocorrido na Itália, um país onde 40% das pessoas acima de 75 anos de idade vivem sozinhas e, em igual porcentagem, não têm a quem recorrer em uma emergência, tende a se repetir à medida que prospere a longevidade sem utilidade, a maior usina geradora de solidão, já reconhecida como doença, com Código Internacional de Doenças (CID Z60.2) e tudo.

Fernando Pessoa definiu a morte como "a curva da estrada. É não ser mais visto". Mas a misteriosa vida invisível de Marinella por trás da sua porta fechada não cabe em nenhum modelo imaginável de abandono. E nos deixa uma terrível lição, porque, como advertiu Il Mensaggero, "a grande tristeza não é que não tenham percebido a sua morte, mas não a terem notado enquanto ainda estava viva".

J.J. CAMARGO

19 DE FEVEREIRO DE 2022
FLÁVIO TAVARES

LEGAL, MAS

Na sociedade moderna, a vida é regida por leis, e desviar-se delas implica punição, seja de que tipo for - moral ou material. Assim, juízes e tribunais definem os "atos legais", como nesta semana em que o Supremo Tribunal Federal começou a julgar "a legalidade" do fundo de R$ 4,9 bilhões a ser distribuído aos partidos para a próxima eleição de outubro.

A "legalidade" de algo, porém, é apenas uma convenção estabelecida por nós, humanos, mas que pode ser ilegítima ou imoral e antiética em si mesma. Na Alemanha nazista, o extermínio de milhões de judeus e outros "indesejáveis" (comunistas, homossexuais e deficientes) era legal, pois se amparava nas leis raciais.

Mas eram ilegítimos e imorais em si e são recordados só como fato histórico a não se repetir. Com o exemplo, volto ao tema que o STF começou a julgar a pedido do Partido Novo.

Os R$ 4,9 bilhões, fixados por deputados e senadores, serão distribuídos aos 33 partidos políticos para financiar a propaganda eleitoral. No mundo inteiro, os partidos se sustentam com as contribuições de seus afiliados ou adeptos, que - assim - comprovam materialmente que defendem uma causa ou um programa. Entre nós, porém, os partidos políticos viraram meros aglomerados de gente em busca de notoriedade e poder pessoal. Ou, até, em catapulta para urdir negociatas entre o setor público e o privado.

No Brasil, troca-se de partido como se muda a camisa suada no verão atroz. O presidente Bolsonaro, por exemplo, passou por oito diferentes partidos após deixar o Exército.

Agora, revela-se que o governador Eduardo Leite, depois de perder as prévias de candidato presidencial pelo PSDB, está em busca de novo partido.

Poderá ir para o PSD de Gilberto Kassab ou a outro, como se, em política, tudo fosse um jogo de vantagens pessoais.

Agora, estes partidos receberão R$ 4,9 bilhões para esbanjar na eleição de outubro. Dois anos depois, no pleito municipal, outros bilhões. Tudo será legal, mas ilegítimo e imoral num país com mais de 14 milhões de desempregados e em plena pandemia.

O presidente Bolsonaro segue com linguagem confusa e atos inexplicáveis. Na visita a Putin, em Moscou, declarou-se "solidário à Rússia", sem entender que só se expressa solidariedade a quem é agredido, nunca ao possível agressor, que no conflito com a Ucrânia é o Kremlin.

Esta inversão de papéis mostra que Bolsonaro é coerente no erro. O que esperar de quem viu a covid-19 como "gripezinha" inofensiva?

FLÁVIO TAVARES

19 DE FEVEREIRO DE 2022
OPINIÃO DA RBS

FESTA DA UVA, CULTURA E PROGRESSO

Não faltaram adversidades para serem enfrentadas pelos imigrantes italianos que se estabeleceram na inóspita serra gaúcha a partir das últimas décadas do século 19. Aos poucos, a custo de muito suor, foram superando obstáculos, um a um. No decorrer dos anos, aqueles pioneiros e seus descendentes transformaram a região em uma das mais prósperas do Brasil. Criaram, especialmente em Caxias do Sul, um dos maiores e mais pujantes polos industriais do país. Mas, mesmo que o dinamismo das fábricas mova hoje grande parte da economia, a ligação com a terra e com a viticultura, na figura do colono, permanece como um emblema da identidade local.

A 33ª Festa da Uva, que se iniciou na sexta-feira em Caxias do Sul, simboliza de certa forma a suplantação de novos percalços. O evento, um dos mais tradicionais do país, com nove décadas de história e normalmente com edições a cada dois anos, deixou de ser realizado em 2021 devido à pandemia, mas agora volta com todo o vigor. Não bastasse a crise sanitária, a região também enfrenta os efeitos da estiagem, com uma quebra significativa da safra de uva, fonte de renda para milhares de agricultores e insumo para outras atividades, como a produção de sucos e a elaboração de vinhos.

