sábado, 11 de junho de 2022


11 DE JUNHO DE 2022
MARTHA MEDEIROS

Amor é o jeito

Embalada pelo Dia dos Namorados, me veio à lembrança uma cena do clássico Annie Hall, de 1977, que no Brasil ganhou uma tradução engraçadinha e comprida demais: Noivo Neurótico, Noiva Nervosa. No filme, Alvy, protagonizado pelo próprio diretor, Woody Allen, é um comediante que inicia um relacionamento com Annie, vivida pela graciosa Dianne Keaton. Em determinado momento, estão ambos no terraço de um edifício em Nova York e engatam um papo cabeça, numa evidente tentativa de seduzir um ao outro. 

Enquanto isso, na tela aparecem legendas revelando o que cada um está, na verdade, pensando naquele exato instante. O debate entre os dois é sobre arte, mas Alvy está mais preocupado com outra coisa: "como ela será pelada?". E Annie parece muito segura de suas opiniões, mas, no fundo, se pergunta: "será que ele está me achando inteligente?".

Os começos de relação se parecem entre si. As primeiras conversas são uma mistura de entrevista de emprego com campanha de marketing. Fala-se brevemente sobre a família de cada um e logo começa o exibicionismo de um pretenso bom gosto, a fim de encantar os olhos do "cliente": os filmes preferidos ("Godard era um gênio"), as músicas que amamos ("Leonard Cohen, e você?"), os locais para onde gostamos de viajar ("uma pousadinha na montanha me basta"), nossos hobbies ("ioga, leitura, violoncelo") e nossa lucidez ao opinar sobre política, tudo verbalizado com orgulho, enquanto matutamos em silêncio: será que excluí do Instagram aquela minha foto abraçada no Alexandre Frota?

No fim das contas, tudo o que falamos nos primeiros encontros é uma carta de intenções muito bem redigida e pode até ser 100% honesta (médio: você não pisa numa pousadinha há séculos, só se hospeda em resorts all inclusive), mas o que vai determinar o sucesso ou o fracasso do relacionamento é e sempre será o imponderável.

Hobbies? Música? Ajudam, mas o que apaixona, antes de qualquer coisa, é o jeito. O jeito que a pessoa tem de andar, de mexer no cabelo, de piscar os olhos. O jeito de falar em um tom tranquilo e maduro, de ser charmoso nos pequenos detalhes, de possuir um universo particular a ser descoberto lentamente. O jeito de beijar, de pegar pela nuca, de ficar sério. 

O jeito de sorrir, de brincar e de fazer silêncio na hora certa. O que desencanta? O jeito bobo, sem timing, infantil. A piada sem graça, a chatice de quem bebeu demais, a dramatização por bobagens, o ciúme clichê, a falta de humor, a ausência total de subjetividade. Todas as encrencas virão no pacote e poderão, aos poucos, desgastar o idílio amoroso, mas se houver fascínio recíproco, ficarão juntos, mesmo sem entender o porquê. É o jeito. 

MARTHA MEDEIROS

11 DE JUNHO DE 2022
CLAUDIA TAJES

Anitta, Gusttavo e o círculo perigoso

Ela, louca pela Anitta, sabe todas as músicas e coreografias da poderosa de Honório Gurgel. Ele, fã de carteirinha do gênero sertanejo, conhece todas as duplas, aí incluídas as mais obscuras e desafinadas que o show business já lançou. Os dois cheios de planos para o primeiro Dia dos Namorados que passariam juntos, e acontece o quê?

Um sertanejo mira no tororó da Anitta e acaba por botar no forévis do Gusttavo Lima. A frase não é minha, mas é tão boa que precisei usar. Queria dar o crédito, mas não sei quem foi o autor da pérola.

É a treta de milhões, que começou com a crítica de sempre à Lei Roaunet - só para lembrar, o incentivo que permite a uma empresa repassar até 4% de seu imposto devido para projetos culturais, e que hoje tem um teto de R$ 3 mil por artista - e a menção à tatuagem íntima da Anitta por um cantante sertanejo.

O que o fiofó tem a ver com as calças? Nada. Ou melhor: tudo. Era para ser apenas lacração, mas serviu para abrir a caixa preta das contratações milionárias de shows sertanejos pelas prefeituras de pequenas cidades do Brasil. Isso porque os fãs da cantora e os jornalistas abriram uma sindicância informal, que já está sendo chamada de CPI dos Sertanejos.

Os números são feios, para se dizer o mínimo: R$ 704 mil para Gusttavo Lima cantar na Festa da Banana de Teolândia, cidade baiana com 15 mil habitantes. R$ 1,2 milhão para um show na 32ª Cavalgada do Jubileu do Senhor Bom Jesus do Matozinhos, em Conceição do Mato Dentro, Minas Gerais, cidade com 17 mil habitantes. Além da disparidade no valor dos cachês, um quase o dobro do outro, descobriu-se que a verba para os shows viria de recursos originalmente destinados à educação, à saúde, à habitação, à reconstrução das cidades atingidas pelas chuvas que arrastaram tudo, pouco tempo atrás.

A lista é grande e está em todos os jornais. Caiu aqui: o que será que os críticos da Lei Rouanet estão dizendo agora? Se lá o mecanismo é o da renúncia fiscal, aqui é dinheiro público no duro. Sérgio Reis, o Matuto da Porteira, não demorou a passar pano. Isso não é dinheiro público, é dinheiro para o público, disse ele. Arrã.

Voltando ao tema da coluna, o esperado Dia dos Namorados de Larissa e Beto - digamos que eles se chamem assim. Desde que Gusttavo Lima fez um vídeo reclamando da perseguição a um trabalhador que precisa ganhar bem porque tem uma folha alta, espremendo os olhos para ver se derramava alguma lágrima, o Beto mudou com a Larissa.

- Vocês não respeitam um pai de família. O cara tem dois filhos.

- E precisa cobrar um milhão por show para sustentar dois filhos?

- Quem ganha mais, gasta mais.

- Ele faz show dia sim, dia não. O que alguém faz com tanto dinheiro?

- Esse é o legítimo pensamento de pobre.

