sábado, 19 de março de 2022


19 DE MARÇO DE 2022
J.J. CAMARGO

O QUE NÃO É PROGRAMÁVEL

"Nada na vida é programável, somos maleáveis como o vento: ora brisa, ora furacão." (autor desconhecido)

Os comportamentos diante de ameaças objetivas de morte são surpreendentes e imprevisíveis. E provavelmente nenhuma doença é capaz de provocar reações tão inesperadas e, às vezes, incongruentes quanto o câncer.

A insistência das escolas anglo-saxônicas de entregar, de chofre, e sem nenhum filtro de utilidade toda a informação, por mais cruel que ela seja, é anunciada com uma intenção nobre (se fosse completamente verdadeira) de dar ao paciente a oportunidade de exercer o decantado livre arbítrio. O que é cinicamente omitido, por conveniência, é o quanto essa atitude resulta da pressão dos advogados das companhias de seguro profissional, que sistematicamente recomendam que compartilhar com o paciente todas as decisões é minimizar o risco de demandas judiciais se as coisas não derem certo no futuro.

O temor histórico e a fantasia atávica de morte, variáveis em cada indivíduo, são fortemente influenciados por fatores como idade, sofrimento físico, qualidade de vida, reciprocidade afetiva, prole carinhosa e sensação de missão cumprida. A presença dessas condições, ou a ausência delas, determina, em grande medida, como reagiremos. E mesmo que as diferenças culturais imponham reações disparatadas, existe a tendência de estabelecer-se normas de conduta no manejo desses pacientes, de modo a assegurar-lhes conforto, controle da ansiedade e confiança na equipe médica.

Nesse sentido, a uniformidade da linguagem no grupo que assiste a um paciente com doença grave é decisiva para que nada do que se diga ou sugira inverta a corrente de confiança que deve prevalecer entre quem cuida e quem, desesperadamente, necessita ser cuidado.

Os médicos mais experientes não cansam de reportar as reações mais paradoxais dos pacientes diante, por exemplo, de informações estatísticas, uma prática muito usada em centros internacionais de oncologia, por médicos insensíveis que ignoram que, para o paciente, entre o 0% e o 100% não existem valores intermediários.

Afora essa desumanidade, é curiosa e imprevisível a reação dos pacientes diante de números, que em geral mais assustam do que tranquilizam. Já consolei paciente desesperada com a informação de que tinha 70% de chance de sobrevida depois de uma cirurgia, e ela, ignorando que poucos projetos da nossa vida pessoal (incluindo o casamento, o mais festejado dos projetos falíveis) têm um percentual tão alto de sucesso, chorava copiosamente, aterrorizada com a ideia de que ela pudesse cair no bloco infeliz dos 30%.

No outro extremo, um homem jovem, portador de um tumor raro e agressivo, voltou de uma consulta com especialista americano, por quem soube que com a combinação de quimioterapia associada à moderna imunoterapia ele tinha uma chance de 8% de estar vivo ao fim de cinco anos. E me confessou que estava constrangido: "Porque andei choramingando por aí, imaginando que a minha chance era zero".

Lembro de um paciente extremamente perspicaz, que, percebendo o quanto o seu quadro era grave, desviava do assunto sempre que pressentia que íamos falar da sua doença. Uma mensagem explícita: "Na impossibilidade de boas notícias, evitemos as notícias".

A oncologia, mais do que outras especialidades médicas, ensina que a esperança deve ser preservada mesmo quando a expectativa do paciente parecer irracional. O médico, com sensibilidade, deve ser mais do que um técnico que sabe todas as cifras. Deve conservar-se empaticamente atento às necessidades individuais, porque, sendo diferentes como somos, estamos mais propensos a insanáveis atropelamentos emocionais se formos tratados como iguais, obedecendo a essas normas rígidas que, recomenda-se, sejam por ora armazenadas naquele espaço vazio que oxalá seja preenchido por um coração no computador do futuro.

J.J. CAMARGO

19 DE MARÇO DE 2022
LEANDRO STAUDT

Quando carros rodaram com lenha

Durante a Segunda Guerra Mundial, automóveis começaram a circular no Brasil com estranhos tambores na traseira. O governo federal incentivou a instalação de equipamentos para rodar com gasogênio, gás obtido com a queima de carvão ou lenha. Os brasileiros conviviam com racionamento e elevação de preço da gasolina e do diesel.

Em 1939, o presidente Getúlio Vargas criou a Comissão Nacional do Gasogênio, vinculada ao Ministério da Agricultura. O objetivo inicial era promover o uso em tratores, caminhões e instalações fixas, além de incrementar fabricação de equipamentos e incentivar replantio de florestas. Os aparelhos deveriam ter certificado de registro na comissão.

O ministro da Agricultura, Fernando Costa, fez uma viagem entre Rio de Janeiro e Petrópolis, em janeiro de 1940, para mostrar a economia com a conversão dos automóveis. Em relação à gasolina, a viagem ficou 85% mais barata com o carvão. As propagandas dos fabricantes e instaladores dos equipamentos se tornaram mais frequentes nos jornais em 1942 e 1943, no auge da guerra.

O governo determinou que donos de frotas deveriam ter pelo menos um a cada 10 caminhões com gasogênio. Ônibus e tratores também receberam o kit, fabricado por várias indústrias nacionais. Dizendo que "utilizar gasogênio é ser patriota", a propaganda da marca Spagas oferecia um gerador com capacidade para 55 quilos de carvão, com rendimento de dois a três quilômetros por quilo. A autonomia era de até 165 quilômetros com uma carga, mas o motorista poderia levar mais carvão ou lenha para reabastecer o veículo durante a viagem.

Em Porto Alegre, a tradicional fábrica de cofres Berta produziu aparelhos para veículos. Em 1943 e 1944, foram realizadas nas ruas da cidade corridas com carros movidos a gasogênio.

Em relatório de 1945, o governo federal apontou que mais de 30 mil veículos eram movidos a "gás pobre", como chamavam na época. Metade no Estado de São Paulo. Além do alto custo, motoristas reclamavam que os veículos perdiam potência e rendimento. Com o fim da guerra, o mercado do petróleo foi regularizado. Em setembro de 1948, a Comissão Nacional do Gasogênio foi extinta.

LEANDRO STAUDT

19 DE MARÇO DE 2022
DAVID COIMBRA

david.coimbra@zerohora.com.br

Vingança na quarentena

- Te prepara - ela avisou, os olhos chamejando de ódio vermelho. E, depois de abaixar a voz, como se falasse consigo mesma, anunciou, entre dentes:

- Eu vou me vingar.

Ele estremeceu. Sentiu que ela falava sério. Não era uma ameaça vã: ela ia se vingar.

- C-como assim? - gaguejou.

- Te prepara! - ela repetiu.

E trancou-se no quarto.

Maldito coronavírus! Maldito chinês comedor de morcego! Se não fosse a quarentena, ela não descobriria seu pequeno deslize. Havia sido pequeno mesmo, minúsculo, uma única vez com uma colega, uma noite antes do confinamento. Uma aventurinha, pra que fazer caso com isso?

