sábado, 21 de maio de 2022


21 DE MAIO DE 2022
MARTHA MEDEIROS

Novas escolhas

Decidimos as coisas mais sérias da vida ainda muito jovens, naquela fase que o escritor Milan Kundera chamou de "a idade da ignorância", que é quando escolhemos a profissão, nos casamos e temos filhos. É uma grande sorte quando essas escolhas se confirmam como acertadas e duradouras até o fim dos dias, sem o valoroso apoio da hipocrisia.

Nos idos tempos em que entrávamos na meia-idade aos 30 anos e virávamos idosos aos 50, faltava energia para revoluções pessoais. Dava preguiça começar tudo de novo, já que não demoraria para batermos as botas. Seguia-se adiante com as escolhas feitas na juventude, era sinal de juízo. Ninguém nos chamava de covardes e sim de sensatos. E a gente retribuía a confiança, garantindo que éramos muito felizes, mesmo quando não éramos.

Agora a gente chega aos 45 com o corpo e a mente tinindo, e com a promessa de uma outra vida inteira pela frente. Mesmo tendo sido felizes de um jeito, podemos arriscar ser felizes de outro: a preguiça deixou de ser uma desculpa aceitável. Hoje, a única justificativa para não mudar é, contrariando Kundera, ter sido um gênio na juventude e acertado o alvo de primeira, a ponto de ignorar os atraentes desafios que a maturidade traz, período em que estamos mais íntimos de nós mesmos.

A constância é confortável, mas é também um inimigo silencioso, sequestra o brilho do olhar. É o preço a pagar por nos recusarmos a fazer ajustes no decorrer do caminho, pelo medo que sentimos dos desejos inconvenientes, por nos acomodarmos ao "mais ou menos". Não significa que os caçadores de emoções, que se mantiveram em movimento, tenham alcançado o paraíso. Podem ter se dado mal. Podem ter se arrependido. Mas não se intimidaram diante dos riscos, e isso dá a eles uma medalhinha invisível presa à camiseta, um charme qualquer que não se explica. As pessoas mais interessantes são as que têm história, guinadas e estão preparadas para um final em aberto. Não apostaram no "felizes para sempre" dos contos de fada da Disney, que terminavam justamente quando o melhor iria começar.

Excitação, demissões, desespero, conquistas, delícias, brigas, paixões, problemas superados, novas encrencas, dúvidas, estradas, autoconhecimento, terapia, frustrações, amores minúsculos, amores maiúsculos, solidão, rugas, viagens, o universo em expansão e o ponteiro sem parar de girar, tic-tac. É assim mesmo, vertiginoso.

Quando a gente se permite alçar voos - e eles continuam nos chamando para embarque - nos livramos das fantasias infantis e passamos a ser quem somos: múltiplos e falíveis. O final? Seja qual for, será preferível àquela trilha fechada dentro da floresta, onde o cavalo branco se perdia com dois conformados na garupa.

MARTHA MEDEIROS

21 DE MAIO DE 2022
CLAUDIA TAJES

Bodas de gelo

Quarenta anos depois, com três filhos adultos, sem contar o que não vingou, mais sete netos já criados, o casamento dos dois segue entrando em crise a cada inverno. Tudo porque ela tem os pés gelados e tira as meias durante a noite.

Quantas vezes ele já acordou gritando ao sentir nas pernas o que lhe pareceram duas barras de gelo embaixo das cobertas? Quantas vezes já não pensou que era a morte vindo buscá-lo, embora tendo a absoluta certeza de que a morte não deve ser tão fria quanto os pés dela?

Foram muitas as tentativas de conciliação ao longo das décadas.

Naquela sexta-feira dos anos 1980 em que nevou na cidade, por exemplo, ele achou que o casamento não resistiria e foi dormir na sala, apesar dos protestos dela. Passou frio a noite inteira, mal acomodado com o único cobertor sobressalente da casa, mas pelo menos não acordou com a sensação de um Chicabon encostado na panturrilha. Na segunda lua-de-mel, pediu um quarto com camas separadas no hotel de Gramado para evitar um divórcio em plenas Bodas de Prata. Chegou a comprar uma espécie de tiptop de adulto, de flanela e com pezinhos, para não deixar nenhuma parte do corpo à mercê dos membros inferiores da companheira. Nem assim o choque foi menor.

Tentando remediar as crises, a filha comprou todo o tipo de meias para a mãe. De lã, de algodão, de fio sintético, até de neoprene. Com elástico fino, elástico grosso, elástico que apertava tanto que quase gangrenou as canelas da pobre mulher. Tudo em vão. No sono mais profundo, mesmo que nevasse fora da cama, ela agitava os pés, agoniada, e chutava as meias para longe. Era de se imaginar que o ataque de calor se traduzisse em pés pegando fogo, mas que nada. Tão logo se livrava dos carpins, ela procurava a quentura do corpo dele e colocava os dois pés congelados entre as pernas do marido. No início, a gritaria acordava os filhos e até os vizinhos. Quarenta anos depois, os dois sozinhos em casa, nem os cachorros latiam, acostumados.

Nessa semana, quando o frio veio castigando, inclusive com a ameaça de um ciclone, ele colocou em perspectiva tudo o que os dois viveram. O quanto ele batalhou para ser notado lá no início, tendo que superar um topetudo de voz bonita chamado Milton. O primogênito que chegou no mesmo dia em que ele foi demitido, trazendo tanto alegria quanto preocupação. A vez em que ela quis ir embora com um ex-namorado. Os jogos no Olímpico. O apartamentinho na praia, para onde os dois planejavam mudar assim que a caçula tivesse bebê.

O apartamentinho na praia. Como foi que ele não pensou nisso antes?

Ontem mesmo ele partiu para Quintão, para passar o inverno na companhia das gaivotas e de um ou outro amigo que apareça lá para pescar. Ela vai de vez em quando com os filhos, mas não para dormir. Combinaram de só dividir o mesmo leito na primavera, no verão e no outono. Pé gelado embaixo da coberta, nunca mais.

Juraram viver felizes até que o inverno os separe.

CLAUDIA TAJES


21 DE MAIO DE 2022
LEANDRO KARNAL

O termo remete à falsidade. Pensamos no hipócrita como alguém que diz uma coisa e sente outra. Pode ser a pessoa diferente do que prega. Um fariseu, um dissimulado, uma pessoa de duas caras: eis a primeira aproximação do hipócrita. Outra boa aproximação é acompanhar discursos de alguns políticos.

Trato do termo em outro caminho. Somos obrigados a elaborar e cumprir regras pela vida em sociedade. A tendência da norma é funcionar para o interesse coletivo. Claro, aqui e ali, o dispositivo fica autônomo e cumpri-lo passa a ser o objeto em si, independentemente do que o gerou e seus objetivos.