Dificuldades, entretanto, existem para serem vencidas, mostra a trajetória dos imigrantes. A realização da Festa da Uva, portanto, deve ser vista como a celebração da resiliência, da reabertura plena da economia graças ao avanço da vacinação e da possibilidade de a comunidade retomar a convivência, enquanto cultua a tradição e, ao mesmo tempo, oportuniza a prospecção de novos negócios para manter a marcha do progresso. Não à toa, o tema da edição deste ano é Juntos Outra Vez.

Cerca de 800 mil pessoas, entre a população local e turistas, são esperadas ao longo do evento até 6 de março, data do encerramento. Protocolos rígidos para evitar contaminações pelo novo coronavírus foram adotados. Tudo para garantir maior segurança para os que forem se deleitar com os desfiles, as atrações nos pavilhões, as manifestações culturais, as delícias da gastronomia típica e, especialmente, a doçura das uvas distribuídas para os visitantes.

Um episódio memorável da Festa da Uva foi a primeira transmissão a cores da televisão brasileira. Completam-se, neste sábado, 50 anos desse marco da comunicação nacional. Na época, os brasileiros acompanharam um desfile pelas ruas de Caxias do Sul. Era, então, um encontro entre a representação dos costumes dos colonos com a nova tecnologia que começava a chegar aos lares do país. Assim foi, é e será um dos mais importantes eventos do Estado, com o congraçamento entre a alegria, a tradição, o espírito empreendedor e o futuro.


Navegue no mar da ciência

Louco. A condição atribuída à Charles Darwin, quando o naturalista propôs que o homem seria a adaptação do macaco, é também uma acusação dirigida ao professor gaúcho Jair Putzke. Doutor em biologia, o morador de Vera Cruz, no Vale do Rio Pardo, transformou parte dos seus 50 hectares de terra no que chama de um centro educacional sobre a história da evolução humana. E assim como Darwin, que navegou a bordo do navio HMS Beagle, o estudioso divaga por sua própria embarcação, réplica da utilizada pelo britânico na primeira metade do século 19.

- Eu quero mostrar a dificuldade que nós enfrentamos para fazer ciência hoje, pois sem ser um pouco louco não há grandes descobertas - compara o docente, de 52 anos de idade.

Darwin deixou a Europa a bordo do Beagle em 1831. Por cinco anos percorreu países das Américas, África e Oceania. Essa viagem foi fundamental para ele elaborar a teoria da evolução. O barco de Putzke foi erguido em 2021, seguindo a mesma planta do histórico irmão mais velho. Mas não tem estrutura para ser colocado na água. Além da meta central, de despertar outro maluco para o universo da ciência, Putzke quer conscientizar sobre os cuidados com o meio ambiente.

O amplo terreno onde está o barco oferece ainda visita a uma linha do tempo do nosso planeta: dinossauros construídos à mão se misturam a um painel de telefones celulares e câmeras fotográficas de diversas gerações, entre outros itens. O HMS Beagle e as peças que remetem a um museu antropológico foram construídos apenas com recursos próprios, garante Putzke. Há planos de transportar a embarcação até a Universidade Federal do Pampa, onde ministra Botânica.

As visitas ao sítio podem ser agendadas diretamente com o professor, no número usado exclusivamente para WhatsApp: (51) 9-9992-0799.

TIAGO BOFF 


19 DE FEVEREIRO DE 2022
INFORME ESPECIAL

Dona da churrasqueira

Clarice Chwartzmann aprendeu a dominar os espetos com o pai, Nahum. Rodeado de mulheres em casa, em Passo Fundo, o comerciante e assador oficial da família de quatro filhas escolheu a menina serelepe (desde sempre vidrada na churrasqueira) como ajudante. Na adolescência, ela já dominava a técnica que, três décadas mais tarde, transformaria em profissão. Clarice é professora de churrasco e seu público, veja só, é feminino.

- A ideia de trazer as mulheres para dentro desse reduto masculino surgiu em 2014. Na época, nenhuma das minhas amigas fazia churrasco, e eu achava que isso tinha de mudar. Não queremos ser melhores do que os homens. Queremos apenas poder fazer, de igual para igual - diz Clarice.

Com o projeto "A Churrasqueira", a chef formou cerca de duas mil assadoras Brasil afora - mulheres jovens, maduras, divorciadas, casadas, solteiras, mães e avós. Desmistificou a tarefa e provou que há espaço de sobra para todos (e todas) ao redor do braseiro.