Até então, a colega havia sido discreta. Mandava algumas mensagens por whats, nada mais. Só que, um dia, eles tiveram

de fazer uma reunião online, e ela comentou, quando a imagem dele apareceu na tela do computador:

- Que bom te ver. Estava com saudade...

Só isso. Mas foi o que bastou.

A mulher dele ouviu lá da cozinha, desconfiou e, na primeira oportunidade, vasculhou seu celular. Encontrou uma ou duas mensagens comprometedoras, pressionou-o e ele, como se estivesse sentado na saleta de interrogatórios da Polícia Federal, confessou:

- Foi só uma vez. Juro. E não tem importância nenhuma...

Mas não adiantou. Ela jurou:

- Eu vou me vingar.

E agora estava lá, trancada no quarto, enquanto ele batia na porta e implorava:

- Abre, amor... Abre... Vamos conversar...

Ela não abria nem respondia. Ficou em silêncio por mais de uma hora. Quando finalmente abriu a porta, ele levou um susto: ela estava toda arrumada, equilibrada sobre saltos altíssimos, dentro de uma minissaia curtíssima, os cabelos soltos, toda pintada, a boca carmim, os olhos faiscando. Estava linda, ele tinha de admitir. Linda.

- O que é isso? - ele perguntou, aflito. - Vou sair. 

- Sair? Como assim? Na quarentena? Vai aonde? Ela não respondeu. Marchou em direção à garagem, ondulando feito a serpente do Jardim do Éden. Ele a seguia e gritava:

- Espera! Espera! Vamos conversar! Eu te amo! Vamos conversar!

Ela continuou muda, muda entrou no carro e muda se foi, desaparecendo no escuro da rua, enquanto ele corria atrás, aos berros: - Não! Não! Eu te amo!

Voltou para dentro de casa com o coração batendo na garganta. Para onde ela teria ido, vestida daquele jeito? À casa de um amante?

Será que ela tinha amante? Não... claro que não... Ela era uma mulher fiel. Mas agora...Depois de saber que havia sido traída... Agora... Ela ia se vingar! Ia arrumar outro! Mas quem? Quem estaria disponível na quarentena?

Ele começou a pensar nos amigos e nos conhecidos. Estremeceu ao lembrar de um colega de trabalho dela, um fortão, um maldito rato de academia. Eles o encontraram na praia, no verão. O cara estava sem camisa, tinha grandes bíceps e pequena barriga. Ele viu que ela olhava para o peitoral do desgranido enquanto conversavam. Ela o procuraria, óbvio. O cara era solteiro, não a rechaçaria de jeito nenhum. Além disso, ela estava sedutora naquela minissaia, qualquer homem a desejaria. Oh, não! NÃO!

Ele ligou para o celular dela. Em vão - estava fora do ar. Começou a mandar mensagens:"Te amo. Volta pra casa, por favor.

Vamos conversar". Enviou mais de 20 mensagens. Ela nem sequer leu. Ele caminhava de um lado para outro da casa feito um tigre na jaula, sem saber o que fazer. Finalmente, correu para a garagem, pegou o carro, saiu, cantando pneu. Não tinha ideia de onde ela podia ter ido. Não havia bares abertos, a cidade estava sob isolamento. Ela devia ter ido à casa de alguém. Mas quem? Decidiu rodar a esmo pela cidade, para verse encontrava o carro dela. Foi o que fez. Percorreu praticamente

todos os bairros, rondou motéis, foi ao Centro, e nada. Nada. Se ao menos soubesse onde morava o rato de academia...

Depois de horas, voltou para casa com a tênue esperança de que ela tivesse retornado. Entrou correndo, chamando por seu nome, foi ao quarto. Nada...

Ela estava se vingando naquela hora. Bem naquela hora. Imaginou-a nos braços do fortão, imaginou-a sendo possuída, gemendo:

- Meu marido não faz assim...CRISTO! Atirou-se na cama de bruços. E chorou. Chorou feito uma adolescente rejeitada.

- Eu sou um corno! - uivava. - Um corno! Ele não dormiu naquela noite. Ela, sim.

Dormiu um sono sereno, acordou bem disposta, tomou um banho e sentou-se à mesa do café. Olhou para os pais, que a encaravam com certo estranhamento:

- Não contem pra ele que dormi aqui, certo? - Certo - concordou a mãe. - Certo - concordou o pai.

Então, ela voltou para casa. Chegou perto das 10 horas. Abriu a porta e o viu de pé, no meio da sala, descabelado, com olheiras, roto como um mendigo. Ele caiu de joelhos a seus pés.

- O que você fez? - berrou. - O que você fez?

- Me vinguei - ela disse e, antes de rumar para dentro da casa, acrescentou: - e não me pergunta nada, se quiser que eu fique. Nunca mais quero falar nisso.

Ele obedeceu. Nunca mais perguntou nada sobre aquela noite. Mas a vingança ainda dói. Como dói.

Texto originalmente publicado na edição de 23 e 24 de maio de 2020 - DAVID COIMBRA


19 DE MARÇO DE 2022
FLÁVIO TAVARES

O VULCÃO

O dia a dia não é só a sucessão de tragédias que começa na pandemia e chega à invasão da Ucrânia, abrindo caminho à destruição nuclear. Há, também, atos a festejar. Aqui, a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) decidiu arquivar o pedido de licença para cavar uma mina de carvão a céu aberto em terras de banhado à beira do Rio Jacuí, a 14 quilômetros de Porto Alegre.

A Fepam julgou insatisfatórias as alegações sobre a segurança do empreendimento apresentadas pela mineradora Copelmi para abrir a chamada Mina Guaíba. Antes disso, a juíza federal Clarides Rahmeier tinha declarado a "nulidade" do processo de licenciamento. Em 2019, a Fepam pediu novos detalhes sobre a alegada segurança da futura mina, mas a mineradora nada informou.

Limitou-se a alardear que extrairia mais de 166 milhões de toneladas de carvão, 422 milhões de metros cúbicos de areia e 200 milhões de metros cúbicos de cascalho, ocupando 4.373 hectares, equivalente a 4.370 campos de futebol, na maior mina a céu aberto da América Latina, hoje zona agrícola.

O próprio "estudo de impacto ambiental" apresentado pela mineradora, porém, revela que cada explosão liberará 416 quilos de poeira por hora. Em três explosões diárias, nos 23 anos da mina, seriam 30 mil toneladas do terrível material particulado caindo pela redondeza, equivalente a duas bombas atômicas de Hiroshima.

Essas partículas finas, sem cheiro, contêm material pesado, como cádmio, que provoca câncer. Os persistentes ventos espalhariam o material por áreas distantes. Situada em terras de brejo à beira do Rio Jacuí, com as chuvas, em poucos anos, a mina transformaria o Guaíba em um estuário tóxico de águas pestilentas.

Arquivar a licença é um passo adiante, mas não põe fim ao horror. É como um vulcão silencioso, que volta a irromper e destrói tudo. A empresa segue com o "direito" de explorar. Abolido mundo afora, aqui o carvão tem, até, subsídio federal e pode voltar a atacar, como vulcão ativo.