Explico-me. Durante a pandemia, as companhias aéreas tiveram de seguir novas diretivas. Eram boas medidas de segurança: quando o avião pousava, todos deveríamos aguardar em grupos para desembarcar. Terminava o lufa-lufa tradicional e forçava-se, com motivos sanitários corretos, um modelo mais lento e mais seguro para sair da aeronave. A regra é muito boa. Problemas: a) estávamos encostados uns nos outros dentro do avião. Ao meu lado, duas pessoas desconhecidas que roçaram no meu braço por uma, duas ou três horas. Passamos a descer de cinco e cinco fileiras e ficamos de pé junto a pessoas de cinco fileiras (cada uma, em média, com seis lugares, logo, 30 pessoas). Seria mais seguro estar apertado de pé com 30 pessoas? Ainda mais grave: muita vez vamos do avião para um ônibus. Depois de termos descido com ordem e metodicamente, civilizados e obedientes, voltamos a aglomerar um ao lado do outro, apertado, dezenas de pessoas. Qual a utilidade da regra de descida? Alimentar nossa hipocrisia, suprir a cena pública, destacar a teatralidade sanitária social. É importante o isolamento social? Fundamental! Seria bom que não aglomerássemos? Sem dúvida! O que ocorre ao chegar difere de tudo que desejávamos.

Não se pode tirar a máscara durante o voo! Sabemos ser medida adequada, bem concebida e defensável ao extremo. A não ser... que estejamos bebendo água. Minha vizinha de assento hidratou-se por 50 minutos, de Congonhas ao Santos Dumont. Bebericava em quantidades homeopáticas cada precioso gole e, assim, não precisou de máscara durante todo o trajeto. Uma estratégia? Uma sede imensa? Alguém que lutava contra a desidratação ou que tinha angústia com o uso da máscara. Nunca saberei, todavia, coloco na conta da hipocrisia. Se ela estivesse sem o copo na mão, poderia ser alvo de todas as críticas e até forçada a desembarcar se o avião estivesse no solo. O copo vira um habeas corpus, uma suspensão da pena e da moralidade sanitária.

Vivemos da cena pública. A cozinheira toca centenas de vezes nos alimentos ao prepará-los. Quando chegam até a mesa, usam-se luvas, garfos, colheres e outras coisas para simbolizar o caráter asséptico e imaculado ali, na minha frente. Equivale a um atestado de pureza depois de uma vida pouco recomendável. Precisamos ver o cuidado de higiene. Não é necessário que ele tenha existido há 15 minutos. Nossa demanda por hipocrisia existe.

O objetivo desta crônica não é a denúncia. Poucas coisas são tão hipócritas como a denúncia. O objetivo é entender a teatralidade da nossa exigência, as regras sem sentido que implantamos e a necessidade que cada um de nós, a começar por mim, estabelece para aceitar que as coisas funcionem.

Há um filme histórico que se passa em 1610, por exemplo. Eis que, sobre a mesa, o observador arguto nota um relógio e identifica um grave erro: um ponteiro de minutos. Faltavam ainda mais de 50 anos para que surgisse o ponteiro de minutos! Filme anacrônico! Erro! Absurdo! O observador indica o dislate, publica nas redes, denuncia e escreve aos produtores. Todo o fato de que estamos gravando em um estúdio com luzes elétricas e câmeras digitais e que as falas são produzidas em um computador e apresentadas por pessoas do século 21 é irrelevante. Preciso que não exista o ponteiro de minutos para eu acreditar. De alguma forma, é nossa hipocrisia teatral. Importa o que está na regra, na minha frente no restaurante ou diante das câmeras. Hipocrisia exige a cena pública e ignora o resto. Hipócritas são atores no sentido negativo do termo.

Com exceção de você, querida leitora, e também de você, estimado leitor, o mundo é dominado por hipócritas. Continuamos nos horrorizando pelas mentiras contadas e, pista importante, reações intensas revelam muito sobre nossos medos e sombras.

Confesso, para encerrar, antiga inveja. Tive um colega professor que recusava convites inconvenientes com histórias tão comoventes que a pessoa o dispensava com lágrimas nos olhos. Eu, incapaz de inventar algo, lá estava no batizado que durava horas e com muitas pessoas. A cada olhada no relógio quase imóvel, tinha um pouco de desejo de ter o dom do meu colega, um pouco de raiva de mim ou de quem tinha me convidado para aquele sofrimento interminável. Tenho inveja do hipócrita bem resolvido que, geralmente, é conhecido como muito educado. Até a hipocrisia comporta esperança, afinal, ela já foi definida como a homenagem do vício à virtude.

LEANDRO KARNAL

21 DE MAIO DE 2022
FRANCISCO MARSHALL

AFRODITE-SE

Afroditar seria um belo verbo, em que se impõe o poder da deusa do amor: Afrodite, se quiser. Sua origem une Oriente e Ocidente e também amor e guerra, partes que hoje se opõem mas que foram outrora poderes de uma deusa suméria, Innana, que conquista e une, Ishtar de acadianos, Astarté de fenícios, que na ilha de Chipre tornou-se Afrodite, a cípria. Desde a origem ela traz consigo um astro, Vênus, que entre latinos lhe dá nome e aparece em joia brilhante, em tiara dourada. Por vezes tem olhos de rubi, sempre adornada, a deusa que desposou o troiano Anquises e lhe deu o filho Eneias, que migrou e fundou a cidade eterna, dom de Vênus. Foi assim que a grande deusa singrou todas as águas do Mediterrâneo, deusa de amor e Roma, de aromas e rumos doces, que os gregos chamavam lysimelês, a solta-membros, irresistível para humanos e deuses, a força divina que vence a guerra com amor, de que tanto precisamos, sempre.

Aphrós em grego quer dizer espuma, a espuma leitosa dos machos, que se confunde com a espuma do mar, de onde nasceu Afrodite, na versão de Hesíodo, na Teogonia (séc. VII a.C.). Ao falar das origens do mundo e dos deuses, o poeta cantou que do Caos originário surgiram o céu, Urano, e a terra, Gaia, mas que aquele a oprimia, até que um filho insurgente, Cronos, armado pela mãe, fez tocaia e ao poente, quando o céu se punha sobre a terra, o castrou com foice afiada; do sangue nasceram deusas vingativas, Erínias, e do esperma no mar surgiu Afrodite, que vagou nas ondas até chegar a Paphos, em Chipre, sua praia e um de seus belos santuários. 

Essa Afrodite é cósmica, surge nas origens, traz um pedaço do céu e é curativo para muitos males. Afrodite tem poder gregário, une e dá vida a tudo, às formas separadas, ao que se opõe, aos corpos dos seres vivos e também às partes da cidade, que de algum modo devem unir-se, para que todos sobrevivam. Há uma Afrodite também política, que faz da persuasão (peithós) uma forma da sedução, em que cidadãos e cidadãs encantam-se por novas e belas ideias, e o fazem conversando e chegando à imagem que a todos une, e não guerreando ou impondo reformas. Afrodite-se, e com doçura um mundo de consensos belos se fará ninho do florescimento e de frutos que a todos nutrem.