Em 2019, mudou-se para São Paulo. Levou consigo a paixão pela carne e conquistou espaço. Entre outras peripécias, foi jurada no quadro É de Casa na Brasa, do programa É de casa, da TV Globo, e do Cozinheiros em Ação, do GNT, onde também participou do Saia Justa e do Tempero de Família, cozinhando com Rodrigo Hilbert. Passou a ensinar o que sabia em eventos, palestras e consultorias.

Com a pandemia, os cursos pararam, mas a trégua está com os dias contados. A partir de março, Clarice retoma o calendário de aulas na capital paulista e, é claro, aqui em Porto Alegre.

- Meu foco é receber mulheres que queiram ser independentes, dominar o fogo e conhecer de verdade o que estão fazendo, com propriedade e segurança - resume a assadora.

Clarice será jurada, neste sábado, do Paleta Atlântida, o maior churrasco à beira-mar do mundo, na praia homônima, em Xangri-lá. Ah, e para saber mais sobre os cursos, é só acessar o site clariceachurrasqueira.com.br ou o perfil @achurrasqueiraoficial no Instagram. Em Porto Alegre, a aula será no dia 23 de março e terá, entre outros tópicos, ensinamentos sobre como fazer fogo, que carnes comprar e como saber o ponto certo dos cortes.

Apesar do populismo autoritário, a democracia vai triunfar em 2022.

EDSON FACHIN

Ministro do STF e do TSE, que assume a presidência da Corte eleitoral na terça-feira.

Mantivemos nossa agenda, por coincidência ou não, parte das tropas deixou a fronteira.

JAIR BOLSONARO

Presidente da República, durante visita a Moscou, após a Rússia afirmar que estaria retirando parte de sua força militar das proximidades da Ucrânia.

Estamos vendo o aumento da ocupação de leitos por crianças aqui no Estado e baixa adesão de vacinação. Não podemos aceitar.

EDUARDO LEITE

Governador do Estado, sobre a mobilização do chamado Dia C de vacinação infantil contra a covid-19, neste sábado.

Muitas vezes me perguntam se estamos em uma nova Guerra Fria. Minha resposta é que a ameaça à segurança global agora é mais complexa e provavelmente maior do que naquela época.

ANTÓNIO GUTERRES

Secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), sobre as tensões relacionadas à possibilidade de a Rússia invadir a Ucrânia.

Obrigado por me receber de novo em casa.

ROGER MACHADO

O técnico, ex-jogador do clube, volta a ser treinador do Grêmio.

Tenho oito pessoas da minha família desaparecidas desde terça-feira.

CRISTIANE GROSS DA SILVA

Gaúcha moradora de Petrópolis (RJ), onde fortes chuvas causaram mais de uma centena de mortes.

O mais importante é a movimentação econômica que este projeto deixará. O efeito multiplicador será o seu maior legado.

JAIME LLOPIS

CEO do Grupo Cobra no Brasil, sobre a construção de termelétrica e terminal de regaseificação em Rio Grande, um investimento de R$ 6 bilhões.

JULIANA BUBLITZ

sábado, 12 de fevereiro de 2022


12 DE FEVEREIRO DE 2022
FÍNDI DO CLUBE DO ASSINANTE

Para ver e saborear

Nem só de hortênsias vive a serra gaúcha: há mais de 70 anos na região, a Vitivinícola Jolimont adiciona videiras à paisagem local. Uma das pioneiras na produção de vinhos finos e artesanais no Rio Grande do Sul, a vinícola conta com 27 hectares cultivados a 830 metros de altitude, no Vale do Morro Calçado, em Canela.

O ambiente, com seu solo pedregoso e profundo, proporciona uma exposição geográfica privilegiada para as uvas, com incidência de raios solares desde as primeiras horas da manhã até o pôr do sol, o que favorece a maturação homogênea dos frutos. "Mais que isso, desse Terroir do Vale do Morro Calçado nasce o segredo da identidade de um vinho nobre, de sensação inexplicável, revelado somente no paladar", garante a Jolimont aos clientes.

A vitivinícola convida os amantes de vinho a apreciarem tanto este sabor único quanto a beleza natural do local em que ele é produzido, em um passeio de enoturismo, disponível diariamente das 9h às 16h45min. Com degustação de vinhos e espumantes Jolimont (somente para maiores de 18 anos), o tour ainda apresenta a história da empresa e detalhes sobre o processo de produção das bebidas, que combina tradição e tecnologia.

Sócios do Clube do Assinante têm 20% de desconto nas entradas. Mais informações podem ser requisitadas pelo telefone (54) 99710-1375 (WhatsApp).