FLÁVIO TAVARES

19 DE MARÇO DE 2022
OPINIÃO DA RBS

ÚTIL, MAS SÓ UM PALIATIVO

Os indicadores relativos a janeiro, divulgados nos últimos dias, atestam que o país iniciou o ano com o pé esquerdo. Os dados do IBGE até apontaram um crescimento do varejo de 0,8% sobre dezembro, mas os serviços - o setor de maior peso - tiveram uma variação negativa de 0,1%, frustrando expectativas do mercado. A indústria tombou 2,4%. O resultado detectado pelo Banco Central foi um recuo no mês de 0,99% no Índice de Atividade Econômica (IBC-Br), considerado prévia do PIB, também decepcionando analistas.

É positiva a queda da taxa de desemprego no trimestre encerrado em janeiro para 11,2%, a menor para o período desde 2016, mas os trabalhadores seguem perdendo poder de compra. A renda média, em um ano, caiu quase 10%, mostrou o IBGE. Mesmo os ocupados, portanto, enfrentam aflições diárias ao constatar que seus ganhos são cada vez menos capazes de suportar o custo de vida elevado pela inflação, acima de 10% em 12 meses.

Toda essa avalanche de números não deixa dúvida de que medidas deveriam ser tomadas pelo governo federal para dar algum amparo, especialmente aos mais humildes. Legitima-se, portanto, o pacote anunciado na quinta-feira pelo Planalto para tentar alentar a economia, mesmo que de efeito bastante limitado. Além da nova rodada de saques extraordinários do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), de R$ 1 mil por trabalhador, o Executivo anunciou a antecipação do 13º de aposentados e pensionistas do INSS, a criação de um programa de crédito para microempreendedores e a ampliação da margem e do público que poderá acessar empréstimos consignados.

A necessidade, nesse caso, se soma à conveniência eleitoral. É nítida e lógica a tentativa do presidente Jair Bolsonaro de tentar mostrar proatividade para tirar o Brasil da estagnação e assim recuperar intenções de voto nas pesquisas, em busca da renovação do mandato. Isso não anula, entretanto, o dever do governo de fazer o que estiver ao seu alcance para reverter a predominância de previsões nada otimistas para 2022. Os eleitores, por outro lado, deverão saber julgar o governo não apenas por providências pontuais, mas pelo conjunto da obra - como deve ser a análise de qualquer governo.

Conclui-se, desta forma, que o pacote do governo é somente emergencial e paliativo. Em relação ao INSS, é apenas uma antecipação de recursos que entrariam depois no bolso dos beneficiários. O saque do FGTS já foi usado por Michel Temer e pelo próprio Bolsonaro para gerar demanda maior. O resultado agora é mais incerto, porque a inadimplência também está elevada. De qualquer forma, seja para consumir ou quitar compromissos, espera-se que os brasileiros favorecidos saibam fazer bom uso do dinheiro extra.

Em breve, começarão a ser conhecidos os números da atividade relativos a fevereiro, e depois, os de março, já com os impactos da guerra no Leste Europeu. Não se espera nada empolgante. As soluções que o país precisa são estruturais. Capazes de disseminar efeitos positivos ao longo do tempo e mitigar choques externos. Será auspicioso, por exemplo, se o Senado der continuidade à tramitação da reforma tributária. O texto da proposta que simplifica as incidências sobre o consumo e a produção e cria o imposto de valor agregado (IVA) seria votado na quarta-feira pela Comissão de Constituição e Justiça da Casa, mas a análise foi adiada para os próximos dias.

Com iniciativas como o orçamento secreto e o fundão eleitoral turbinado, o Congresso tem merecido censura dos brasileiros. Se quebrar um paradigma e avançar com uma matéria relevante em ano de eleição, poderá resgatar ao menos uma parte da confiança dos brasileiros. Mas o basilar para o país, sem dúvida, é recobrar a estabilidade institucional e política, base para debates maduros, que possam fazer a nação recuperar o tempo perdido, se modernizar e começar a deixar para trás o ciclo de baixíssimo crescimento. 


19 DE MARÇO DE 2022
MARCELO RECH

A sombra da Segunda Guerra

É uma trágica ironia histórica. Durante e após a Grande Guerra Patriótica, como a Segunda Guerra é chamada na Rússia, a União Soviética outorgou a 12 centros urbanos o título de "cidades-herói" por terem resistido bravamente aos invasores nazistas. Duas delas, Kerch e Sebastopol, estão na Crimeia tomada da Ucrânia por Vladimir Putin em 2014. Outras duas, Kiev e Odessa, são metrópoles ucranianas transformadas agora em palco do teatro de horrores desencadeado por Moscou.

Para aprofundar a ironia, Putin passou a aplicar na Ucrânia táticas que remontam à invasão nazista. Bombardeadas seguidamente, e com as tropas russas fechando o perímetro em torno delas, Kiev e Kharkhiv relembram Leningrado, hoje São Petersburgo, que resistiu por inacreditáveis 900 dias ao cerco dos alemães. Ainda há comida nas cidades, mas as prateleiras estão cada vez mais vazias, e a vida, como em Leningrado, se transfere paulatinamente para os porões e abrigos subterrâneos.

Nada se compara em devastação a Mariupol, uma cidade que chegou a ter meio milhão de habitantes e que vem sendo dizimada pelas bombas russas. Pelas cenas de destruição e com a rotina começando a se esgueirar entre ruínas, Mariupol guarda semelhanças com Stalingrado, hoje Volgogrado, cenário do maior capítulo de resistência russa e um ponto de inflexão da Segunda Guerra após a rendição de quase 100 mil alemães.

Essa memória heroica da URSS sob ataque assombra hoje Moscou, cuja expectativa de uma vitória rápida, com os russos sendo recebidos como libertadores, evaporou-se já nos primeiros dias de batalha. Diante da tenacidade ucraniana, a invasão fez ressurgir outro fantasma. Desde a Segunda Guerra, nenhuma grande cidade foi tomada por invasores sem que tenha havido uma rendição, como Bagdá em 2004, ou sua virtual destruição, como Alepo, na Síria, onde de 2012 a 2016 bombas russas abriram terreno para que forças iranianas e sírias convertessem a cidade em uma pilha de ruínas e legassem mais de 100 mil mortes. Outras cidades atacadas intensamente, como Sarajevo nos anos 90, viveram o inferno na Guerra da Iugoslávia, mas não foram ocupadas, até porque a doutrina da guerra urbana - disputar casa a casa - pouco mudou desde Stalingrado.

Sem um acordo de paz, resta a Putin aferrar-se a seu método mais truculento de demonstração de força, já testado na Síria, na Geórgia e na Chechênia: submeter as populações civis a um bombardeio cruel e incessante até que, pela exaustão, as tropas se rendam ou os invasores tomem enfim as ruínas. Com suas paranoias e métodos sangrentos que recendem a nazismo, Putin macula a memória dos que lutaram e venceram a Grande Guerra Patriótica e abre um fosso que dificilmente se fechará entre dois povos que tinham até poucos anos uma convivência amistosa.