Foi de Platão que os florentinos, liderados pelo sábio Marsilio Ficino (1433-1499), cevado pelos Medici Cosimo (1389-1464) e seu neto Lorenzo (1449-1492), formaram a imagem daquela deusa que brilha nos quadros de Sandro Botticelli (1445-1510) e de outros pagãos do Renascimento. Tratavam de uma Afrodite Urânia, celestial, que oferece dons sublimes, com amor. E como os homens haviam se esquecido de Vênus? Foi quando uma doutrina erotofóbica se impôs, no século IV, no Império Romano, e agrediu a deusa dos sorrisos e prazeres, destruiu-lhe templos e imagens, combateu culturas do amor, para grande trauma da humanidade, e para impor a estranha imagem de uma deusa que procria sem copular; mas mesmo os que em moralismos pudicos combatem a força de Eros, só podem vir ao mundo e nele bem viver pelo poder de Afrodite. Afroditemo-nos, pois!

FRANCISCO MARSHALL

21 DE MAIO DE 2022
DRAUZIO VARELLA

DIABETES E COVID

Desde o início da pandemia, ficou claro que pessoas com diabetes corriam risco de apresentar as formas mais graves da covid.

Logo em maio de 2020, a revista The Lancet Diabetes & Endocrinology publicou uma série de recomendações para os cuidados que os médicos deviam ter com os pacientes com diabetes, durante a pandemia. A mesma revista avaliou o risco de morte em pessoas com diabetes ao contrair o Sars-CoV-2. Depois de ajustar estatisticamente fatores como sexo, idade, etnia, região geográfica e situação econômico-financeira, foi demonstrado que pacientes com diabetes do tipo 1 correm risco de morte 3,5 vezes mais alto do que aqueles com covid, mas sem diabetes. No caso dos que sofrem de diabetes do tipo 2, esse risco foi duas vezes mais alto.

No mesmo número da revista, foi publicado um estudo mostrando que, nos dois tipos de diabetes, a mortalidade guarda relação direta com os níveis de hiperglicemia, isto é, quanto mais elevada a glicemia, maior o risco de perder a vida.

Os autores chamaram a atenção para a importância do controle adequado do diabetes durante a pandemia, porque o descontrole das taxas de açúcar no sangue compromete a resposta imunológica e dificulta a defesa contra infecções.

À medida que a pandemia progrediu, ficou evidente que covid e diabetes interagem de acordo com uma fisiopatologia complexa. O prognóstico da infecção pelo coronavírus em pessoas com diabetes não só é mais grave, como pode desencadear complicações como a cetoacidose e o aumento dos níveis de glicemia, eventualidades que podem levar à morte.

O mecanismo provavelmente envolve a enzima conversora da angiotensina (ACE2), na qual o vírus ancora para entrar nas células, causando a síndrome respiratória aguda. Como essa enzima está presente nas células beta do pâncreas, o coronavírus pode destruí-las comprometendo a produção de insulina, causa de hiperglicemia e cetoacidose.

Mesmo os que apresentaram formas leves da covid tiveram risco mais alto de diabetes, no decorrer de um ano. Pacientes com índice de massa corpórea (IMC) na faixa da obesidade tiveram mais do que o dobro de risco, nesse período.

Essas observações levaram à suspeita de que a infecção pelo Sars-CoV-2 pudesse causar diabetes em pessoas sem a doença. Os dados, no entanto, não permitiram estabelecer a relação de causa e efeito.

Há um mês, a mesma revista publicou um estudo conduzido com grande número de participantes que aborda essa questão. Epidemiologistas do Hospital dos Veteranos em Saint Louis, nos Estados Unidos, compararam o risco de desenvolver diabetes nos 12 meses seguintes à covid, com o de um grupo-controle formado por pessoas que nunca foram infectadas pelo coronavírus. Participaram 180 mil mulheres e homens que sobreviveram à doença. A metodologia empregada pelos pesquisadores foi a mesma que lhes permitiu demonstrar, meses atrás, que pacientes curados de covid correm risco mais elevado de desenvolver insuficiência renal, insuficiência cardíaca e AVC.

O presente estudo revelou que a infecção pelo Sars-CoV-2 aumenta em 40% o risco de desenvolver diabetes nos 12 meses seguintes. Praticamente todos os casos foram de diabetes do tipo 2, aquele em que as células se tornam resistentes à insulina, ou o pâncreas não a produz em quantidade suficiente (no tipo 1, o pâncreas perde a capacidade de produzir insulina).

A probabilidade de surgir diabetes no ano seguinte aumenta de acordo com a gravidade da covid. Aqueles hospitalizados na fase aguda da infecção bem como os que precisaram ser internados em UTI, correram três vezes mais risco de desenvolver diabetes do que os participantes do grupo-controle.

Mesmo os que apresentaram formas leves da covid tiveram risco mais alto de diabetes, no decorrer de um ano. Pacientes com índice de massa corpórea (IMC) na faixa da obesidade tiveram mais do que o dobro de risco, nesse período.

Apesar do rigor com que os epidemiologistas conduziram a pesquisa, há ainda alguns pontos obscuros:

Os participantes são veteranos de guerra, na maioria homens brancos, mais velhos, muitos dos quais com pressão alta e excesso de peso. Os resultados seriam os mesmos em outras populações?

Será que os participantes não poderiam ter diabetes não diagnosticado antes da covid?

No grupo-controle não poderia haver casos de covid assintomática?

A OMS contabiliza pelo menos 600 milhões de pessoas infectadas pelo Sars-CoV-2. Um aumento do risco de diabetes entre elas - por pequeno que seja - terá grande impacto na saúde pública.

DRAUZIO VARELLA

21 DE MAIO DE 2022
MONJA COEN

FRRRIIIIO E CALOOOR

Certa ocasião, num mosteiro antigo, um jovem monge pediu ao mestre que o ajudasse. Como suportar o frio ou o calor? E o mestre respondeu:

- Vá para um lugar onde não haja nem frio nem calor. - Onde é esse local, Mestre?

- No frio, seja o frio. No calor, seja o calor - respondeu o mestre.

Será que conseguimos aceitar as condições climáticas sem reclamações? Compreendemos o que está acontecendo e tomamos providências para que seja menos sofrido?

Tem havido um frio prematuro, agora em maio. Afinal o inverno só teria início daqui um mês, dia 21 de junho. Dia do solstício de inverno. Nessa data, a noite é bem mais longa do que o dia no Hemisfério Sul, marcando o início da época mais fria do ano.

Inverno tem começo, meio e fim. O outono não se torna inverno, mas há dias invernais.

Os plátanos deixam suas grandes folhas amareladas espalhadas pelo chão. Tangerinas ou bergamotas brilham douradas entre os tons de verdes. Época das folhas que caem, como se um pincel mágico transformasse a realidade pintando os campos e as cidades de cores mais amareladas, marrom, vermelhas.