12 DE FEVEREIRO DE 2022
MARTHA MEDEIROS

Dentro dos teus olhos

Durante o pior da pandemia, em 2020, nos vimos pouco. Você, eu, nossos parentes, nossos amigos, quantos encontros presenciais tivemos? Reuniões por Zoom foram necessárias, aniversários foram festejados a distância, cada um no seu quadrado (mesmo!), mas vá lá, era o que tínhamos naquele longo "hoje" que ainda não virou "ontem", continua se arrastando. Quantas vezes, nos últimos dois anos, você esteve frente a frente com quem realmente importa?

Foi uma longa solidão. Para uns, insuportável, para outros nem tanto. Não tive problema com o isolamento. Escritor trabalha só, se aquieta em seu ninho. Afora a preocupação com os idosos da família e com o desconhecimento sobre o vírus, me defendi bem. Ao ser perguntada onde doía, eu respondia que doía quando lia as notícias, mas quase dormia tão bem quanto antes. Quase. Impossível não se sentir afetada pela quantidade de vezes que a palavra "morte" era enunciada e no clima pouco amistoso entre os "ele sim" e "ele não". Não costumo escrever sobre política, mas impossível se calar diante de tanto descompromisso com a saúde, então expus minha indignação e levei bronca de quem se sentiu ofendido pelas minhas opiniões.

Ontem recebi a notícia de que uma amiga desmaiou em casa, foi conduzida ao hospital, o estresse à levou ao chão. Esse esgotamento nos acomete de vez em quando, nossos "pregos" perdem o poder de sustentação e a gente vem abaixo, quem nunca passou por isso? Problemas familiares, emocionais, financeiros e zás! Caímos.

Cada um de nós precisa encontrar um meio de se reerguer.

Não imaginei que o meio podia ser este: voltei a fazer sessões de autógrafos e elas se tornaram ainda mais significativas. Depois de tanto tempo me relacionando online, através das plataformas digitais, voltei a enxergar as pessoas e a me encantar com a expressão de seus olhos. Os olhos. Com o uso das máscaras, ganharam ainda mais relevância, são dos olhos a responsabilidade de substituir o sorriso escondido, são eles que declaram "como eu gosto de você".

Voltei a me sentir querida e meus leitores voltaram a se sentir indispensáveis. O vigor da presença física e o sentimento declarado através do olhar fazem isso (estou exemplificando com a sessão de autógrafos, mas vale para todos os encontros). Os olhos trouxeram de volta o que perdemos durante nossa invisibilidade mútua. A gente reconhece que faz diferença para o outro no momento exato em que é visto. Eu dependo das palavras, gosto de ler e de ser lida, mas é através do contato visual que me sinto abraçada e acolhida de um jeito que voltou a ser possível.

Vamos trocar olhares? Dia 16, quarta, às 19h, autografarei os livros Noite em Claro Noite Adentro e A Claridade Lá Fora na Livraria da Travessa, em Ipanema. Se você estiver no Rio de Janeiro, te vejo lá.

MARTHA MEDEIROS

12 DE FEVEREIRO DE 2022
CLAUDIA TAJES

Golpistas em ação

É documentário da Netflix, mas também está, ou já esteve, em cartaz na vida da sua amiga, da sua irmã, talvez até na sua própria.

O Golpista do Tinder era um chinelão que se fazia passar por um bilionário russo chamado Simon Leviev para extorquir mulheres após o match no aplicativo. O que, por si, já parece uma contradição: se era bilionário, por que as vítimas entregavam dinheiro a ele?

Justamente porque fingia de ricaço. Dizia ele que precisava da bufunfa para se manter em segurança, mas que devolveria em pouco tempo, tão logo botasse as mãos em sua incalculável fortuna. O tipo de negócio garantido, proposto após alguns jantares caros, noites de amor e muita manipulação emocional.

A respeito de prejuízo: você já teve uma prima que precisou de dólares para o intercâmbio do filho, levou suas verdinhas, guardadas com sacrifício para uma viagem futura, e até hoje não devolveu? Ou uma amiga que, no auge do aperto, arrecadou suas economias e agora nem atende o telefone?

Pois a norueguesa Cecilie, a sueca Pernilla e a holandesa Ayleen, as três vítimas de Leviev, estão em situação bem pior. Juntas, as três transferiram milhões para ele. E enquanto o mequetrefe segue em liberdade, se dizendo inocente apesar das provas, as três continuam pagando as dívidas que contraíram nos bancos.

Não é novidade, muito menos um tipo de golpe exclusivo para enganar as moças. Há pouco, um jogador de basquete italiano descobriu que estava sendo extorquido havia mais de 10 anos por uma compatriota cinquentona que se fazia passar pela modelo brasileira Alessandra Ambrósio.