- Pois sou e me garanto. Nas atuais circunstâncias, me sentiria rica se ganhasse R$ 10 mil por mês.

- A gente é muito diferente. Melhor esquecer essa comemoração de Dia dos Namorados.

- Tu vai terminar comigo por causa do cachê do Gusttavo Lima?

- E pelo marquês de rabicó da Anitta.

No fim das contas, os dois combinaram de deixar o 12 de junho para lá. Vão se encontrar no dia 13 e recomeçar, as mágoas maiores que o romantismo da data. Larissa só está em dúvida sobre falar ou não para Beto da suspeita de um suposto esquema de rachadinha entre prefeituras e cantores nas contratações milionárias. Escaldada, a mãe dela fez uso de um antigo ditado à guisa de conselho.

- Olha lá, minha filha. A boca fala e o boró paga.

Sábias palavras.

CLAUDIA TAJES

11 DE JUNHO DE 2022
MATÉRIA DE CAPA

Casados a distância

Confiança, criatividade e muito amor definem a receita que deu certo para casais que resolveram assumir o mais simbólico dos compromissos, cada um na sua casa

A história de amor de Mocita Fagundes e Tarcísio Filho já tem quase 13 anos e, desde o começo, é vivida em uma linda e maluca ponte aérea. A produtora de filmes publicitários, de 57 anos, tem residência fixa em Porto Alegre, enquanto o ator, da mesma idade, mora no Rio de Janeiro. É um casamento a distância, do qual os dois dizem se orgulhar muito.

Mocita falou publicamente sobre a relação em abril deste ano, por meio do seu perfil no Instagram. No post, relatou que o casal não se encontrava havia quase um mês, mas que isso não mudava em nada o amor entre eles, que aprenderam a conviver bem com a saudade. "Casamento, para mim, não é acordar e dormir todos os dias juntos. É ter liberdade, respeito e admiração", escreveu ela.

A relação a distância não foi planejada, mas aconteceu por ser a forma mais racional de levá-la adiante, já que suas vidas profissionais estão alicerçadas em Estados diferentes. Para além disso, os filhos de Mocita ainda eram crianças e adolescentes quando o namoro começou, o que demandava a presença da mãe no Rio Grande do Sul.

- Casamento, para mim, é muito mais do que um dia a dia compartilhado. Eu me sinto próxima ao Tarcisinho emocionalmente. Gosto do olhar dele sobre as minhas coisas. Respeito sua opinião, ouço seus conselhos. Morro de tesão por ele. Não preciso estar grudada nele o tempo inteiro. Nem acho isso legal. Casamento é cumplicidade e também liberdade. É daí que vem o respeito e a admiração - afirma Mocita.

O post do casal foi divulgado em um perfil de notícias sobre famosos com mais de 20 milhões de seguidores e suscitou centenas de comentários de toda sorte. Alguns elogiosos ao formato não-convencional, mas outra parte em tom de espanto ou deboche. Mocita conta que os comentários "preconceituosos, machistas e cruéis" revelam uma incompreensão sobre relações mais "fora da caixa", mas em nada abalaram o casamento ou sua autoestima, já que é uma mulher realizada - no amor, na profissão e na maternidade.

Seu relacionamento com o marido, explica, é baseado em um interesse mútuo de estarem juntos para o que der e vier. Já Tarcísio argumenta que, mesmo diferente da maioria, o arranjo funciona para eles e não tem menos ou mais valor do que um casamento tradicional, em que se divide o teto.

- As pessoas são diferentes e têm necessidades diferentes. Para nós, funciona assim. Para outra pessoa, não há de funcionar e está tudo bem. Mas estar junto todo dia não valida nada. Isso, sim, é um mito. Conheço um monte de casais que não fica afim de estar junto o tempo todo, apesar de estar. A presença física diária pode ser muito boa, mas não determina o encanto que você tem por aquela pessoa. Relacionamento é você dividir a sua vida, não importa como seja - pontua ele.

A relação amadureceu ao longo dos anos e não deixou espaço para insegurança. É alicerçada no respeito, na confiança e no entendimento de que cada um é livre em suas escolhas. Mocita conta que, enquanto o marido é mais discreto e curte os momentos em que pode ficar em casa, lendo um livro, ela é fã do agito, do Carnaval, das maratonas de corrida, coisas que são dela e que realiza individualmente. O tempero é a torcida um pelo outro, seja nas conquistas solo ou em dupla.

- Não há insegurança. Aquela mulher é louca por mim e sabe que eu sou louco por ela. Eu faço propaganda da minha mulher, e ela também. Diz "olha meu gato, como tá lindo" e vice-versa, porque a gente admira muito um ao outro. Na verdade, a paixão e o tesão iniciais, quando viram amor, se transformam em respeito e admiração. Essas são as palavras-chave da nossa relação e poderiam ser de qualquer outra, se vendo todos os dias ou mais espaçado.

Estando "no bico dos 60 anos", como define Tarcisinho, e com os filhos de Mocita já adultos, o casal estuda a possibilidade de morar junto no futuro. Até lá, continuam abusando da tecnologia - desde o MSN, nos primeiros anos da relação, ao WhatsApp e o Facetime - para conversar. Do primeiro "bom dia, amor!" ao último "até amanhã". E se encontram quando podem, quando a passagem de avião não está tão cara e quando a saudade aperta.

- Entendemos que nossas prioridades do cotidiano são bem diferentes e convivemos muito bem com isso. Nossa relação, do jeito que é, faz muito sentido para nós. Nosso amor é maduro. Se tivermos que abrir mão de algo, está tudo certo. Eu adoro ir para o Rio ficar com ele e com a Glória, e Tarcisinho adora vir para o Sul - comenta Mocita.

LETÍCIA PALUDO

A DIGNIDADE DOS MAMÍFEROS

Vocês, queridas leitoras e estimados leitores, apresentam sangue quente, como este articulista. Quem registra ancestrais na Calábria ou Andaluzia costuma se orgulhar de ter o fluido vermelho alguns graus acima da média. Talvez seja apenas lenda. A frieza do corpo indica a morte. O calor nos aproxima da vida.