Estive em Passo Fundo recentemente. Houve um encontro holístico e fui convidada a dar uma palestra. Depois de dois anos fechada, enclausurada pelos perigos da covid, cheguei ao local do evento - um pavilhão com mais de 1,2 mil pessoas. A maioria sem máscaras. Eu, que só ando de máscara, mesmo dentro de casa, me surpreendi. Porém, a surpresa maior foram os aplausos de pé antes de eu poder dizer qualquer palavra.

Quanta ternura! Comovida, agradeci e falei sobre um último livro: Da Negação ao Despertar. A via negativa é um caminho que nos leva ao despertar. Negamos o que não é para chegarmos ao que é, assim como é.

Este assim como é não é fixo, nem permanente. Todo instante se transforma, como as células em nosso corpo, no planeta, no sistema solar, na via láctea, no universo. Despertar é sair do casulo de se considerar isolada, diferente, amedrontada. Despertar é reconhecer até o medo e a dor, bem como a coragem, a alegria e o prazer de viver.

Visitei um novo templo rural, com paredes de madeira antiga de duas, três gerações e paredes novas de pau a pique, cuja terra foi pisada, amassada e com as mãos moldada entre garrafas de vidro que permitem a luz entrar. Para trazer o novo, não precisamos destruir completamente o velho. Reutilizar materiais, como antena parabólica que mantém a estrutura de uma pequenina capela de Kannon.

Kannon é um bodisatva, ser desperto da compaixão ilimitada. O nome do grupo, liderado por minha primeira discípula ordenada monja Isshin Sensei (Keith Havens), é Águas da Compaixão. Kan (observar profundo) e On (os sons do mundo) simbolizam a capacidade humana de sentir compaixão, de cuidar com respeito e dignidade de todas as formas de vida. Será que conseguimos estimular habilidades de ternura e inclusão em nós?

O teto da sala de Buda foi presente dos povos indígenas - trama de palha cruzada. Um casal da Umbanda trouxe muito Saravá. Axé. Havia uma imagem de Nossa Senhora Aparecida - Amém.

Fomos abençoados por chuva e sol, alimentação saudável, feita em casa, dos produtos orgânicos tirados da horta. No outono, o pinhão na comida. No inverno, o fogo da lareira e do fogão de lenha deixam as casas cheirosas. E quem vem de longe, pela estrada, logo vê a luz da lua se misturando com a fumaça.

Ó de casa! - grita do lado de fora quem chega. A casa é sua! - reponde alguém de dentro.

A porta se abre e já não há nem dentro nem fora, pois nunca saímos de casa. Mãos em prece.

MONJA COEN

21 DE MAIO DE 2022
J.J. CAMARGO

QUANTA CORAGEM É POSSÍVEL TER?

"Somos feitos de carne, mas temos de viver como se fôssemos de ferro." (Sigmund Freud)

Reiteradas vezes se disse, e com razão, que quando estamos felizes rimos das mesmas coisas, muitas delas tolas, porque a felicidade é monótona no jeito de se expressar e menos criativa do que a amargura em se expor.

Isso explica, em grande parte, a efervescência criativa e inspiradora do artista durante suas crises existenciais, e a inércia assumida na calmaria. Segundo Ariano Suassuna, tudo que é bom de viver é ruim de contar, tudo ruim de viver é bom de contar, e ninguém passaria da terceira página de um romance que descrevesse, dia após dia, a felicidade de um casal perfeito.

Em contrapartida, o sofrimento caótico desperta o que temos de melhor ou pior, e não conseguimos conter o que sentimos, porque é na essência o que somos, sem filtros para evitar o ridículo que conseguimos ser ou o virtuoso que adoraríamos aparentar. Mas nesse transe nunca somos iguais e raramente nós repetimos.

Alguns, os frouxos, se excedem na vileza, choramingam e quase miam no relato de uma dor qualquer, que por ser propriedade dele é, por suposto, única e inexcedível.

Outros, os estoicos, se revelam contidos, conscientes de inutilidade da queixa transferida a quem só exercitaria a impotência, e do desperdício de autoestima na exposição fútil do nosso quinhão de sofrimento. Na oncologia, como em nenhuma especialidade, os dois modelos se expõem, irreprimíveis. Mas também em outras situações terminais a resiliência ou a falta dela se revelam.

O Ramiro era descendente de espanhóis de Oviedo que emigraram nos anos 1950 para o Brasil, onde aportou sem custos, trazido no útero da mãe.

Grande fumante, só percebeu que era hora de parar quando a reserva bateu em 40%, nesta grande arapuca à espera dos incautos fumantes que nunca percebem a falta de fôlego antes de terem destruído 60% do órgão, que tem uma reserva maravilhosa.

Vítima de uma doença progressiva, quando baixou de 20% do valor presumido foi encaminhado para avaliação de transplante, uma indicação reservada à minoria de ex-fumantes que preservam os outros órgãos intactos.

Ao iniciar os exames, a primeira recomendação, típica de quem não abre mão do comando: "Quaisquer que sejam os resultados dos exames, a conversa é comigo".

Não sei quanto havia de premonição naquele pedido, mas se a intenção era proteger a família, a recomendação fez todo o sentido.

Chegando aos 70 anos, com doença vascular difusa e disfunção hepática e renal, o transplante estava contraindicado. Ele ouviu silencioso e impassível as razões da negativa e permaneceu por um tempo assim, olhando o vazio, enquanto as más novas eram metabolizadas. Depois, suspirou e retomou o leme:

- Vamos manter esta notícia entre nós. Minha família depende muito de mim e eu preciso de tempo para prepará-los. Eles sempre só souberam ser felizes, e não faz sentido que comecem a aprender tristeza, justo quando não podem ajudar. Então vamos poupá-los, por enquanto. Quanto a mim, prometo que, se o senhor me ajudar, eu seguro as pontas!

Talvez não haja maior expressão de coragem do que poupar seus amados do sofrimento extemporâneo e inútil.

J.J. CAMARGO

21 DE MAIO DE 2022
DAVID COIMBRA

Meu celular está sem bateria - de novo

Estou com um certo TOC com a bateria do celular. Se ela está com 50 ou 60% de carga, fico ansioso, quero botar no carregador. Onde é que está o carregador? Quem pegou o maldito carregador? Carregadores são objetos arredios, estão sempre se escondendo. Quando acho o carregador, só encontro a satisfação se chega a 100%. Ah, o celular com 100% da bateria e o tanque do carro cheio. Estou pronto para as batalhas.

Acontece que os 100% são ilusão. Nunca vi nada que dure menos do que esses 100%. É o contrário dos aplicativos de carro. Quando você chama um carro de aplicativo e ali marca que o carro chegará em dois minutos, pode esperar oito minutos. Eles mentem para a gente. Querem que pensemos: "Ah, que bom, só dois minutos", e se der atraso alegam que foi um acaso. Não é acaso, é método.