MARCELO RECH

19 DE MARÇO DE 2022
J.R. GUZZO

A pandemia e a educação

Após mais de dois anos de desgraças, a pandemia de covid-19 vai finalmente entrando na sua fase de dissolução, com infecções, mortes e internações hospitalares em baixa, e o desmanche progressivo das medidas impostas pela autoridade pública para administrar a doença.

Nunca se saberá, no Brasil e no resto do mundo, o custo real dessa tragédia sanitária sem precedentes. As ciências médicas e biológicas não chegaram até hoje, apesar do imenso esforço feito em pesquisas, a reunir respostas realmente satisfatórias sobre a pandemia, e nem sobre a real eficácia das providências tomadas por governos e pelas pessoas para lidar com ela.

Hoje, quando o desastre se encaminha para o seu fim, há quase tantas dúvidas quanto havia no começo - e uma sensação de que se pagou um preço alto demais para combater essa guerra.

Fala-se muito das calamidades em cascata causadas pela desaceleração da atividade produtiva em todo o mundo - dois anos de recessão, desemprego, falências, gasto público desesperado e por aí afora. Menos mencionada é a devastação causada na educação dos jovens e crianças pobres com o fechamento das escolas.

Os países desenvolvidos fizeram uma defesa muito melhor do futuro de suas crianças, percebendo, desde o início, que era essencial manter as escolas em funcionamento. O Brasil fez exatamente o contrário. Até hoje há escolas fechadas. Os alunos do ensino privado ainda se defenderam melhor, por terem mais recursos, mas a imensa maioria dos alunos brasileiros do Ensino Básico não aprendeu nada durante esse tempo todo.

As aulas "a distância", para as crianças pobres, foram uma piada: como dar aulas "online" sem computadores, sem internet estável, sem assistência técnica, sem a presença de monitores? Como ensinar sem professores, que trataram de toda essa tragédia como uma questão sindical, fazendo greves para não voltar às escolas e ficando dois anos seguidos em casa?

Os alunos que perderam os anos de 2020 e 2021, e ainda vão receber um ensino deficiente em 2022, sofreram um prejuízo que vai lhes perseguir pelo resto de suas vidas. É muito simples: o que não aprenderam agora não será aprendido nunca.

Nenhum Estado e nenhuma empresa com "sensibilidade social" vai lhes pagar ou compensar por isso. Só vão lhes oferecer empregos ruins, salários baixos, trabalho de má qualidade, sem perspectivas de progresso profissional ou de melhoria de vida - o que sempre se oferece a quem sabe pouco.

O fechamento das escolas, sob a mais completa indiferença dos que mandam e dos que pensam neste país, foi a maior e mais perversa ação de retrocesso social que o Brasil já teve em sua história moderna. A distância entre ricos e pobres aumentou ainda mais, e não há "políticas de igualdade" que possam resolver isso.

J.R. GUZZO

18 DE MARÇO DE 2022
DAVID COIMBRA

O preço do pecado

Uma vez, uma amiga minha, que estava amando e em retribuição era amada, me disse algo que jamais esqueci: - Tenho medo de que alguma coisa muito ruim me aconteça por estar tão feliz.

Parece um raciocínio tortuoso. Não é. Porque é essa a lógica da civilização. As pessoas pensam que a felicidade tem de ser merecida e que o merecimento só se obtém com sacrifício.

Eis a palavra-chave para compreender a alma atormentada do ser humano: sacrifício. Se você está feliz agora, é porque se sacrificou antes. Mas, se está feliz sem ter se sacrificado, talvez tenha de pagar por isso depois. Era o que temia a minha amiga. "No pain no gain", como pregam as academias de ginástica. Sem dor, não há ganho.

É por essa razão que o sacrifício está no centro de todas as religiões. Do patriarca das três grandes religiões monoteístas,

Abraão, Jeová teria exigido o maior de todos os sacrifícios: a imolação de seu filho, Isaac. Essa história mostra como eram comuns os sacrifícios humanos na Antiguidade. Afinal, o que pode ser mais valioso do que a vida de uma pessoa?

O judaísmo aboliu os sacrifícios humanos. Foi uma evolução. Mas animais continuaram sendo imolados até 70 d.C., quando os romanos destruíram Jerusalém e os hebreus se espalharam pelo mundo.

O cristianismo representou outra evolução: os animais não eram mais abatidos, porque o próprio Jesus se sacrificou pela salvação do homem. Ele era "o cordeiro de Deus", que morreu para lavar os nossos pecados. Em vida, Jesus também teria condenado a execução dos animais. Os vendilhões do templo, que ele expulsou a chicotadas, sabe o que eles vendiam? Bois, ovelhas e pombas para o sacrifício.

Tratava-se de um grande negócio. Os mais pobres compravam uma pequena pomba. Os remediados, uma ovelha. Os muito ricos e muito pecadores às vezes patrocinavam uma hecatombe: matavam cem bois. Havia muito dinheiro envolvido em toda essa devoção. Não foi por outro motivo que os sacerdotes se irritaram tanto com aquela pregação pacifista de Jesus.

Apesar desses progressos civilizatórios, a ideia de que a felicidade tem preço está gravada na nossa mente e infiltrada no nosso espírito. Se alguém é feliz, certamente limpou seus pecados por meio do sacrifício.

É um tema extenso, mas hoje quero me deter na América Latina, que passa por imensos sacrifícios. Chico Buarque diz que "não existe pecado do lado de baixo do Equador". A frase não é dele. Foi tirada de Raízes do Brasil, livro escrito por seu pai, o grande Sérgio Buarque de Holanda, que, por sua vez, a tomou de outro autor, ainda mais antigo.

Pai e filho tinham interpretações opostas a respeito da frase. Para o filho, o fato de não haver pecado ao sul do Equador é positivo, a vida é uma festa, urru!, ninguém é de ninguém. Para o pai, era algo negativo, porque assim se comportavam os europeus, quando desciam para o Sul: como se não existisse pecado. Tudo valia, para se ganhar o que se queria: o assassinato, o estupro, o roubo, o logro. A América Latina, então, teria sido construída sobre o pecado.

Tudo indica que o pai estava certo. Porque toda essa dor, todo esse sacrifício latino-americano tem uma fonte: o pecado que foi cometido. A cobiça dos homens, sua ganância irrefreável e, principalmente, sua sede por dinheiro e poder forjaram este pedaço tão belo e triste do planeta. Existe, portanto, pecado ao sul do Equador. E estamos pagando por ele.