Nossos filhotes precisam ser amamentados. Em quantidades e locais distintos, temos pelos. Nosso coração é dividido em quatro cavidades. Se você se lembra do Ensino Fundamental, algumas dessas caracterí­sticas nos classificam como mamíferos.

Somos também capazes de elaborar narrativas com nossos cérebros desenvolvidos. A chamada Revolução Cognitiva foi fundamental para a ascensão da nossa espécie no planeta. Criamos códigos morais como o interdito do assassinato de outro ser humano. Caim será muito imitado na história; todavia, segue amaldiçoado em público. Matar outro humano é tema de quase todo debate penal. E os animais? Aí­ depende...

A identidade com os mamíferos é muito grande para você e para mim. Há mais gente criando cachorros e gatos do que cobras ou lagartos. O carinho escasseia ainda mais se tratamos de insetos. Animais quentinhos nos parecem mais agradáveis do que os frios. Alguém que maltrate um cachorro será alvo de muita raiva e, em alguns lugares, até pode se tornar um caso de polí­cia.

A Espanha aprovou lei que proí­be venda, em lojas, de animais de estimação. Você conhece alguma norma jurí­dica ou condenação moral contra empresas que eliminam ratos?

Desratização é palavra consagrada e parece contar com certo apoio social. Um restaurante pode ser multado se não exterminar ratos e, ainda, deixar de apresentar o certificado das mortes. Ratos perto das mesas espantam clientes. Permitir cachorros entre os comensais é gesto simpático. O restaurante vira "pet friendly" e conquista a aprovação.

Ratos, cachorros e felinos são mamí­feros de sangue quente, inteligentes, amamentam filhotes e estão presentes em muitas casas. Uns estão no tapete da sala e outros, escondidos em buracos. Ratos, por definição, não são "instagramáveis" (outro critério forte da defesa da vida ultimamente).

Há mamí­feros pouco "fofos". Morcegos são bons exemplos. Tirando o Batman, ninguém se identifica com os bichos voadores que podem conter ví­rus letais.

Descemos vários degraus e não identificamos inteligência ou utilidade nas repugnantes baratas. Há campanhas públicas contra os borrachudos e o mosquito da dengue. Nossa ética tem matizes, e nossa solidariedade é seletiva, sempre. O carrapato-estrela é um inimigo perigoso que transmite febre maculosa; a capivara que o carrega deve ser defendida a qualquer custo.

Jeremy Bentham falou dos direitos dos animais na transição do século 18 para 19. O belga Georges Heuse elaborou regras contemporâneas, acerca do respeito, na convivência com animais. O esforço resultou na Declaração Universal dos Direitos dos Animais (Duda).

Maltratar animais pode expandir-se pelo tecido social. A violência é, quase sempre, contagiosa. Uma colega militante dos direitos dos animais expôs a relação de modelos contemporâneos de granjas de frangos com o surgimento de campos de concentração. Galinhas concentradas e exploradas até a morte teriam ensinado a expertise para campos de extermí­nio de prisioneiros humanos?

Em 2012, em Cambridge, um grupo expressivo de cientistas lançou um documento que expunha: "O peso das evidências indica que os humanos não são os únicos a possuí­rem os substratos neurológicos que geram a consciência. Animais não humanos, incluindo todos os mamí­feros e as aves, e muitas outras criaturas, incluindo polvos, também possuem esses substratos neurológicos".

Temos evidências cientí­ficas de que muitos animais sofrem e possuem elevada consciência disso. O relatório de Cambridge é sólido.

Nosso antropocentrismo cria maior sensibilidade com mamí­feros que consideramos agradáveis. É uma ética por espelho. Amamos mais a golfinhos e baleias do que sardinhas ou atuns. Não defendemos a vida em si, todavia a vida sentida e com expressões similares a nossa. Quanto mais "humana" for a experiência da dor, maior nossa identidade com a ví­tima.

As bactérias são seres vivos fundamentais para a existência de toda a cadeia dos seres do planeta. Um detergente bactericida não causa protestos. O que os olhos não conseguem ver, a ética não contempla. Nossa moral precisa de sangue quente para identificar, e sistema nervoso central, e capacidade de gritar ao morrer. Quem não grita tem menos chance de solidariedade. Isso vale também para genocídios humanos: quem grita mais leva a taça do sofrimento e das reparações. Quem morre em silêncio falece duas vezes, durante o massacre e na memória. Entre os humanos, há golfinhos e bactérias também.

Os animais nunca deveriam sofrer. Vivemos dias em que temos de dizer isso de humanos também. Apenas indiquei nossas ambiguidades, não para diminuir a proteção e a sensibilidade dada a alguns seres vivos, todavia para ampliar. O casal se separa e pode levar a juí­zo a posse do cachorro. Os ratos da casa dos divorciados? Eles (os camundongos) que lutem.

Usei o limite do absurdo para estimular o debate. Afinal, que argumento pró-gato excluiria o rato? Soberana, a barata nos contempla, sabendo que ela sobreviverá à radiação, e nós, mamí­feros, não. A esperança tem alguma ironia.

LEANDRO KARNAL 


11 DE JUNHO DE 2022
ELIANE MARQUES

ELIANE MARQUES EXU, O HERÓI DENEGADO

Édipo, de Sófocles, e Hamlet, de Shakespeare, os dois heróis de Freud, representam uma antiguidade selvagem e um renascimento selvagem, nessa ordem. Eles dizem do que vacila diante da lei simbólica. Assim funcionam como o paradigma do herói na medida em que encarnam na criação estética a problemática universal da ficção-realidade expressa na relação incesto-homicídio. Édipo e Hamlet falam de dimensões diversas da proibição, mas ambos o fazem mediante a posta em cena dos efeitos da transgressão. Quando me refiro à "problemática universal", prendo-me à distinção feita por Muniz Sodré entre o universal concreto e o universal abstrato (diferença) - elaboração da metafísica europeia que, no dizer do escritor, tem lastreado o pensamento da alteridade e da opressão.