Nos Estados Unidos, se você vai a um restaurante e tem que esperar uma mesa, eles dizem: "São 20 minutos de espera". Nunca é. Sempre são 10 ou até cinco minutos. Assim, a reversão de expectativa é positiva. Você fica feliz. No Brasil é o contrário. Eles dizem que a espera será de 10 minutos e acaba sendo de 30. Você se irrita, dá vontade de ir embora, só não vai porque já esperou 20 minutos.

Os 100% da bateria são a mesma coisa. Você tira o celular da tomada e, quando olha de novo, já está em 98% ou 97%. É bastante? Eu deveria me contentar? Decerto que sim, mas não me contento. Queria os meus 100% que juram que tenho.

Na verdade, nada é assim pleno, não é? É como um time de futebol. Ele não vai jogar bem todas as partidas, ele não vai atacar o tempo inteiro, ele não vai vencer todas. Porque é impossível estar sempre atento e concentrado. Um dia você se distrai e não vê o leão que rasteja pela savana. Aquele lema dos meninos de Baden Powell, "Sempre alerta!", é impossível de ser realizado.

Mas não posso me satisfazer com o quase. Não em todos os aspectos, pelo menos. Se vou a um restaurante e provo um prato excelente, exijo aquela excelência todas as vezes que voltar lá. De certos autores espero no mínimo a boa prosa em cada texto. E, na música popular, tem os Beatles. Os Beatles alcançaram 100% de qualidade.

Por que não querer isso de certos serviços mais básicos como o carro por aplicativo?

Estou sempre em busca do melhor, donde minha ansiedade com a bateria. No entanto, o mundo é tristemente torto. Vou ali pegar meu celular com 64% e sair meio frustrado por aí. Se você ligar e eu não atender, não se preocupe; devo estar sem bateria.

DAVID COIMBRA

21 DE MAIO DE 2022
FLÁVIO TAVARES

OS SONS

Muito já se publicou sobre o ciclone ou vendaval que não chegou a consumar-se, mas volto ao tema porque vale prevenir-se para evitar o pior. Ademais, os sons que anunciam o horror continuam a ecoar. Até a denominação do ciclone - Yakecan, ou "som do céu", em tupi-guarani - já define o perigo.

O "som do céu" é uma advertência ao desleixo humano. Um poder maior e imensurável nos alerta sobre as mudanças climáticas que nosso estilo de vida alimenta e faz crescer. Sim, pois a sociedade de consumo nos conduz a uma trama sinistra, guiada por falsas ideias de conforto e bem-estar que aceleram as mudanças do clima.

Sabemos que o "efeito estufa" causado pelo acúmulo de monóxido de carbono na atmosfera é a causa exponencial das mudanças climáticas, mas seguimos usando combustíveis fósseis no dia a dia. Destruímos a floresta amazônica em vez de preservá-la e, hoje, ela já polui tanto quanto sequestra CO².

Os automóveis movidos a gasolina ou diesel completam o quadro da tragédia à vista, mas continuamos a ignorar os carros elétricos. Aqui no RS, chegou-se ao absurdo de tentar explorar uma mina de carvão a céu aberto em terras de banhado, junto ao Rio Jacuí, a 14 quilômetros da Capital, e que, em poucos anos, transformaria o Guaíba em pestilento curso d´água. Sacrificaríamos o bem essencial - a água - pela cobiça de poucos.

Somados, esses absurdos são a causa das mudanças climáticas que, como agora, no outono nos impõem frio e vento de inverno intenso.

Por isso, os "sons do céu" são bem-vindos como alerta. Mas basta que todos ponham um tijolinho na mudança dos hábitos de consumo para evitar o desastre anunciado.

Há, também, os perigosos sons que o presidente da República emite, como dias atrás, quando citou 1964, ano do golpe militar que implantou a ditadura.

As repetidas vezes que Bolsonaro insinua um golpe de Estado e fala em "fraude" na próxima eleição presidencial soam como tentativas de nos habituar ao próprio golpe, sem o tomar como aberração em si.

FLÁVIO TAVARES

21 DE MAIO DE 2022
OPINIÃO DA RBS

O EXEMPLO DE PASSO FUNDO

Enquanto ainda se tenta encontrar as melhores formas de, na prática, recuperar as perdas causadas pela pandemia na aprendizagem de crianças e adolescentes, vem de Passo Fundo um belo exemplo, a ser mais bem observado por outras administrações municipais preocupadas com o mesmo problema. O case da cidade do Planalto Médio do Estado desperta interesse pelo olhar amplo sobre os alunos. Parte da premissa que as dificuldades para o objetivo final - assimilar os conteúdos - muitas vezes envolvem uma série de outras questões ligadas a individualidades ou sequelas psicossociais decorrentes do longo período de escolas fechadas.

A fórmula do Centro Pós-Covid de Combate à Desigualdade Educacional, como explica reportagem de Isabella Sander publicada na sexta-feira em Zero Hora, é o atendimento multidisciplinar e integrado. São beneficiados estudantes da Educação Infantil e do Ensino Fundamental da rede local, que se organizou para dar suporte psicológico e de serviços complementares. Profissionais das áreas de psicopedagogia, psicomotricidade, fonoaudiologia, neurologia e psiquiatria, entre outros, fazem parte da equipe montada pela prefeitura para detectar e tratar outras causas que podem contribuir para dificultar a aprendizagem. O encaminhamento dos alunos é feito pelas próprias escolas, após serem notados outros aspectos que estariam afetando a capacidade de aprender e recuperar o déficit de ensino. Assim, como diz o próprio nome do centro, é possível vencer a desigualdade no processo de aprendizagem.

O déficit de aprendizagem, motivo de grande apreensão pelos reflexos no futuro das crianças e dos adolescentes, vem aparecendo de forma recorrente nas avaliações dos estudantes. Mais grave ainda é evasão escolar decorrente do afastamento das salas de aula durante o período mais crítico da pandemia. O Instituto de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) divulgou na quinta-feira indicadores que confirmam essa adversidade. Considerando-se a rede pública, no Ensino Médio 10,7% dos alunos gaúchos abandonaram os estudos no ano passado, ante 7% em 2020. A taxa do Rio Grande do Sul é o dobro da nacional.

Os primeiros dados de 2022 da Secretaria da Educação do Estado, no entanto, já mostram números melhores, com 296 mil matriculados, ante 250 mil em 2021. Lançado no final do ano passado, o programa Todo Jovem na Escola paga um auxílio de R$ 150 mensais para alunos de baixa renda continuarem frequentando o Ensino Médio e, de acordo com a pasta, ampara hoje 67 mil estudantes.

Recente estudo divulgado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) estima o impacto da pandemia na renda da geração atual de estudantes. É alarmante. Entre os países do G-20, grupo que inclui nações ricas e em desenvolvimento, os brasileiros terão a terceira maior perda de renda ao longo da vida, na ordem de 9,1%. Apenas Indonésia e México aparecem em situação pior. Tanto os resultados de avaliações dos alunos quanto as projeções de repercussões futuras reforçam a obrigatoriedade de a educação e a recuperação das perdas de aprendizagem serem prioridade no país. O exemplo de Passo Fundo surge como um experimento a ser conhecido por outras prefeituras e replicado onde for possível, para ajudar a impedir uma possível tragédia geracional.