Um jumento, julgaram alguns. Um apaixonado, desculparam outros.

Sendo a carência a mãe de todas as roubadas, como bem definiu a escritora Clara Averbuck, ninguém pode dizer que está livre. A recomendação é nunca entrar no Tinder nos momentos de maior fragilidade - estratégia exatamente oposta a que se pratica em casos de pé na bunda.

Quem nunca?

Já tive um affair que dizia morar com a mãe doente e vivia precisando de apoio para os remédios dela, até que apresentou a conta de uma cirurgia particular que a genitora precisava fazer, e ele a nenhum para pagar. Sugeri procurar o SUS e bloqueei. Teve também o que comprou uma viagem de férias para a ex no meu cartão de crédito, o cara de pau. Caí fora assim que percebi a fria, mas passei meses entubando a excursão em suaves prestações. Outro queria me vender de tudo, de terrenos e móveis a carros, tudo supostamente dele, com grandes descontos e pagamento à vista. Mandei procurar a OLX.

Foi Cecilie quem primeiro divulgou o caso para um jornal norueguês, em 2019. Leviev, que, na verdade, é israelense e se chama Shimon Yehuda Hayu, fugiu para Atenas com um passaporte falso, foi preso, extraditado e, condenado a 15 meses de prisão em Tel Aviv, cumpriu cinco e acabou solto por conta do coronavírus. Promete que, em breve, vai contar a sua versão da história.

Esperemos para ver. Mas quem assistir ao documentário não vai ter muitas dúvidas, tal e qual o ministro Barroso, dia desses, ao comentar os eventos de 2016 no Brasil.

Foi golpe.

CLAUDIA TAJES

12 DE FEVEREIRO DE 2022
MAGALI MORAES

O copo-desejo

De repente, virou modinha. Só se fala no copo térmico Stanley, aquele de aço inoxidável com paredes duplas. Você não deve estar ligando o nome à pessoa (ou melhor, ao urso da marca). Escolher um urso polar pra mostrar que gela faz sentido. Ele ter uma coroa na cabeça, eu até entendo: coroa é realeza, elemento nobre, transmite qualidade. Agora ter asas, sei não, alguém voou longe. Urso de asas requer um certo poder de abstração. Mas isso é o copo original. Aquele que empodera e dá o recado "essa pessoa sabe das coisas". Como sempre, existem as versões mais baratas que prometem gelar. Me pergunto como fica o lado emocional. Dá prestígio ser #TeamStanley.

Esses dias, vi um bem faceiro na beira da praia. Um, não. Diversos. Desde que pensei em escrever sobre isso, comecei a prestar atenção e enxergo o tal copo por toda parte. O calor que está fazendo nesse verão certamente ajudou a criar a moda. Quem não gostaria de testar se a bebida permanece mesmo tanto tempo gelada, com o gelo intacto lá dentro? Onde tiver uma roda de gente brindando, a probabilidade é grande do amigo Stanley estar junto. Idem nas piscinas, quadras de esporte, campings, churrascos, pescarias e nas pias de banheiro pra quem sonha com uma água geladinha no meio da noite.

No mundo corporativo, há um verdadeiro fetiche por Stanley. Imagine gerentes e lideranças sem ganhar o seu no kit firma, em agradecimento a tanto suor e lágrimas? Dá justa causa. O poder do copo invadiu outras esferas da vida e até virou notícia. Você deve ter lido a história de um homem em Minas que esqueceu seu Stanley num quarto de hotel e só percebeu quando chegou em casa. Adivinha? Voltou 500 km pra buscar, e a água do copo continuava bem gelada. Notícia ou meme? Tem vários na internet. Quando a ostentação encontra o deboche, sai de perto.

Além do copo com e sem tampa, tem cooler, garrafa, caneca, cuia e até bomba de chimarrão. E você achando que urso só gosta de frio, hein? O da Stanley também esquenta. Será uma mensagem subliminar ao derretimento das calotas polares? Inclusive descobri que essa marca americana (onde a moda também estourou) entrou na América do Sul pela força dos mates e tererês. Pra cervejinha gelada, foi um pulo. O copo é febre no mundo inteiro, e há poucos anos teve sua fabricação interrompida. Nada como o combo influenciadores e redes sociais pra ressuscitar uma marca e criar desejo. A garantia vitalícia é outro forte apelo. Hoje em dia, o que dura a vida toda? Em tempos de amores líquidos, essa promessa dá um quentinho no coração.

INTERINA

12 DE FEVEREIRO DE 2022
FRANCISCO MARSHALL

QUEM MATOU JC?