O desejo incestuoso do qual padecem Édipo e Hamlet corresponde à indiferenciação na onipotência familiar e estatal. Fundem-se os lugares simbólicos de pai, mãe, filha, tio, chefe da nação. A proibição transgredida de que se trata não é um dado biogenético equivocadamente natural, se não construção da linguagem, o que implica seu reconhecimento como enigma. Porém, plagiando Ricardo Piglia, a confusão não é do enigma, mas de quem consulta o oráculo.

Se Freud elegeu seus heróis da Antiguidade e do Renascimento naquilo que tinham de supostamente universal nas suas relações com a lei, deixou ao nosso encargo a escolha do herói da Modernidade. Cabe-nos a decisão teórica e política de indicarmos o nome que diz da forma estética das relações sociais com a lei, sempre sintomáticas, no período em que vivemos a singularidade amefricana ou a concretude do universal nesta Améfrica Ladina.

Não há modernidade ou pós-modernidade sem a cultura da plantation sustentada pela escravidão racial. As diásporas atlânticas desafiaram o conceito de casa, de homem, de mulher, de trabalho, de divindade, desafiaram o conceito de literatura, de liberdade e de boa vida, desafiaram o conceito de parentesco, fundando uma concepção de identidade narrativa, cambiante, assentada num processo histórico e político e não em supostos essencialismos sanguíneos.

Doravante, dizer vínculo de sangue é modo de dizer vínculo de filiação. O sangue adquire apenas um valor metafórico. Se não for simbolicamente articulado, não dirá nada. Portanto, o vínculo de filiação substitui um vínculo supostamente biológico. Muito antes dos testes genéticos, a tradição jurídica já estabelecia os vínculos de filiação pela tríade nome, trato e fama.

Se Édipo e Hamlet estão ocupados com seus vínculos sanguíneos, se estão ocupados em saber quem são seus verdadeiros pais e mães e se dormiram ou querem dormir com suas mães e matar o pai, se suas vidas acabam numa morte trágica, Exu já nasce da morte, já nasce da ineficácia do homicídio e da eficácia da palavra, posta no lugar do crime, que impediu o incesto com a mãe. Esse orixá, herói denegado da modernidade, simboliza o vínculo de filiação a que estamos submetidos.

ELIANE MARQUES

11 DE JUNHO DE 2022
EUGÊNIO ESBER

EUGÊNIO ESBER A SOLIDÃO DE ARLENE

Arlene Ferrari Graf é uma advogada de Blumenau (SC) que jamais será capaz de esquecer aquele 26 de agosto de 2021. O tempo parou, para ela, às 6h22min, quando foi declarada a morte cerebral de seu filho Bruno Graf, também advogado. A certidão de óbito informava que o filho saudável de Arlene morreu aos 28 anos de idade por AVC hemorrágico/trombocitopenia trombótica imune. 

Tudo muito rápido e devastador para Arlene, por uma circunstância especial. É que 12 dias antes, por insistência dela, o jovem sem comorbidades e prestes a se casar havia tomado a primeira dose da vacina AstraZeneca/Fiocruz. Na falta de respostas plausíveis para o que havia matado Bruno, cujos exames afastaram a hipótese de covid, Arlene trazia, entalada na garganta, uma angústia: "Meu filho poderia ter morrido pela vacina?".

A mera dúvida de Arlene a colocou sob a fogueira da execração pública. Sua dor, seu desespero, nada importava para autores de textos que a davam como ativista antivacina na direita brasileira ou a mulher que, ao "forjar" uma explicação para a morte do filho, ganhava o status de líder dos bolsonaristas. Na autoproclamada (imerecidamente) "grande imprensa", silêncio total sobre o caso. O "jornalismo profissional", que proclama virtudes como empatia e acolhimento, deixou Arlene falando sozinha, como uma pobre desvairada sem direito a, nem mesmo, a compaixão de ser, vá lá, escutada, ao menos. Uma agência de fact-checking fez contato com uma abordagem intimidativa, que pode ser sumarizada como "vê lá o que você está dizendo".

É claro que Arlene, como eu, como você, não se deteria diante de tamanha brutalidade. Quando soube que havia um caminho para solucionar sua dúvida, gastou o que tinha que gastar para fazer o exame indicado, Anti-Heparina PF4, Autoimune, e recebeu da Espanha a notícia que temia. Sim, seu filho morreu por efeito da vacina. A partir daí, começou uma cruzada para reunir casos de efeitos adversos causados pelas vacinas e que são tratados com indiferença e por autoridades sanitárias, por veículos que seguem a linha de ativismo do "Consórcio de Imprensa" e, meu Deus, até pelo Ministério Público - ressalvadas raríssimas e honoráveis exceções.

Arlene já sabe que sua luta não é exclusivamente por Bruno. Ela, que é vacinada, assim como seu marido, defende que a vacinação (ainda um experimento, na verdade) não seja obrigatória e venha acompanhada de medidas de esclarecimento da população - tudo o que não encontramos nas páginas que lemos e nos noticiários que assistimos desde o início desta pandemia que caçou as dúvidas e questionamentos com uma fúria que, esperávamos, fosse mobilizada apenas contra este vírus, de origens tão obscuras.

Ela escreveu ao ministro da Saúde uma carta em que pede providências mínimas e sensatas. "Que os senhores comecem a notificar as reações adversas que estão sendo relatadas por inúmeras pessoas(...), relatos que estão sendo subestimados e negligenciados".

Assino embaixo, Arlene, desta carta enviada em setembro de 2021 e que até agora não mereceu resposta do ministro da Saúde.

Que tempos!

EUGÊNIO ESBER

11 DE JUNHO DE 2022
DRAUZIO VARELLA

DOR CIÁTICA

O povo chama de ciática qualquer dor nas pernas e na região lombar. As fibras nervosas que emergem entre a quarta e a quinta vértebras lombares (L4 e L5) e a primeira e segunda sacrais (S1 e S2) saem da pélvis na direção do membro inferior, na forma de um tronco nervoso: o nervo ciático, o maior do organismo.

Qualquer distúrbio ao longo do percurso desse tronco pode dar origem à dor ciática. Os mais comuns são rupturas ou artrites nos discos intervertebrais que ficam entre L4 e L5 e entre L5 e S1, processos que comprimem as raízes emergentes nessas alturas.