 


21 DE MAIO DE 2022
J.R. GUZZO

Vitória na Eletrobras

Conteúdo distribuído por Gazeta do Povo Vozes

Não acontece toda hora - muito pelo contrário - e por isso mesmo chama atenção quando acontece: o Brasil e os brasileiros acabam de ganhar uma entre as muitas batalhas que perdem para a máquina estatal e a todo-poderosa federação de interesses que tira proveito dela. Enfim, após anos e anos de batalha, enfrentando contestação enfurecida, o bombardeio de sindicatos, procuradores, juízes, ministros e políticos, e os mais agressivos atos de sabotagem, o governo conseguiu aprovar a privatização da Eletrobras - um dinossauro que, como outros, atenta contra o interesse público, serve à corrupção e ao empreguismo, e retarda a produção e a distribuição de energia no país.

Como ocorreu na lei do saneamento, que abriu para a iniciativa privada o investimento num setor em que o Estado não fazia nada e não deixava que ninguém fizesse, a privatização da Eletrobras vai influir de forma decisiva na evolução da economia brasileira. É, como no caso do saneamento, uma libertação.

A partir de agora, com a entrada efetiva de capitais privados na área de energia, o Brasil ganha algo de que estava desesperadamente necessitado, e que a pátria das empresas estatais impedia: investimentos em volume mais adequado às imensas necessidades do setor. O Estado não tem a capacidade de fazer isso; quanto mais arrecada em impostos, mais gasta com a sua própria máquina e menos tem para investir em projetos de interesse público. Ajuda a prosperidade das castas que sugam o Tesouro Nacional. É um desastre para a prosperidade do Brasil.

As gangues que guerrearam sem trégua contra a privatização da Eletrobras, que será feita com a emissão para os investidores de novas ações da companhia, fizeram tudo o que era possível para sabotar o processo. Desta vez, porém, tiveram pela frente uma das mais competentes, decididas e persistentes equipes de privatização jamais montadas num governo brasileiro.

Resistiram até o último instante, com guerrilha legal, chicanas políticas e o resto do seu repertório, ao impecável trabalho técnico feito no caso pelo governo. No fim, perderam por 7 a 1 no Tribunal de Contas da União - um fenômeno, realmente, pois em geral esse é o placar que o governo obtém contra as suas causas nas altas instâncias do poder Judiciário em Brasília.

O maior inimigo do povo brasileiro, sobretudo depois da Constituição de 1988, é o Estado e a multidão de parasitas que vivem e enriquecem às suas custas. Desta vez eles perderam, como no caso do saneamento, mas estão muito longe de largar o osso.

Basta ver a presente campanha eleitoral, em que um dos candidatos apresenta a reestatização do que foi privatizado, e a criação de novas empresas estatais, como uma das joias do seu projeto de governo. O Brasil Velho está mais vivo do que nunca. Acha que o que tem é pouco. Quer muito mais.

J.R. GUZZO

21 DE MAIO DE 2022
MARCELO RECH

Pugilato virtual

Quando foi que os países começaram a parecer terem se partido em dois, com cada metade achando que precisa salvar a nação da outra metade? Para o psicólogo social Jonathan Haidt, professor da New York University, o início do grande cisma, definido por ele como a queda da Torre de Babel, pode ser datado em 2009, quando o Twitter criou o botão de endosso e compartilhamento de posts, logo seguido pelo Facebook e sua obsessão por likes.

O mecanismo se mostrou tão diabolicamente eficaz quanto perverso. Para extrair dados dos usuários e vendê-los aos anunciantes, as mídias sociais precisam estimular ao máximo a interação com os conteúdos. A cada clique, as preferências vão sendo consolidadas, e hábitos, gostos, vida privada e aspirações vão sendo entregues aos donos das redes. Logo, as mídias sociais descobriram que conteúdos que despertam emoções, como raiva e indignação, geram mais interações e dados. E assim os algoritmos foram calibrados para colocar diante dos olhos dos incautos usuários mais e mais conteúdos que disseminam teorias da conspiração, fomentam a descrença nas instituições e ridicularizam ou brutalizam grupos sociais, transformados em inimigos.

Em artigo na revista The Atlantic, Jonathan Haid nota que, nas redes, mesmo frivolidades se tornaram objeto de discussões grosseiras e cita estudos que mostram a captura das discussões por pequenos grupos de "idiotas" que afugentam do debate a grande maioria que se guia pelo bom senso e pela racionalidade. Boa parte dos que mantêm o conflito digital constante sequer se dá conta de que foi recrutado como soldado a serviço de causas alheias, trabalhando de graça para as redes e os senhores da guerra. Como disse um ex-engenheiro do Twitter citado por Haidt, "ao criarmos o botão de compartilhamento, demos um revólver carregado para uma criança de quatro anos".

O ambiente de mútua hostilidade é mais uma exacerbação produzida pelas redes sociais. Uma pesquisa de dezembro passado, realizada pelo DataSenado e divulgada nesta semana, mostrou que 21% dos 5.850 brasileiros entrevistados se declaravam de direita e 11% de esquerda. Se levarmos em conta que apenas uma fração deles poderia ser qualificada de extremista fanatizada, chegamos a uma realidade social em que, em silêncio ou discrição, a maior parte da população virou refém de um debate radicalizado, do qual opta por manter distância segura.

Jonathan Haid é pessimista quanto ao futuro. Ele acredita que novas formas de radicalização pela direita populista e de execração social do pensamento dissidente pela esquerda ainda vão piorar antes de melhorar. Mas também pode ser que não. A mesma pesquisa do DataSenado revela que a grande maioria dos brasileiros não se alinha com os campos conflagrados. E a surpreendente união de países europeus contra a invasão da Ucrânia mostra que, diante de uma ameaça maior, a vida real acaba falando mais alto que o pugilato virtual.

MARCELO RECH

O jardineiro do palácio

Clorofitos, dionelas, coleus, strelitzias e alamandras são velhos conhecidos do Seu Darci, como é chamado pelos colegas, mas o que ele gosta mesmo é de ver as azaleias no auge, durante a primavera: em arbustos redondos, cheios e bem cortados, polvilhados de flores rosadas. Há duas décadas, Darci Figueiró, 69 anos, é jardineiro do Palácio Piratini - que acaba de completar 101 anos de história.

A missão chegou de surpresa. Certo dia, no início dos anos 2000, um emissário da Casa Civil foi até o Jardim Botânico de Porto Alegre em busca de um servidor para cuidar das plantas que ornamentavam a sede do governo do Estado. Seu Darci, que já havia feito cursos de jardinagem e paisagismo, foi o escolhido. Não perdeu tempo:

- Na segunda-feira seguinte, às 8h da manhã em ponto, eu me apresentei para trabalhar.