Texto originalmente publicado em 13 de novembro de 2019 - DAVID COIMBRA


18 DE MARÇO DE 2022
OPINIÃO DA RBS

ACLIVES E DECLIVES DO PIB GAÚCHO

Todo o peso da agropecuária na economia gaúcha voltou a dar o ar da graça em 2021. Turbinado pela supersafra, o PIB do Rio Grande do Sul saltou 10,4% no ano passado. Mas o que à primeira vista poderia ser um crescimento de dar inveja a chinês, sabe-se, é resultado de um verão de abundância de chuva depois da seca de 2020 e de recuperação das atividades após o período de restrições que se seguiu aos primeiros meses da pandemia. Mas, ao fim, entre o tombo de 2020 e o robusto recobrar das forças, restou um crescimento líquido de 2,9% nos últimos dois anos, um desempenho nada desprezível.

Sim, a base de comparação foi baixa, mas deve ser ressaltado, por exemplo, o resultado do último trimestre do ano passado. As altas de 3,3% em relação aos três meses imediatamente anteriores e de 5% sobre igual recorte temporal de 2020 mostram que a economia gaúcha encerrou 2021 com boa performance. Para ilustrar, basta comparar com a média nacional. De outubro a dezembro, o PIB brasileiro variou módicos 0,5% ante julho a setembro e 1,6% sobre o último trimestre do ano anterior. Ao longo de 2021, como apontou o IBGE na semana passada, a economia brasileira avançou 4,6%.

Como o esperado, o pulo de 10,4%, apurado pelo Departamento de Economia e Estatística, da Secretaria de Planejamento, Governança e Gestão, foi fruto especialmente da grande recuperação da safra de grãos, que levou a agropecuária à altíssima taxa de crescimento de 67,5%. A indústria, por seu turno, viu seu desempenho subir 9,7%, mais do que o dobro da média nacional. Já o setor de serviços, que inclui o comércio, teve um desempenho de 4,1%, um pouco abaixo do registrado no país.

O resultado do campo, na última década, tem em regra potencializado o PIB do Estado ou então amortecido períodos ruins que afetam os demais segmentos. Mas, quando há estiagens fortes, a agropecuária acaba exacerbando o tombo. Foi o que ocorreu em 2020 e vai se repetir em 2022, devido a um novo verão seco, com perdas significativas e consolidadas nas lavouras de soja e milho. O segundo revés em três anos tem ao menos de servir para que o Rio Grande do Sul avance em medidas que possam destravar projetos de irrigação para mitigar prejuízos em futuros episódios de falta de chuva.

Não bastasse a dificuldade climática, a economia nacional entrou 2022 trôpega, e a Guerra na Ucrânia trouxe mais preocupações, como elevação de custos, novas interrupções de cadeia de fornecimentos, inflação e perda de fôlego da atividade mundo afora. Devido à alta dos preços, o Banco Central elevou na quarta-feira o juro básico da economia para 11,75% ao ano. É uma nova trava aos negócios. Há à frente uma série de incertezas sobre as quais os gaúchos não têm controle.

Resta esperar que o conflito no Leste Europeu se encerre o mais breve possível e, no país, governantes e postulantes à corrida presidencial não coloquem em prática ou acenem com políticas que possam agravar o quadro delicado da economia nacional. Sobra, aos trabalhadores, empresários e produtores rurais do Rio Grande do Sul a possibilidade de mostrarem-se irresignados para contornar dificuldades. O país e o mundo vivem, nos últimos tempos, sacudidos por surpresas negativas. Quem sabe daqui para a frente vire a maré dos imprevistos e a onda de más notícias possa chegar ao fim, dando lugar a novas esperanças.



18 DE MARÇO DE 2022
ACERTO DE CONTAS

Farmacêutica gaúcha em expansão

Fundada há 22 anos, a indústria farmacêutica gaúcha Stem Novalatina, que produz principalmente suplementos alimentares, fechou parceria com duas redes de farmácias: a Drogaria Iguatemi, que tem sete lojas em São Paulo, e a Toureiro Farma, marca de um grande grupo de varejo do Piauí, a Casa O Toureiro. A estrutura física para a expansão de mercado está pronta. A empresa se mudou de Porto Alegre para Alvorada, onde construiu uma fábrica de R$ 10 milhões para aumentar a capacidade de produção em 500 mil unidades por mês. O diretor Guilherme Nunnenkamp quer faturar 47% mais em 2022, mas não fala em valores. Outros detalhes em gzh.rs/stem.

Volta da renda fixa

Não é torcida pelo juro alto, mas a Selic está deixando a renda fixa bem atrativa para estrangeiros e também para brasileiros. O tão sonhado retorno de 1% ao mês fica mais perto, mas é preciso considerar a inflação neste cálculo. No caso do Tesouro Direto, o IPCA+ está pagando a inflação mais um juro anual acima de 5,8%, o que não é mesmo de se jogar fora. É uma boa forma de proteger o dinheiro da alta de preços. 

Títulos atrelados à Selic também acompanham a inflação, que é o gatilho do Banco Central para mexer na taxa. Há, ainda, fundos de inflação, porém, fique de olho nas taxas de administração e compare. Além dos títulos públicos do Tesouro, há os privados, como CDBs, LCIs (Letras de Crédito Imobiliário) e LCAs (Letras de Crédito do Agronegócio). Esses dois últimos ainda contam com isenção de Imposto de Renda. No caso dos CDBs, há opções com rendimento parecido e até maior ao título público IPCA+ com prazos de aplicação acima de um ano. Veja outras opções e como está a poupança em gzh.rs/aplicaçoes.

GIANE GUERRA



18 DE MARÇO DE 2022
EDUARDO BUENO

Viva a vodca

Com o advento da covid, cancelaram os restaurantes chineses. Agora, estão proibindo a vodca. Só espero que a Jamaica não faça nada errado...

Recebi essa piada pelo WhatsApp, e achei deliciosa. Pena que no caso da vodca não seja piada: tem restaurantes não só deixando de servi-la como vertendo esse líquido sagrado à sarjeta. E dizem que o coquetel Moscow Mule passará a se chamar Snake Island Mule, em homenagem aos bravos soldados ucranianos dessa ilha que mandaram um navio russo longe, antes de serem pulverizados por ele, pois chumbo mata mais que palavrões.

Mas os sujeitos que querem proibir a vodca e mudar o nome do coquetel não devem saber nada nem de uma nem de outro. Chamada de "aguinha" pelos russos, vodca sempre foi uma mistura de água e álcool. Só que em vez de ser simples assim, era complexo assim: a combinação dos dois líquidos dependia das propriedades moleculares de ambos, mais especificamente dos pesos relativos. Nos primórdios, a vodca era usada como anestésico e desinfetante, nos tempos em que nenhum dos dois existia. De início, a porcentagem de álcool chegava a 90% e quem ingeria vodca para afogar as mágoas, em geral afogava o resto todo também.

Foi o genial Dmitri Ivanovich Mendeleev quem descobriu em 1893 a fórmula ideal para a vodca, a mesma usada até hoje. Após mais de um ano misturando água e álcool (e provando), Mendeleev concluiu que a composição ideal era 40% de álcool e 60% de água. Aprendi isso no Museu da Vodca em Moscou. Lá descobri também que entre as façanhas de Mendeleev está a criação da Tabela Periódica: ele foi o primeiro a relacionar a massa atômica às propriedades dos elementos. Conclui que o tormento das aulas de química no colégio foi, ao menos em parte, recompensado pelos prazeres do Blood Mary.