A prevalência da dor ciática na população é ao redor de 40%. Costuma acometer mulheres e homens a partir da quarta ou quinta década de vida.

A dor pode instalar-se de forma abrupta ou lenta. É geralmente unilateral, mas pode ocorrer bilateralidade, quando existe herniação ou processos inflamatórios do disco com compressão da medula.

Nos casos mais típicos, ela se irradia ao longo da faixa que vai da parte média ou inferior da nádega à região dorso-lateral da coxa (compressão da raiz em L5), à posterior da coxa (compressão em S1) ou à anterolateral da coxa (compressão em L4). Se chegar abaixo do joelho, sua localização obedecerá à distribuição superficial das raízes sensitivas que acompanham a raiz nervosa afetada.

Quando a dor nas costas e no trajeto do ciático aumenta ao tossir, espirrar ou ao estender o membro inferior, há suspeita de ruptura do disco. Fraqueza na perna ocorre em menos da metade dos casos. Podem surgir sensação de formigamento e perda de sensibilidade nas áreas acometidas.

O sinal clínico mais caraterístico é o de Lasegue: com o paciente deitado de costas, elevamos o membro inferior estendido para formar um ângulo de 30 a 70 graus com a superfície. O sinal é positivo quando a dor aumenta.

Nos casos típicos, não há necessidade de exames de imagem ou de eletromiografia. Quando o quadro é mais persistente, a ressonância magnética ajuda a esclarecer sua origem.

A dor regride espontaneamente na maioria das vezes. Um terço das pessoas fica livre dela em duas semanas. Nas demais, pode durar mais tempo, até três meses.

Embora o repouso seja recomendado de rotina, não há evidências de que traga benefícios nos casos em que há possibilidade de movimentação.

O objetivo do tratamento é o controle da dor por meio de fisioterapia e medicamentos. Anti-inflamatórios, derivados da cortisona, antiepiléticos, relaxantes musculares e analgésicos podem ser úteis, mas seus efeitos variam muito de uma pessoa para outra.

Ioga, acupuntura, estimulação elétrica e manipulações da coluna apresentam resultados imprevisíveis e, às vezes, contraditórios.

A cirurgia provoca alívio mais rápido e acelera a recuperação motora, mas só está indicada quando existe hérnia de disco com compressão importante do canal medular ou quando as dores são mais persistentes. O momento ideal para a indicação cirúrgica não está bem definido.

DRAUZIO VARELLA

11 DE JUNHO DE 2022
BRUNA LOMBARDI

QUER SER MEU NAMORADO?

Gosto da palavra namorados. Mesmo que a maioria tenha uma certa pressa de trocar essa palavra por outra que traz mais segurança: noivos. Para muita, gente noivos parece mais sólida, vem com uma promessa mais firme aos olhos do mundo. Vai dar impressão de coisa mais importante que, no estágio social do amor, vai deixar claro pro mundo que não estamos de brincadeira.

Em breve, vamos trocar qualquer dúvida pela certeza, trocar a mão das alianças, amarrar nossos laços e provar a todos que é sério, veio pra ficar, é pra toda vida? pelo menos na intenção.

Vamos passar pra esse novo patamar mais seguro, mais aparentemente inabalável. Vamos representar novos papéis, seremos marido e esposa. A palavra vai ser casados, e isso é sério, definitivo, todo mundo respeita. Ninguém mais vai achar que é brincadeira.

Na verdade, o prazer maior dos namorados é poder brincar. E, no fluxo alegre do amor, se mostrar feliz sobrevoando a seriedade da vida. Namorados estão se conhecendo, desvendando um ao outro, revelando segredos.

Querem ficar grudados, sussurrando promessas e juras íntimas, descobrindo partes íntimas de sexo e alma. E podem brincar se desmanchando em risadas íntimas.

Namorados respiram paixão, se tornam cúmplices. Vão pisando aos poucos com pequenos passinhos dentro desse território da cumplicidade. De repente, podem entrar em túneis escuros, ter medos, questionamentos, dúvidas. E mesmo assim vão dando coragem um ao outro.

O amor nos torna imbatíveis, aprendemos a ser dois contra os perrengues do mundo. E se vamos lutar lado a lado na batalha diária da vida, é porque o amor pode tudo, vence tudo, é maior que tudo.

A paixão enfeita o mundo, pinta as cores do caminho, deixa a realidade mais brilhante e luminosa. A paixão reflete na nossa cara e se espalha por onde passamos. Todo mundo vê imediatamente nossa harmonia. Quem olha os namorados diz: o amor é lindo.

Gosto tanto da palavra namorados que a uso até hoje. Porque meu desejo é lembrar a razão que nos fez ficar juntos e continuar com essa proposta. Crescer juntos e nunca esquecer o que queríamos a ser. E aprender a manter a chama e a essência do que somos.

No encontro amoroso de duas pessoas existe uma energia particular. Um campo de amor. A força desse amor passa por todas as fases, percorre etapas, encontra desafios e os supera. Um casal é uma entidade. Podemos ritualizar e sacralizar a beleza do amor, atentos para que a relação tenha raiz de sustento e seja cuidada pra desenvolver seu melhor.

Que a gente nunca se sinta engessado naquilo que a sociedade espera de nós. Que nossos papéis sociais, posições e rótulos não nos transformem no que não somos. Somos pessoas complexas, todos nós. Temos que nos trabalhar e trabalhar essa entidade que criamos juntos: a relação.

Cada estágio do amor é transitório. Então, vamos ser namorados com a mesma sensação de leveza e alegria vida afora. Vamos continuar rindo e brincando juntos, porque isso sim é sério e definitivo. E que a gente nunca esqueça a razão pela qual resolvemos um dia ser namorados.

BRUNA LOMBARDI

11 DE JUNHO DE 2022
J.J. CAMARGO

NOSSOS JEITOS DE SER

Durante meus anos de formação médica, ouvi muitas vezes de professores renomados a recomendação de que devíamos manter uma certa distância afetiva dos pacientes para evitarmos que uma interação mais densa pudesse afetar a neutralidade, que seria imprescindível para a isenção na busca do diagnóstico, especialmente das doenças com desfechos ruins.