Logo que assumiu a função, ele se dedicou à Fonte da Egípcia, um recanto único, no quintal da ala residencial. Ali, entre ficus e pingos d?ouro, há uma estátua de ferro fundido na forma de dançarina egípcia (veja ao lado).

- Os ficus estavam desnivelados. Tirei as medidas e vim com serrote, facão e até machado. Fiz uma poda radical. O pessoal até se assustou, mas, em seis meses, estava tudo novo, lindo de se ver - recorda ele, orgulhoso.

Dali em diante, todos os canteiros passaram por melhorias. Seu Darci mandou vir da Ceasa caixas de begônias, amores-perfeitos, crisântemos e tudo mais que se possa imaginar.

- Fui enfeitando. É importante combinar bem as plantas. E saber o que é de sombra e o que é de sol. A grama preta, por exemplo, precisa de pouca luz - ensina.

Aos poucos, o experiente jardineiro - gaiteiro de mão cheia nas horas vagas - vem diminuindo o ritmo. Já está aposentado, mas ainda não pensa em parar.

- Gosto do que faço. Cuidar das plantas faz bem, dá uma energia boa. Nasci para mexer na terra - conclui Seu Darci, com a tesoura de corte na mão, enquanto poda um paredão verde nos fundos do palácio.

arte

O Jardineiro

Em 1899, o pintor francês Camille Pissarro concluiu O Jardineiro, (à esquerda). Com pinceladas curtas e luminosas, retratou o jovem de chapéu de palha em um dia de verão. A obra é da Staatsgalerie Stuttgart, na Alemanha, e não é a única sobre o tema.

Anos antes, o artista já havia pintado outro jardineiro, na figura de um velho camponês com um repolho na mão (no destaque). A tela pertence à National Gallery of Art, nos EUA.

JULIANA BUBLITZ 

sábado, 14 de maio de 2022


14 DE MAIO DE 2022
MARTHA MEDEIROS

Avalanche de existência

Ninguém nasce para uma vidinha besta. Sonhamos em ter pensamentos que nos façam crescer, conversas que nos inspirem a evoluir. Em ser abertos às novidades, em escutar os outros com interesse verdadeiro. Gostaríamos de acessar os sentimentos secretos de desconhecidos, não para fazer julgamento moral, mas para identificar nossas próprias loucuras. Saber de onde viemos e por que as coisas são como são, a fim de mudar o mundo. Redes sociais nos distraem e, dependendo de quem seguimos, nos informam, mas é pela leitura que começa a revolução de nos transformarmos em alguém que valha a pena.

Aí surge o intrigado: mas ler não seria o contrário de socializar? Um isolamento improdutivo, enquanto a correnteza da vida passa lá fora, por trás da janela? Leio de cinco a sete livros por mês e acho graça de quem se compadece da minha sina: "coitada, não vive".

Como toda cidadã mundana, vivo regularmente. Trabalho, namoro, viajo, frequento bares, faço exercícios e gasto um bom tempo xeretando no celular, mas ao menos por 30 minutos diários eu grudo em algum livro, e em vez de perder a correnteza que passa por trás da janela, derrubo a parede e inundo a casa toda, meu universo inteiro. Fico encharcada de existência.

Aos 11 anos, perdi pai e mãe num acidente de avião. Depois de me aposentar, fundei uma companhia de dança. Sou negra, criada pela minha avó. Tantos anos de batina e nunca havia escutado a confissão de um assassinato. Fui adotado por uma dona de bordel. Passei quatro anos sonhando todas as noites com Leila Diniz, minha ex-mulher. Morei dois anos na Índia e voltei reconciliado com a solidão. Chego todo dia exausto do trabalho e meu vizinho faz tanto barulho que um dia ainda vou matá-lo. Atravessei sozinha os Estados Unidos de carona. 

Ninguém foi tão pirada quanto minha mãe, nem tão poética. Estou ficando cega. Até os 19, eu nunca tinha comido um bife. Morei três meses dentro de um aeroporto. Fui estuprada uma manhã, ao sair de casa para correr. Ganhei o Nobel da Paz depois de ficar 27 anos preso. Minha cidade começou a ser bombardeada no instante em que minha família se sentou para jantar. Estávamos em lua-de-mel quando meu marido revelou que era bissexual. Meu filho mais velho é trans. Fiquei milionário fazendo jingles para um fascista. Me apaixonei por uma mulher casada.

Cada um de nós tem sua própria história, bonita e sofrida, mas insuficiente para que haja uma compreensão vasta do mundo. Para se ter a consciência realmente expandida e empática do que acontece lá fora, para embrenhar-se nos corações e mentes dos estranhos que adoramos condenar à distância, só derrubando paredes. Não há ninguém mais desinteressado pela vida do que o dono de uma estante vazia.

MARTHA MEDEIROS

14 DE MAIO DE 2022
CLAUDIA TAJES

Atendimento eletrônico

Já foi Pour Elise nas mais trágicas versões, da marimba ao sax. Pode-se mesmo dizer que a tortura aos ouvidos do cliente começou com Pour Elise, o marco zero das trilhas do atendimento eletrônico. Incontáveis minutos de tururururururururu na orelha, até a ligação cair sem que a solicitação sequer começasse a ser atendida. Quem nunca?

Beethoven não merecia isso. Nós também não.

Hoje em dia, só o atendimento eletrônico verdadeiramente raiz continua recebendo suas vítimas, digo, consumidores, com Pour Elise. Diferentes músicas e propagandas se alternam nos mais diversos call centers enquanto o consumidor, digo, a vítima, pena para chegar a um atendente de carne e osso. Sem sucesso, na maioria das vezes. Você é do tipo que não gosta de fazer nada pelo site e quer resolver uma pendenga da conta da luz, por exemplo. 

Prepare-se para ouvir a história de glórias da concessionária desde a descoberta da eletricidade por Tales de Mileto. De vez em quando, a voz de um robô tenta minar sua determinação: su-a-po-si-ção-na-fi-la-é-8765. Acontece que, se o assunto não for resolvido, sua casa fica no escuro. Então você persiste. Sem querer minar sua determinação: o assunto não vai ser resolvido e sua casa vai ficar no escuro.

E a música eletrônica enquanto o paciente aguarda para marcar uma consulta com o cardiologista? A única explicação é que o filho DJ do médico estava precisando de uma força para mostrar seu trabalho. Se a pessoa sair dançando ao som da interminável espera da central, o doutor corre o risco de perder um paciente.

Nem vamos falar do atendimento dos planos de saúde. Não se deseja a ninguém a desventura de ligar para uma dessas operadoras. Nem para as operadoras de telefonia. Para as de TV a cabo, então, que os céus mantenham esse infortúnio longe de todos. Se precisar falar com uma companhia aérea, mais rápido pegar um ônibus e ir até a sede de São Paulo. Só que, às vezes, não há o que fazer. Então você abraça a família, avisa que vai passar um longo tempo fora e, estoicamente, liga.