Acontece que a história do americaníssimo coquetel Moscow Mule também é sensacional. Em 1939, John Martin obteve a exclusividade da venda da vodca Smirnoff nos EUA. A princípio, tudo desceu redondo. Mas com a Guerra Fria, os lucros se congelaram. Para esquentar o negócio, Martin foi de bar em bar e quando chegou ao pub Cock?n? Bull, em Hollywood, encontrou o proprietário, Jack Morgan, às voltas com um estoque encalhado de ginger beer (cerveja de gengibre). Como Mendeleev, eles se puseram a misturar. Mas a receita só ficou completa quando a russa Sophie Berezinski bateu-lhes à porta querendo se livrar de uma montanha de canecas de cobre, vindas de Moscou, com a imagem de uma mula impressa nelas, e que ninguém queria comprar. A alquimia daqueles elementos faz tabelinha - e o resto é história. Inebriante história.

Isso posto, proponho um brinde à Otan, contanto que seja com Cuba Libre, é claro. Já para Putin, recomendo um coice de mula e uma caneca furada com haraquiri. Ops, daiquiri, claro.

EDUARDO BUENO

sábado, 12 de março de 2022


12 DE MARÇO DE 2022
MARTHA MEDEIROS

Make love

Se não há como impedir a pulsão doentia dos que se excitam destruindo vidas, façamos amor. É minha proposta, eu que sou especialista em nada, menos ainda em furores assassinos. Façamos amor com a desenvoltura de um acrobata que desvia do tiro, com a flexibilidade de um contorcionista, façamos amor como os dançarinos do tango, deixemos para os gestores do inferno os discursos longos e gelados.

Façamos amor com a boca, as pernas, os olhos e o coração pra fora do peito. Que o prazer que inflamamos em nossas trincheiras íntimas atinja em cheio a humanidade. Que dediquemos a esse hospício mundial alguma compaixão, que nossos corpos não se despedacem em vão, que se mantenham inteiros para, fazendo amor, tocarem o sublime. Façamos amor hoje ainda, com a lâmpada acesa.

Façamos amor porque é isso que falta a eles, porque é um luxo que nunca terão, ocupados demais em ganhar dinheiro e anexar territórios, em apoiar a indústria bélica e em iludir-se que são imortais, façamos amor que isso eles não sabem, que isso eles também têm que comprar.

Façamos amor para tirar a roupa, para ficarmos nus como nua é nossa alma, para glorificar a mais antiga forma de pureza - sexo é o antipecado. Despir-se é uma valentia, uma contravenção poética, é quando retornamos ao nosso estado primitivo, ancestral. Não precisamos de armas para sermos majestosos, não precisamos camuflar o ódio que não sentimos, façamos amor entre nós, porque esse é o nosso acordo de paz.

E façamos não apenas o amor erótico e revolucionário, mas também o amor solidário, o amor de existir com plenitude, o amor que nos encontra pela manhã com a mesma integridade com que fomos dormir à noite, o amor que não é assombrado por pesadelos e culpas, já que nunca traímos nossa essência, não optamos por viver apartados, defendendo apenas um lado. Nosso amor é universal.

Façamos amor, como propusemos em guerras passadas, aquelas que julgávamos finitas e inspiradoras de slogans singelos, make love not war, quando acreditávamos que a estupidez do mundo seria passageira. Façamos amor, mesmo o amor tendo esse nome viciado, quase cafona de tão desgastado, amor. Diante da iminência de morrer pelas mãos dos medíocres, façamos o que nos resta fazer.

A morte não é de todo má, nem de todo abrupta, a morte valoriza o poder das nossas palavras, o silêncio da nossa comoção, as cores vivas da nossa existência, a morte é um prêmio ajustado entre as partes, mas a violência é sempre atroz, a covardia mais vil, o ato verdadeiramente obsceno que emerge do escuro. Façamos amor antes que o último miserável apague a luz, façamos amor à tarde, no claro, de um jeito libertário e insolente, enquanto eles ainda não estragaram tudo.

MARTHA MEDEIROS

12 DE MARÇO DE 2022
CLAUDIA TAJES

Do YouTube vieste, ao YouTube voltarás

Nada contra os youtubers, até tenho amigos que são. Brincadeirinha. Nada contra os youtubers, até porque basta não dar audiência para aqueles que não interessam e não acrescentam, independentemente de seus milhares, milhões de seguidores.

É direito assegurado ao mais anônimo dos mortais ser um youtuber. Basta criar um canal e, no mais das vezes, ter cara de pau suficiente para colocar seu conteúdo no ar. É assim que a internet está cheia de canais de todos os tipos e ênfases. Há os que debatem exaustivamente filmes, séries, futebol e política. Há os que ensinam a fazer pequenos consertos em casa e até um foguete espacial. Há os que passam receitas de comida, crochê, tricô, corte e costura, pintura, literatura, tudo pode ser ensinado em um canal no YouTube.

Uma senhorinha muito simpática quase matou seus seguidores ao divulgar uma fórmula emagrecedora que, segundo ela, fazia qualquer um perder 20 quilos em um dia. Imagine por onde esses 20 quilos saíam. As dicas para tirar manchas de alguns canais são realmente eficientes, misturas cáusticas que fazem a mancha desaparecer em segundos. E a roupa também. Tem youtuber exorcista, youtuber hipnotizador, youtuber tântrico, youtuber surubeiro, youtuber coach, youtuber consultor de tudo. E tem youtuber que reage a youtuber, como o Casimiro Miguel, grande sucesso desses nossos dias youtubers.

De todo esse interminável leque, o que mais me intriga são os youtubers que, do nada, viram expressões políticas por conta do que fazem em seus canais na internet. Em geral, tosquices que nem como piada serviriam.

O tal do Mamãe Falei, ridículo desde a alcunha pela qual ficou conhecido, ganhou fama por aparecer em eventos de universidades, escolas, exposições, lançamentos de livros e qualquer outra ocasião em que pudesse provocar os que não comungavam de sua filosofia tradição-família-propriedade. Levou muito cascudo, pontapé e pescotapas, perfeitos para aumentar sua fama de defensor de... de... de que mesmo?

Ligado aos jovens de sapatênis do MBL, contra a Lei Rouanet, discussões de gênero etc, só podia se eleger o segundo deputado estadual mais votado de São Paulo nas eleições que fizeram o Brasil dar muitos passos para trás em tudo, na política, na economia, na educação, na saúde, na cultura. O Brasil que, de repente, passou a ter orgulho da truculência e da ignorância.

Então, na semana passada, já pré-candidato ao governo de São Paulo, o tal do Mamãe Falei viu sua imagem - construída na base de uma moralidade anos 1940 - se espatifar em mil pedacinhos, estilhaços tão pequenos que nem um youtuber especialista em colagem avançada conseguiria ajudá-lo a juntar os cacos.