Logo depois, o convívio temporário com o formalismo cultural americano só fez reforçar essas teorias.

A partir daí, o exercício médico intenso, mergulhado por escolha (e vá lá, por vocação!) na alta complexidade, onde a proximidade da morte impõe regras de sobrevivência que precisam ser adaptadas ao perfil de cada indivíduo exposto ao enfrentamento de situações extremas, começaram a emergir o que chamo de atualizações de conduta profissional.

A primeira percepção foi de que a atitude rígida recomendada pelos mestres da primeira hora era apenas uma adequação à pobreza afetiva de quem precisava usar o distanciamento como uma forma de manter-se protegido da falta de humanismo que os constrangia. E o ar constante de superioridade era um requinte indispensável na completude do disfarce.

Convivendo com americanos, foi fácil perceber que a impessoalidade das relações humanas, com poucas exceções, era uma característica cultural em que há um recato na exteriorização de qualquer sentimento, alegre, triste, egoísta ou generoso. E que não se pense que não haja nenhuma virtude nesse jeito de ser, porque estaríamos ignorando o quanto há de bom caráter na previsibilidade das atitudes, que o julgamento apressado dos latinos não reconhece nos anglo-saxões.

Em resumo, somos diferentes, e assumir as diferenças é sermos menos intolerantes com as críticas.

Um dia desses, um clínico da velha guarda, carinhoso e chorão, lamentou o quanto a americanização da nossa juventude médica está sendo acelerada pela tecnologia, que, segundo ele, "com seus braços longos está aumentando ainda mais a distância entre médico moderno no jeito de ser impessoal, e o paciente antiquado no seu jeito de sofrer".

O conflito que se estabelece é que não podemos abrir mão da tecnologia sem fraudarmos a expectativa de quem nasceu nessa época maravilhosa em que a medicina foi agraciada com avanços impensáveis há poucos anos. O que não justifica que um médico ingênuo ou mal-intencionado esteja autorizado a imaginar que a parafernália disponível possa dispensar a figura pessoal do médico. Essa subversão do entendimento tornaria insuportavelmente cruel a experiência de adoecer entre robôs superequipados apenas de inteligência artificial.

Um amigo médico famoso encheu a tela do computador de pura emoção ao relatar, numa das sessões do nosso Curso de Medicina da Pessoa, a sua experiência de uma primeira consulta, rodeada de medo e fantasia de morte, com um especialista de um grande centro, que na despedida sintetizou em duas palavras o que todo o paciente assustado persegue, e um computador de última geração nunca tomaria a iniciativa de oferecer: "Estamos juntos".

Uma frase curta mas com uma dimensão que só consegue avaliar quem precisa que alguém esteja ao alcance da mão. Porque é assim que somos e seremos: aterrorizados, não conseguimos ser mais do que carentes.

J.J. CAMARGO

11 DE JUNHO DE 2022
OPINIÃO DA RBS

BRASIL E EUA, ALÉM DO PESSOAL

O fato de o encontro bilateral entre o presidente Jair Bolsonaro e o seu par norte-americano Joe Biden ter transcorrido na quinta-feira de maneira meramente protocolar não deixa de ser, ao fim, positivo. Era corrente, inclusive na delegação brasileira que compareceu à Cúpula das Américas, o temor de algum tipo de constrangimento por uma possível cobrança mais dura por parte do ocupante da Casa Branca sobre temas como ambiente e democracia, que talvez suscitasse redarguição fora do tom recomendado.

A menção apenas genérica aos dois assuntos, motivo de preocupação nos EUA e de controvérsia no Brasil, evitou qualquer saia-justa, com declarações anódinas, embora Bolsonaro tenha novamente referido superficialmente suas cismas eleitorais. Mas seria ingenuidade imaginar que faltariam acenos à base ideológica e afirmações no mínimo questionáveis, como as relacionadas à preservação da Amazônia, repetidas em seu discurso, ontem. É verdade que o curto diálogo público foi morno, como se esperava, mas cordial e civilizado, com a institucionalidade e a diplomacia preservadas.

O receio se baseava essencialmente no histórico recente. Além de ser fã confesso de Donald Trump, Bolsonaro levantou desconfianças infundadas sobre as eleições norte-americanas e foi um dos últimos líderes mundiais a congratular Biden pelo triunfo nas urnas, o que naturalmente gera distanciamento. E Bolsonaro voltou a repetir as alegações às vésperas de embarcar para Los Angeles.

A frieza recíproca, entretanto, não impediu que Bolsonaro e Biden conversassem mais reservadamente logo após a aparição em conjunto transmitida ao vivo, com a presença também de auxiliares diplomáticos. O presidente brasileiro disse inclusive ter ficado "maravilhado" com Biden e concluiu que o saldo do encontro foi "melhor do que o esperado". Um distensionamento relevante, ao que parece, algo que também parece ter ocorrido no diálogo com o colega argentino Alberto Fernández na Cúpula das Américas. Conversas maduras têm o potencial de produzir resultados. Noticiou-se, por exemplo, que o mandatário brasileiro levou o tema das barreiras à entrada de aço brasileiro nos EUA, e Biden, receptivo, teria se comprometido a analisar a questão.

Provavelmente, Jair Bolsonaro e Joe Biden tenham em comum apenas as iniciais. Preferências pessoais, entretanto, são secundárias quando se ocupa cargo de elevada importância como a presidência de um país. Brasil e Estados Unidos têm longas relações diplomáticas e comerciais e o que se espera é que esses laços institucionais sejam reafirmados e fortalecidos. Possíveis próximos encontros ou diálogos entre os dois dependem do resultado do pleito de outubro do Brasil. Mas ambos são passageiros nas funções que ora ocupam, e o que fica e deve ser preservado é o vínculo histórico entra duas das maiores democracias do mundo. 