Não falamos de um crime real, fato ocorrido em uma província romana, mas de narrativas criadas para propagar uma nova seita. Não há pistas na história ou na arqueologia, pois trata-se de um tipo de ficção literária, com argumento religioso repleto de folclore, fantasia e estratégias sociais. Há, todavia, elementos para se abrir a investigação do mais célebre deicídio da história: quem matou JC?

Os suspeitos são três. Primeiramente, os de sempre - judeus acusados por evangelistas. A condenação formal e execução, entretanto, é atribuída a um oficial romano, o segundo suspeito, Pôncio Pilatos. Por fim, a questão crucial: por qual razão foi executado quem se dizia filho de deus? Seria, como diz a fé cristã, um sacrifício - morreu por nós? Vejamos, sempre cientes de que não estamos tratando de história - de algo que teria acontecido, mas de literatura - algo narrado em textos ficcionais religiosos.

Estão em Mateus 27: 24-5 as palavras que se tornaram sentença de morte - não contra o personagem literário JC, imortal, mas contra judeus de verdade; Pilatos lava as mãos e declara-se inocente, diante do povo agitado (judeus? Há controvérsia), em cuja boca o narrador põe a frase: "O sangue dele sobre nós e sobre nossas crianças". O autor faz uma multidão clamar a culpa para si e para seus descendentes, algo insólito, mas que levou à maldição de sangue que cristãos cobraram e cobram de judeus ainda hoje. O mais antissemita dos evangelistas, João, complementou Mateus, esclarecendo a causa do ódio atribuído aos líderes judeus (5: 16-18): perseguiram Cristo porque este realizou atos durante o shabbath (cura milagrosa em Jerusalem) e porque vinculava-se ao Pai (Patér), equiparando-se à divindade. 

Nos Atos dos Apóstolos, ampliam-se essas acusações, que não têm provas, apenas convicção; os relatos são algo contraditórios e ao final deixam claro apenas um fato: os evangelistas queriam acusar os judeus. Provavelmente como estratégia para se posicionar diante do Império Romano, valendo-se de um antissemitismo que já vicejava em Roma. Isso explica por que Mateus limpou a barra para Pilatos, salvando o Império de uma culpa inata, pois a sentença foi proferida pelo oficial romano. Isso poupou cristãos de enfrentar o poder secular do Estado, formalmente relacionado à sentença, que poderia ser facilmente evitada, se assim quisesse um eventual oficial romano; do ponto de vista jurídico, Pilatos é o responsável pela morte de JC.

Lembremos, porém, que são escritos religiosos e que em tudo se trata da força e da autoria do que chamam Deus, e Cristo chama Pai. Em Mateus 26: 39, lê-se a célebre passagem que gerou a linda música de Chico e Gil: "Paizinho, se for possível, afasta de mim esse cálice. Todavia, seja não como eu quero, mas tu". E por assim querer, Jeová consumou para si o sacrifício do próprio filho, fazendo do deicídio também um filhicídio e esclarecendo que os judeus não podem portar a culpa da autoria maior, o Pai (Deus), sobre o destino de seu filho.

E nós renasceremos, sobre as cinzas dos antissemitas, erguendo um cálice com o sumo de Baco.

FRANCISCO MARSHALL

12 DE FEVEREIRO DE 2022
DRAUZIO VARELLA

DEZ RAZÕES PARA NÃO PEGAR A ÔMICRON

Numa época sem vacinas, quando aparecia uma criança com rubéola a mãe convidava as amigas para levarem as filhas para brincar com a doente. Era a estratégia para "pegar" uma doença de evolução benigna logo na infância, para evitar contraí-la numa futura gravidez, fase em que poderia causar malformação fetal.

Seria o caso de agirmos da mesma forma com a variante Ômicron? Se ela é tão contagiosa, não é provável que todos seremos infectados um dia? Não seria melhor pegarmos de uma vez essa variante menos agressiva, com menor risco de hospitalização, para ficarmos livres dessa pandemia que parece não ter fim?

Não é melhor, não, prezado leitor, aliás é uma péssima ideia, pelas seguintes razões:

Primeira: embora a Ômicron esteja associada a formas menos graves da doença, por não provocar comprometimento pulmonar extenso como as variantes anteriores, não será possível prever a evolução da covid em seu caso particular.

Segunda: nenhum de nós pode ter certeza de que nossa resposta imunológica será capaz de conter a multiplicação viral dentro de limites seguros. O número de internações hospitalares e de óbitos nos Estados Unidos continua aumentando apesar da alta prevalência da variante Ômicron que, em cidades como Nova York, ultrapassa 90%. O número de crianças e adolescentes hospitalizados diariamente, naquele país, é o mais alto desde o início da pandemia, em 2020.