Os áudios que ele mandou para um grupo de amigos (muy amigos) já são suficientemente conhecidos, nem precisa replicar. Fico só com a parte do "elas são fáceis porque são pobres", ao se referir às refugiadas de guerra na Ucrânia, país que ele supostamente foi servir em sua missão humanitária de fazer coquetéis molotov e turismo sexual.

Depois do vazamento, o tal do Mamãe Falei já desembarcou no Brasil sem namorada, corrido do palanque do Moro, sem chances ao governo de São Paulo e com alguns milhares de seguidores a menos, todos decepcionados com a moral de cuecas de seu ídolo.

Imagino o ex-futuro governador e atual solteiro chegando na casa da família, depois do acontecido. Rabinho no meio das pernas, porque gente assim é muito valente quando se trata de atingir os mais vulneráveis. Ele atravessa o condomínio sob os olhares dos vizinhos, muitos ex-eleitores. Toca a campainha. Abre-se a porta. E ele:

- Mamãe, defequei.

CLAUDIA TAJES

12 DE MARÇO DE 2022
LEANDRO KARNAL

A POLÍTICA DA ARANHA

A velhice de quem não lê será solitária, profetizava uma aluna minha entusiasta dos livros. Sim, ler é uma imensa e generosa companhia. Pensei ainda mais na frase quando ouvi um conto de Machado de Assis: A Sereníssima República. Sim, minha querida leitora intrigada e meu estimado leitor com dúvidas: ouvi, porque estava na narrativa de um site de audiolivros que eu assino e acompanho com fones ao andar ou correr. Também uso livros narrados quando meus olhos, cansados como no poema da pedra de Drummond, não aguentam mais as letras cada vez menores. Porém, gostei tanto do que ouvi, que busquei reler, na minha edição das obras completas de Machado, o conto. Está na coletânea Papéis Avulsos, a mesma que contém O Alienista, Teoria do Medalhão e o intrigante O Espelho. Se cada brasileiro lesse bem um conto de Machado por semana, este seria um país muito melhor.

Volto ao conto ouvido/lido. Um cônego chamado Vargas profere uma palestra sobre uma intrigante descoberta. Após minuciosa observação, descobriu-se capaz de entender a língua das aranhas. Prossegue a imaginação do Bruxo do Cosme Velho: o religioso deu aos insetos uma constituição política. O modelo? A República de Veneza, sempre conhecida como Sereníssima, daí o título da obra.

Da República do Adriático, ele tomou o sorteio de cargos como modelo. Como na Atenas Clássica, o sorteio veneziano era muito frequente para preencher funções públicas. Para tal fim, aranhas hábeis fizeram um saco bem tecido. Os nomes seriam introduzidos e de lá sairiam magistrados e senadores. Aí começou o drama.

Algumas aranhas eram inclinadas à corrupção. Aumentavam ou diminuíam a boca do dito saco, mudavam a grafia de nomes, alteravam as regras tão sábias dadas pelo cônego, tomado por elas como um deus das aranhas. Surgiram grupamentos políticos na nova sociedade: o Partido Curvilíneo, o Retilíneo, um partido de centro (expressão de Machado) conhecido como Reto-Curvilíneo e, por fim, o negador de tudo, o partido Anti-Reto-Curvilíneo, que se limitava a "negar tudo".

As leis eram boas, porém as aranhas políticas faziam mudanças de acordo com o momento. As regras eram torcidas para atender a impulsos inconfessáveis. Em frase lapidar, nosso gênio literário diz que, "infelizmente, senhores, o comentário da lei é a eterna malícia". O que significaria a ideia?

A República é uma boa instituição, e as leis são claras. O sorteio elimina compadrios e deixa ao acaso (geralmente muito sábio) a tarefa de preencher cargos cobiçados. Elimina-se o nepotismo, vício recorrente de sistemas de poder. Porém... por serem cobiçados, os postos são alvo de, digamos, interpretações. Na chamada "hermenêutica jurídica" (juro, será o único termo difícil de hoje), ocorre a mudança da intenção da lei. Interpretar é fundamental para teólogos que se debruçam sobre o texto sagrado ou para advogados e juízes com a constituição aberta a sua frente. Existe um Deus ou uma Assembleia Constituinte que falou ali, todavia, há princípios, metáforas e intenções. Necessita-se da chamada hermenêutica na busca do sentido exato de cada termo dentro da narrativa. Aí, surge a malícia...

As aranhas personificam, claro, a situação política do Império. Os sistemas, por mais elevados que sejam, convivem com seus executores humanos e subjetivos. A excelência da receita culinária depende da leitura de cada cozinheiro/a, no que se deseja com aquele prato e das possibilidades materiais da despensa com ingredientes. O real e o ideal são ilhas isoladas pelo oceano dos comentários, das interpretações, ou seja, da já citada hermenêutica. Toda criança e todo aluno aprendem desde logo: hermenêutica serve para torcer diretrizes...

Machado encerra o conto dizendo que havia de refazer o saco de sorteios constantemente. Recomendava, como modelo, a famosa rainha de Ítaca, Penélope. Ela tecia uma peça incessantemente, escapando de pretendentes e aguardando seu marido Ulisses por longos 20 anos. "Refazei o saco, amigas minhas, refazei o saco, até que Ulisses, cansado de dar às pernas, venha tomar entre nós o lugar que lhe cabe. Ulisses é a sapiência."

Bizarra a sociedade aracnídea! Machado louvou que eram diligentes, esforçadas, trabalhadoras incansáveis. Compara-as ao cão, ao gato e ao mosquito e afirma que, ao contrário das fiandeiras, tais seres "são o modelo acabado da vadiação e do parasitismo". A aranha não nos "aflige nem defrauda; apanha as moscas, nossas inimigas, fia, tece, trabalha e morre". Bem, mesmo tais seres laboriosos ainda podem ser alvo de interesses pessoais envenenadores da isenção aleatória dos sorteios. Nem as aranhas...

Se as tecedeiras incansáveis, melhores do que nós e do que os mosquitos, erram, imagine cada um de nós, muito menos aplicado ao esforço pessoal como redenção de vida. O conselho dado às aranhas é válido: vamos adaptando o saco de sorteios até que Ulisses volte e restaure a ordem na Ítaca-teia-Brasil. Quem será o desejado rei? Se os quatro partidos divergiam na narrativa do Cônego Vargas, imaginem-se cerca de 33 partidos no Brasil? Ah, Ulisses é a nossa esperança...

LEANDRO KARNAL

12 DE MARÇO DE 2022
PENSAMENTO

SILÊNCIO, RACIONALIDADE, PODER

Em tempos belicosos, calar-se e encontrar-se consigo mesmo poderia ser algo mais recorrente, sugere professor e editor

Uma vez que podemos intencionalmente permanecer em silêncio, por certo em incontáveis ocasiões teremos, adrede, calado durante uma reunião, para evitar expor o dissenso, assim como em inumeráveis outras dessas ocasiões, teremos articulado discursos para mostrar as nossas belas razões, ou exibir nosso domínio sobre o tema tratado. Nas duas circunstâncias, porém, procedemos daquela forma principalmente em benefício próprio seja pela não exposição ou, ao contrário, pela premeditada manifestação vaidosa das nossas sabedorias , logo, na essência, almejando um poder. 