11 DE JUNHO DE 2022
MARCELO RECH

Ambiente não tem ideologia

A cena nos pavilhões do Riocentro para quem estava lá como eu, parte da equipe de repórteres enviada por ZH, era de um otimismo radiante. Lado a lado, 92 chefes de Estado, de Fidel Castro a George Bush, posavam para uma foto que selava o compromisso com o futuro do planeta. Há exatos 30 anos, entre 3 e 14 de junho de 1992, o Brasil se transformava no epicentro da defesa ambiental ao receber a Rio-92, tida como a principal conferência da ONU desde a sua criação e que desbravaria a trilha para acordos como o de Paris e o Protocolo de Kyoto.

Diga-se o que se quiser sobre o então presidente Fernando Collor de Mello, mas um mérito não se pode tirar dele. Bom de marketing, Collor tinha a dimensão do enorme dano à imagem do Brasil causado pelas queimadas na Amazônia, pelas invasões de terras indígenas e pelo garimpo descontrolado. Ao assumir, jogou uma cartada de impacto: convidou o mais consagrado ambientalista brasileiro para chefiar a Secretaria de Meio Ambiente. Não sem irritar a esquerda, o gaúcho José Lutzenberger aceitou o posto e deixou claro que ambiente não tinha ideologia. Trabalhou para atrair a Rio-92, convenceu Collor a demarcar a reserva dos ianomâmis e enfrentou lobbies poderosos. Por algum momento, o principal produto de exportação do Brasil parecia ser a preservação de sua natureza exuberante.

Já no início daquele ano de 1992, ficara evidente para mim que, em se tratando de Brasil, o resto do mundo se preocupa de fato é com a Amazônia. Ao percorrer a linha de frente na Croácia, em guerra com a Sérvia, fui abordado para uma entrevista por uma TV local. Imaginei que iam tentar extrair uma declaração de apoio aos combatentes croatas quando veio a pergunta:

- Por que o Brasil está queimando a Floresta Amazônica? - quis saber o repórter, expressando a angústia global por outra longínqua e inexplicável frente de batalha.

Fiquei desconcertado, mas com a ficha bem caída. Se não quiser virar pária mundial, com prejuízos incomensuráveis para seus produtos - mesmo os que não guardam relação com as florestas -, o Brasil civilizado precisa vencer esse conflito interno, como bem demonstra a repercussão mundial pelo desaparecimento do jornalista inglês Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira. Collor tinha o pulso desta sensibilidade há 30 anos e, além de abrigar a Rio-92, produziu imagens que correram o mundo ao mandar bombardear pistas de garimpo ilegal na Amazônia.

Em 2003, Lula seguiu na mesma linha e trouxe para seu primeiro governo uma ambientalista de renome internacional, Marina Silva. Mais tarde, foram passando por cima dela, como havia ocorrido também com Lutzenberger, e chegamos aonde chegamos hoje: um Brasil arcaico e anacrônico que equivocadamente outorgou para o arsenal da esquerda a defesa do ambiente.

MARCELO RECH

11 DE JUNHO DE 2022
J.R.GUZZO

Um ato de injustiça

Vai se tornando muito difícil, para qualquer cidadão que tenha a capacidade de pensar dentro dos princípios da lógica mais simples, acreditar que o Brasil viva numa democracia. Não é preciso entrar num curso de ciência política para se ver isso.

Uma das exigências mais básicas das democracias de verdade é ter um sistema de Justiça que funcione, que seja compreensível pelo cidadão comum e cujas decisões se possa prever - elas precisam, essencialmente, seguir o que está escrito nas leis e prover soluções justas, onde se veta o que está errado e se aceita o que está certo. O Brasil de hoje não tem isso.

Acontece o tempo todo, e acabou de acontecer com a cassação do deputado estadual Fernando Francischini, do Paraná, por decisão de 3 a 2 numa "turma" do STF. Ele foi eleito pelo voto de 430 mil cidadãos paranaenses e destituído por três ministros que jamais tiveram um único voto na vida.

A cassação do mandato do deputado é um ato de injustiça em estado bruto - e mais um exemplo flagrante da aberração funcional em que se transformou o Sistema Judiciário no Brasil. Ele foi punido por um crime que simplesmente não existe no Código Penal Brasileiro - falou que duas urnas da eleição de 2018 estavam sendo roubadas.

Pode ser verdade, pode ser mentira ou alguma coisa entre as duas; só não pode ser crime, porque não existe lei dizendo que é. Se sua declaração causou danos, ele poderia ter sido processado penalmente por calúnia, injúria ou difamação, e responder a ações cíveis de reparação. Foi acusado, processado e condenado pelo delito inexistente de propagar "desinformação".

Francischini foi cassado por ser um deputado "bolsonarista", como diz a mídia, e para intimidar outros críticos do sistema eletrônico de votação em vigor, com a criação de jurisprudência preventiva. O recado é o seguinte: "Cuidado. Quem falar mal do sistema eleitoral vai ser cassado".

O caso todo é tão absurdo que em seu primeiro julgamento, no TRE do Paraná, o deputado foi absolvido por 7 a 0. Mas isso não fez diferença nenhuma. O caso acabou no Supremo, o mais poderoso partido de oposição no Brasil. É óbvio que a decisão foi reformada no TSE e, no fim, no STF, por um voto de diferença.

É injustiça pura e simples. Por que raios o deputado, ou qualquer cidadão brasileiro, não pode falar mal das urnas eletrônicas? Em que lei está escrito que o sujeito é obrigado a confiar no sistema eleitoral existente?

O STF tem dois ministros nomeados pelo atual presidente e nove inimigos declarados do governo. Não é preciso dizer que os dois votos a favor do deputado Francischini foram os dos ministros indicados por Bolsonaro; também não é preciso dizer que suas decisões serão automaticamente anuladas pelos outros nove, sempre que houver alguma conotação política no processo. É essa, hoje em dia, a previsibilidade da Justiça brasileira - pode-se contar, com certeza, que as decisões vão ser contra o governo.