Terceira: ainda que você não precise ser internado, não existe garantia de que a covid adquirida será uma tarde no parque. Não é agradável ter uma infecção que causa febre, dores musculares, cansaço intenso, cefaleia, tosse persistente, dor de garganta, coriza, dor de ouvido, perda de olfato e perversão do paladar, entre outros sintomas de intensidade variável.

O filho de uma paciente que tratei anos atrás passou o réveillon na Bahia. Voltou para São Paulo com covid - como tantos. Depois de dois dias, foi levado para o pronto-socorro com dor de garganta e de ouvido tão forte e rebelde, que precisou tomar morfina.

Quarta: as demais variantes provocam quadros com sintomas que costumam regredir depois da primeira semana. Levamos tempo para entender que alguns desses sintomas, ocasionalmente, persistem por semanas, meses e até mais, quadro que hoje chamamos de covid longa ou prolongada. Não há tempo de observação suficiente para ter certeza de que o mesmo não possa acontecer com a Ômicron.

Quinta: acompanho pacientes que tiveram covid em 2020. No decorrer de 2021, receberam duas doses de vacina, mais a dose de reforço e, ainda assim, foram infectados pela Ômicron e caíram de cama.

Esses casos acontecem porque todas as vacinas disponíveis foram testadas em estudos para avaliar a capacidade de evitar quadros graves, com hospitalizações e mortes. Nenhuma delas foi testada para evitar infecções pelo coronavírus, portanto pessoas vacinadas com as três doses ainda podem ser infectadas. A vantagem é que não irão parar nos hospitais.

Sexta: exposto à variante Ômicron, você poderá transmiti-la, ainda que esteja assintomático. Você se tornará um perigo ambulante para adultos não vacinados, pessoas de idade com comorbidades, crianças pequenas e todos os que tiverem sistema imunológico frágil.

Sétima: não há segurança de que, ao se expor, você será infectado pela Ômicron. A variante Delta ainda continua por aqui. E se você contrair uma variante mais agressiva?

Oitava: quanto maior o número de infectados, maior a probabilidade de surgirem novas variantes.

Nona: nós não sabemos se a imunidade adquirida pela infecção por ômicron persiste por muito tempo. Sabemos, no entanto, que variantes como Delta ou Beta induzem a produção de altas concentrações de anticorpos neutralizantes, mas que a duração da imunidade diminui com o passar dos meses. Por que seria diferente com a Ômicron? Por que razão a infecção por ela protegeria contra uma nova variante que, porventura, venha a surgir?

Décima: não faz o menor sentido contrair uma doença com o objetivo de adquirir imunidade quando existem vacinas seguras e eficazes que são capazes de obter esse resultado sem provocar doença nenhuma.

DRAUZIO VARELLA

12 DE FEVEREIRO DE 2022
J.J. CAMARGO

QUANDO OS PAPÉIS SE INVERTEM

Ele foi admitido no setor de medicina interna com sinais de infecção não controlada, com febre persistente e dor abdominal. Se um quadro infeccioso sempre assusta pela imprevisibilidade, quando esta situação é transferida para um paciente imunodeprimido o risco cresce exponencialmente. Pois esse cenário envolvia o Evandro, um homem de 50 e poucos anos, transplantado de rim aos 29.

Depois de uma melhora inicial com o uso de antibióticos, iniciou um quadro acelerado de septicemia, que, agora já se sabia, fora provocada por uma extensa diverticulite.

O quadro infeccioso generalizou-se e, nessa condição, o envolvimento pulmonar é uma complicação quase inevitável e associada a alta mortalidade.

Apesar do uso de doses crescentes de oxigênio por meio de máscaras de alto fluxo, o Evandro passou a exibir sinais de fadiga ventilatória, decorrente do esforço progressivo de manter-se respirando. Quando chegou ao limite, com queda temerária da oxigenação, a intubação tornou-se obrigatória. Ele, que até então se mantinha submisso às recomendações do intensivista, quis conversar com o especialista responsável pelo transplante e pelos vários anos de cuidados subsequentes.

A esta altura, o nefrologista, relator dessa história, fez um parêntese para comentar que usualmente tornava-se amigos dos pacientes pelo carinho que lhes dedicava, mas também e muito pela necessidade de acompanhamento perene, vivessem o quanto os dois, médico e paciente, vivessem. Depois de uma pausa, acrescentou que o Evandro era um paciente especial, por atributos de confiança, generosidade e gratidão ilimitados.

Com esse estado de espírito, o nosso doutor acelerou o passo para socorrer um dos seus queridos. Ao entrar na Unidade de Terapia Intensiva, encontrou o amigo que, apesar de arfante e sudorético, conseguiu sorrir ao estender-lhe a mão arroxeada.