- Bem-vindo à nossa empresa. Digite seu CPF. Digite seu RG. Digite sua data de nascimento. Dados incorretos, digite pausadamente. Dados incorretos. Certifique-se de sua data de nascimento e ligue novamente. Nossa empresa agradece o seu contato.

- Bem-vindo à nossa empresa. Se você já é cliente, digite um. Se você não é cliente, digite dois. Dois. Você não é cliente. Para ser atendido, entre em contato com nosso 0800, faça um plano, indique um amigo e ligue novamente.

- Bem-vindo à nossa empresa. Tutututututu.

- Bem-vindo à nossa empresa. Todas as nossas posições estão ocupadas. Em instantes, você será atendido. Enquanto isso, você sabia que nossos salames são feitos com carnes selecionadas e atendem aos mais rigorosos padrões de qualidade? O abate de nossos rebanhos é feito da seguinte maneira... (Nota da Redação: é aí que você desliga para não desmaiar com os detalhes.)

- Bem-vindo à nossa empresa. Você sabia que pode resolver todos os assuntos no nosso site? Entre em www.naomeincomodaquetenhomaisoquefazer.com.br, procure o seu problema e ache você mesmo a solução. Pedimos que fique em linha para avaliar nosso atendimento.

Pensando bem, o atendimento eletrônico era mais humano no tempo de Pour Elise.

CLAUDIA TAJES

14 DE MAIO DE 2022
LEANDRO KARNAL

RESSENTIR

Historiador, professor da Unicamp, autor de, entre outros, "Todos Contra Todos: o Ódio Nosso de Cada Dia".

Alguns ismos colaboraram: Cristianismo, Islamismo, Socialismos... As redes sociais e a própria evolução da ideia de Democracia também ajudaram a ladrilhar este chão. Do que estou falando? Da construção de uma ordem simbólica baseada na ideia de igualdade. Se existe diferença social, ela teria sido baseada no pecado ou na construção de mecanismos injustos de exclusão econômica. Porém, no fundo, todos seríamos ou deveríamos ser iguais. A igualdade é concebida como a realidade e a desigualdade, como uma anomalia produzida pelo desvio de um plano natural ou divino.

Para Rousseau, temos uma perfectibilidade que, juntamente com a liberdade, permite nossa distinção dos animais. Claro, o homem de Genebra também percebe que essa característica é fonte de quase toda infelicidade. Criamos um contrato social e, ao mesmo tempo, a desigualdade. Alguém se apropriou de uma parte da terra comum e ninguém o contestou. Em Rousseau, em Marx ou em Jesus, a igualdade era o plano original e feliz. Houve um desvio ou uma queda do homem natural para o que vemos agora.

Proposta por filósofos, defendida por profetas e estimulada por brechas abertas a partir da Revolução Francesa, paira sempre a ordem simbólica ideal da igualdade. O que mudou? O mundo é desigual há milênios, porém, agora, há redes sociais.

Há mais de 200 anos, se o povo quisesse ver Versalhes, teria de invadir o palácio em gesto com sangue e ousadia. Hoje, Maria Antonieta posta seus looks nas redes todos os dias: "Eu no Salão dos Espelhos com meus sapatos novos kkkkk"; "Sextei com brioches"... A vaidade, o interesse, a dor e toda espécie de novas formas de imaginário social elaboraram a explosão do ressentimento.

Ressentido é quem sente duas vezes. Sente pelo que não possui e tem nova dor pela alegria que identifica naquele que tem. Freud falou sobre a "covardia moral do neurótico". O neurótico se considera superior, moralmente acima da vulgaridade do mundo, todavia, incapaz de mudá-lo. Não perdoa, não age, apenas sente. E ressente. O espaço de ouro para o ressentido é o mundo agressivo das redes. Lá, a covardia pode vir com anonimato, destilar veneno, atacar, agredir e mostrar como o meu inimigo é inferior e imbecil. O que deriva disso? Nada, é uma impotência reconhecida, diluída na incapacidade de o ressentido assumir seu próprio desejo e de agir.

Veja uma distinção importante: existe desigualdade no mundo. Há pessoas que se revoltam contra ela e agem para mudá-la. Caridade, política, revolução: são três caminhos comuns de reação à carência de muitos. Há outros. Penso em quem não age, reflito sobre o ressentido. Ele interpreta a felicidade alheia como retirada dele. Aquele que sorri, no fundo, retirou do meu rosto a alegria. O bom corpo dela/dele estragou o meu. A viagem bonita foi feita em detrimento da minha. A vida que vejo na internet foi roubada de mim. Posso perdoar você por tudo, menos por ser mais feliz do que eu.

De novo: existe desigualdade social e algumas pessoas agem contra. O ressentido não está preocupado com ela, ele está irritado com o gozo material ou emocional que vê nas redes. Todavia, ele disfarça sua dor em julgamentos sociais. Alguém postou a compra de um celular de US$ 2 mil? O ressentido grita: daria muitas cestas básicas para uma comunidade. Ele tem razão, e o celular que o ressentido usa para isso também poderia virar feijão para muita gente. Essa é a diferença entre consciência social e ressentimento, entre ação e pura dor, entre sentimento e ressentimento.

A pessoa que luta por justiça social, por motivos filosóficos ou religiosos, fica perturbada pelo fato de que alguns possam ter um tênis caríssimo e tantos não tenham comida mínima. O ressentido quer o tênis para ele e, não conseguindo, nega-o a qualquer pessoa. Muitos movimentos políticos foram feitos assim: substituir uma forma de dominação que não me beneficiava por uma que me traga vantagens. Claro: tudo em nome do bem...

Separar Freud de Marx pode ser necessário. A dor pessoal pode ser um ponto de partida para qualquer envolvimento político, nunca deveria ser o de chegada. Muitas vezes, Maria Antonieta nos irrita porque gostaríamos de comer brioches no ambiente luxuoso. Como isso é feio como sentimento, melhor afirmar que buscamos a justiça social e a igualdade. O ressentido é um invejoso fracassado tingido com o verniz de Madre Teresa de Calcutá. A busca de uma genuína melhoria da dor alheia por empatia pura é tão rara na luta política como a vocação da freira albanesa na Índia no campo religioso.

Ampliemos. Fui uma criança em uma geração limitada com regras severas e punições diretas. Por que será que crianças mimadas me irritam hoje? Vivem o deleite que me foi negado?

Conhecer a si é o desafio que o Templo de Apolo em Delfos nos envia sempre. Pelo menos saberíamos que estamos lutando com moinhos reais e não gigantes alimentados pela minha dor quixotesca. Essa tem sido a minha esperança: lutar com a minha dor de forma consciente e não ser dominado pelo que me incomoda.

O espaço de ouro para o ressentido é o mundo agressivo das redes. Lá, a covardia pode vir com anonimato, destilar veneno, atacar, agredir e mostrar como o meu inimigo é inferior e imbecil.

LEANDRO KARNAL