Silenciar eventual e propositadamente visando a algo é natural no ser humano, ele pode permanecer silente; todavia, lhe é complicado manter silêncio consigo próprio, pois não é uma disposição humana normal. Nos outros animais o silêncio é algo natural, ao passo que nos humanos vem a ser momento de confronto com conflitos interiores. Quem aborda de forma singular esse tema é o filósofo britânico John Gray, em sua obra O Silêncio dos Animais (Record), na qual também trata de outro tema que lhe é caro: a dubiedade ou mesmo a contrafação que carrega a ideia de progresso.

Uma das razões da infelicidade humana, disse B. Pascal em seus Pensamentos (1670;88), está no fato de o indivíduo não saber permanecer solitário em silêncio em seu quarto. Na modernidade, para além dessa dificuldade, guardar silêncio significa o constrangimento de abrir mão de algo que o mercado considera um valor: a exigente produtividade humana de cada dia, o requerimento da ação. Permanecer silente é se encontrar com suas inquietudes interiores, angústias, contradições; enfim, defrontar-se com os próprios indizíveis sofrimentos, o que a "produção da produtividade", empana. Afinal, dizem os produtivos, não se pode menosprezar a dispersão, que hoje seria considerada prática que dá um sentido à vida.

O indivíduo humano costuma não aprender com suas experiências; mais, não aprende que não aprende e, assim, esboça sua intermitente irracionalidade ao perpetrar repetidos malfeitos. Se o conhecimento avançou ao longo da nossa história, o mesmo não se pode dizer da racionalidade - pois o não uso da razão, do pensamento predecessor e condutor da ação, digamos assim, é notório no cotidiano. A razão humana é descontínua e parcial, os indivíduos não são totalmente racionais nem em tempo contínuo. 

Quando nos referimos à história humana queremos mais dizer sobre a história do progresso, que, todavia, não encontra correspondência num aumento da racionalidade: nesse aspecto, diz Gray, os indivíduos permanecem praticamente os mesmos, condição de que são provas cotidianas rudimentares, por exemplo, aquelas ridículas desavenças miúdas familiares ou comunitárias com que nos defrontamos a toda hora, ou os desentendimentos boçais no trânsito: só a irrazão os justificam. E então, onde radica o progresso?

Diante da já exaustivamente falada rasteira polarização ideológica que atormenta nossos dias - traço inequívoco da ausência da razão -, vem a calhar a lembrança de uma conformação pouco racional conhecida como dissonância cognitiva. Suponhamos que um neomessiânico me afirme que amanhã um disco voador chegará aqui com alienígenas de poderes extra-humanos para acabar com a dita polarização; todavia, no dia seguinte, nada: eles não vieram. 

O neomessiânico com certeza justificará a não vinda porque os visitantes constataram que ainda não seria o momento conveniente, precisaríamos sofrer mais doses de polarização irracional para merecermos descanso. Isto é, a não vinda dos extraterrestres salvadores reforça a crença absurda do neomessiânico, que tem suas convicções inabaláveis mesmo diante de qualquer outra constatação racional. Dissonância cognitiva. Como diz Gray, se a racionalidade fosse uma ciência, há muito teria entrado em descrédito.

Diante da guerra, em bonita terminologia humanista, criaturas conclamam a paz - uma manifestação inócua e tão vazia quanto sentimentalista. Comentaristas usarão todo seu vocabulário para explicar numa visão intelectual as causas geopolíticas da guerra, conquanto, imagina-se, estejam bem cientes de que a irracionalidade do conflito tem como origem primeira e fundação a inelutável ânsia pelo poder. Exaltar a paz é mero sentimentalismo. Paz, como liberdade, mas diferentemente de silêncio, é apenas um vocábulo.

CARLOS ALBERTO GIANOTTI

12 DE MARÇO DE 2022
FRANCISCO MARSHALL

OS BÁRBAROS E O OUTRO

Barbaroi era como os gregos chamavam a um povo que capturavam para escravizar, na Trácia, na costa do Mar Negro, atual território de Romênia, Bulgária e Turquia. É o povo cita (trácio), que Heródoto (484-425 a.C.) foi pesquisar e cuja descrição aparece no quarto livro (capítulo) de sua obra Histórias; o pai da História e da Etnografia foi o primeiro a tentar compreender o outro e posteriormente difundir mensagem cultural visando ao fim da guerra. Os demais gregos ouviam o idioma alheio como um bar-bar-bar incompreensível, de onde geraram o onomatopaico até hoje usado, bárbaro, muito revelador. Porém, revelador de quê? Do outro ou de quem o chama de bárbaro?

No livro O Espelho de Heródoto (1980, com tradução de Jacyntho Lins Brandão em 1999), François Hartog examina a representação cultural do outro e as várias formas com que as descrições de povos estrangeiros, sobretudo os citas, tornam-se formas de representar negativamente e afirmar por contraste a identidade grega. Em Heródoto, os citas (e outras etnias) são descritos com características diametralmente opostas às dos helenos, o que os define como os não gregos; assim, afirmam-se as qualidades positivas do narrador e sua cultura diante do outro, que é transformado numa espécie de espelho narcísico, subordinado aos fins do autor grego. Nessa operação, temos como referência apenas o texto de Heródoto, o que é insuficiente para sabermos como eram de fato os citas e outros povos, pois tudo subordina-se a esse objetivo autorreferenciado, no qual o que se revela é o que são ou querem ser os gregos, por contraste com os bárbaros.

Podemos ver na relação entre gregos e o que chamavam bárbaros o modelo para compreendermos a alteridade histórica, ou seja, como a representação do outro explica quem a faz, o dono da fala ou a cultura que alimenta as imagens do outro. Isso nos leva a pensar também a construção da violência no embate com o outro diferente, e a centralidade histórica do olhar senhorial masculino na matriz das narrativas hegemônicas, desde a antiguidade.

Com esse critério, a visão das etnias pode avançar para examinar relações entre gêneros, em que a mulher é representada como o outro para certo olhar masculino, como o bárbaro o foi para gregos. É o caso da narrativa sobre mulher feiticeira, capítulo central da história da ginecofobia, que vem de fonte muito antiga. No Grande Hino a Osíris, literatura do antigo Egito, a deusa Ísis é apresentada como "a hábil em sua língua, cujas fórmulas mágicas não falham" (trad. Emanuel Araújo), a feiticeira, como o foram para os gregos Circe e Medeia, entre outras. A demonização da mulher como bruxa, na era inquisitorial moderna (séculos XV a XIX), levou a Igreja a matar milhares de mulheres, uma das grandes violências da história. Em recente fala do genocida, as mulheres apareceram como o outro "praticamente integradas na sociedade". É quando o bárbaro e a barbárie se evidenciam e mostram quem e o que de fato são.

O outro, a outra e cada um de nós. Mistério e desafio, e o convite para conhecermos a riqueza e a complexidade do que nos constitui.

FRANCISCO MARSHALL