Então inicia-se um diálogo que mistura em doses generosas confiança, angústia, desespero por continuar vivendo e medo de não conseguir:

- Meu querido doutor, tu achas que esta máquina vai me ajudar?

O medo de que já fosse tarde demais se diluiu na afirmação vigorosa:

- Claro que sim. Tu vais poder descansar, e com a oxigenação garantida teremos o tempo de ver os antibióticos funcionarem.

E então, com tudo explicado e coerente, veio a pergunta inesperada: - Doutor, e eu vou morrer?

Quem já viveu esta situação sabe o quanto custa manter a esperança, quando o som das palavras já não soa verdadeiro e o único impulso é abraçar. E foi isso que o Ivan Antonello, um desses médicos para ser copiado, fez. Mas ao sentir o corpo do amigo soluçando no abraço de náufrago, não conseguiu segurar o seu próprio choro. E então, como só pode ocorrer em relações humanas de intensidades proporcionais, inverteram-se os papéis. E o paciente assumiu o comando:

- Não chore, meu doutor. Lá atrás, quando falaram que meu rim não tinha jeito, sim, eu estava morrendo de medo. Afinal, eu só tinha 29 anos e dois filhos pequenos. Agora, vivido este tempo que o seu transplante me presenteou, meus filhos tornaram-se adultos autônomos, e um deles até me deu um netinho, o maior presente da minha vida. Então não chore, doutor, nós somos uma dupla de sucesso!

Quando a intensidade afetiva rompe a barreira de uma pretensa hierarquia, não mais surpreende que o paciente amoroso possa, no limite da gratidão, ser médico do seu médico.

J.J. CAMARGO

12 DE FEVEREIRO DE 2022
DAVID COIMBRA

A liberdade das ratazanas

Uma manhã, eu e o Bernardo saíamos do prédio em que morávamos, em Boston, e vimos, na rua, ao lado de uma floreira, uma gorda ratazana. Levei um susto. Esses ratos grandes, bem fornidos e ousados são mais frequentes em Nova York. Em Boston, até então, eu só havia visto pequenos e simpáticos camundongos. O Mickey.

No nosso prédio, eu tinha certeza, não moravam ratos. Era um prédio muito limpo e organizado, cuidado pelo ótimo zelador Julio, que era salvadorenho. O Julio vivia há mais de 30 anos nos Estados Unidos, e a maior parte desse tempo ele trabalhou no prédio. Formou família, tinha mulher, filhos e tudo mais. Era um americano, já.

Pois decidi que ia avisar o Julio da presença daquela ratazana. Ele certamente saberia o que fazer a respeito. Então, deixei meu filho na escola, voltei e, quando estava chegando, vi o Julio zanzando pela portaria. Cumprimentei-o e saí falando do rato, contei como o bicho era taludo e bem alimentado. O Julio me olhou, pensativo.

_ Ele estava na rua? Perguntou ..._ Sim! _ respondi. _ Bem aqui, na rua, em frente àquela floreira.

_ Então não posso fazer nada. Ele tem a liberdade de ir para onde quiser.

Fiquei perplexo com aquela súbita defesa do Julio do direito de ir e vir das ratazanas, mas não protestei. Entendi que faz parte da cultura americana e que o Julio a havia introjetado depois de tanto tempo morando no país.

Contei essa história no Timeline, da Gaúcha, nessa sexta-feira, para exemplificar como os americanos prezam a liberdade individual. É algo muito forte para eles, muito presente em tudo que fazem. Só que, curiosamente, isso não criou uma sociedade egoísta. Ao contrário: o americano respeita a liberdade individual do outro porque quer que a sua seja respeitada. Ele não vai falar alto no trem ou no ônibus para não dar ao outro a justificativa para falar alto também. Então, a sociedade é solidária no controle à liberdade individual de cada um, inclusive a dos ratos.

O principal trunfo que eles têm para conseguir essa façanha é a Constituição. Jung dizia que existem arquétipos que formam o inconsciente coletivo. Isto é: algo que toda uma comunidade absorveu como verdade sólida. A Constituição americana é assim. Ela está na cabeça de cada americano e dos estrangeiros que lá se radicaram, como o Julio.

Esse fio condutor da vida americana, ao mesmo tempo que mantém a sociedade dentro de regras, dá maiores possibilidades de liberdade, porque você sabe o que pode fazer e o que não pode. E, se você está dentro da lei, você tremula isso como um salvo-conduto. O indivíduo enfrenta o país inteiro, se preciso. Ou seja: os regulamentos que enquadram a vida do cidadão também lhe dão mais liberdade.

É uma façanha dos Estados Unidos. Maior do que ir à lua. Será que algum dia faremos igual?

DAVID COIMBRA