J.R. GUZZO

sábado, 4 de junho de 2022


04 DE JUNHO DE 2022
ESPETÁCULO

NOITES DE MÚSICA E POESIA

Vitor Ramil reencontra o público e apresenta seu novo trabalho, "Avenida Angélica", com poemas de Angélica Freitas

- Esse período de enclausuramento tirou um pouco o timing da gente para fazer as coisas. Estou ainda me sentindo um pouco que saindo de um pesadelo, de um sonho, acho que a ficha só vai cair quando eu der o primeiro acorde lá no teatro - confessa Vitor Ramil.

Os mais de dois anos sem se encontrar com o público - o último show presencial foi em março de 2020 - deixaram o artista pelotense vivendo em um mundo à parte, que o deixou distante fisicamente das pessoas, mas muito próximo da arte. Tanto é que, agora, ele sai deste período que chama de "aprisionamento" com um trabalho novo e pronto para estar junto novamente dos fãs, que verão o mesmo artista no palco, mas ouvirão novas canções.

Este primeiro contato depois do período afastado, respeitando o tempo da pandemia, acontece neste final de semana, quando Vitor regressa para a sua "casa em Porto Alegre", o Theatro São Pedro (TSP), para duas apresentações dedicadas ao lançamento físico do álbum Avenida Angélica, no qual canta os poemas de Angélica Freitas. Os shows ocorrem no sábado, a partir das 21h, e no domingo, às 18h (veja serviço na página 6).

Nas duas apresentações, o artista interpretará as 17 faixas que estão no disco, que foi feito inteiramente baseado nos textos publicados originalmente por Angélica nos livros Rilke Shake e Um Útero É do Tamanho de um Punho. A escritora também se fará presente, declamando o poema Ítaca, em um vídeo gravado diretamente de Berlim, na Alemanha, onde mora.

- Percebo que chama muito a atenção das pessoas as canções que resultaram dessa parceria, porque, às vezes, tem poemas musicados que tu ouves e que parece que não chega a encaixar completamente. Fica aquela coisa meio desajustada. Mas acho que marcou muito as pessoas foi isso, as canções que parecem que nasceram com letra e música - explica Vitor, quase dois meses após o lançamento do álbum digital no streaming.

Teatral

Décimo segundo título da discografia de Ramil, Avenida Angélica foi gravado em duas noites, em 7 e 8 de agosto de 2021, em um vazio Theatro Sete de Abril (que vem passando por restauros desde 2010), em Pelotas. Depois, ele foi lançado nas plataformas de streaming no começo de abril e, agora, chega em mídia física, em uma edição limitada e documental, feita para ser guardada como um livro de arte, segundo o próprio artista. O disco está à venda no site vitorramil.com.br e em livrarias selecionadas.

As duas noites de espetáculo de Vitor Ramil cantando as poesias de Angélica Freitas abrirão oficialmente as comemorações do aniversário do Theatro São Pedro - inaugurado em 27 de junho de 1858 - e integrando a programação oficial dos 250 anos de Porto Alegre. No palco, o artista se apresenta em formato solo, com voz e violões de cordas de aço, em ambientação visual criada por Isabel Ramil, sua filha, que faz da iluminação, do cenário e dos vídeos apresentados uma espécie de segunda interpretação, não-literal, dos poemas, conferindo ao show um caráter multimídia.

Estes dois shows no TSP, na verdade, podem ser considerados um fechamento de ciclo, uma vez que, em julho de 2019, ele esteve no local para apresentar em primeira mão o começo do projeto do Avenida Angélica. Depois de lá, refinou o seu repertório, tirando faixas e acrescentando novas canções, até chegar no resultado final, eternizado no álbum físico.

O processo lembra o da produção de Délibáb (2010), álbum em que o cantor compôs milongas para poemas do argentino Jorge Luis Borges e do alegretense João da Cunha Vargas. Cinco anos antes da gravação, Vitor, acompanhado de Carlos Moscardini, esteve no TSP para apresentar músicas do disco, que ainda demoraria para ser gravado.

- É interessante que esse trabalho com as poesias é muito ligado aos teatros, às apresentações ao vivo. Agora, para mim, é muito significativo que seja apresentado no São Pedro. Tem muita gente que diz "gosto de te assistir no São Pedro", então começa a se criar um vínculo com o espaço e com o público daquele espaço. E o retorno do ao vivo é sempre incrível. A energia do público vai, de certa forma, dirigindo a tua performance - destaca.

E o diretor artístico do Theatro São Pedro, Dilmar Messias, concorda:

- Tê-lo na abertura da nossa programação de aniversário redobra a nossa satisfação. Vitor intérprete, Vitor poeta, Vitor ídolo de uma geração que carrega na sua bagagem o lirismo e o questionamento.

Agora, é só se direcionar para o TSP e acordar do pesadelo juntamente com Vitor Ramil. E esse despertar vai ser cheio de poesia e música. Não podia ser melhor.

CARLOS REDEL


04 DE JUNHO DE 2022
MARTHA MEDEIROS

A melhor droga do mundo

- Isso me deixa louco... Lou-co!

Repetiu duas vezes a palavras louco com uma inflexão na voz que não deixava dúvida de que ele estava, mesmo, em outro estado de consciência. Manteve os olhos fechados e balançava a cabeça para o lado, em movimentos curtos e ritmados, como se fossem espasmos provocados por um estímulo interno. Era um maestro regendo uma orquestra, sentado na poltrona de sua pequena sala de estar. Escutava Strauss.

O que o deixava louco era a percepção de que seus sentimentos se expandiam, saltavam de dentro para fora, dominando-o. Não se sentia solitário, mesmo vivendo tão só. Sua sensibilidade deixava de ser invisível e impalpável: transbordava. O que muitos sentem através da palavra de Deus, numa missa, ou visitando Machu Pichu, no Peru, ou ainda na sala de parto, durante o nascimento de um filho, ele sentia igual, com a mesma intensidade, sem sair de onde estava.

Era como estivesse sob efeito de um narcótico. Apartado da miséria da vida, a salvo do vazio da mesmice, protegido contra a banalidade do mundo. Um homem embriagado de beleza e fantasia, mas sem perder a noção de que aquele momento era, antes de tudo, uma experiência real.

É uma droga muito viciante, a arte. A única que não nos enjaula, ao contrário.

As páginas de um livro de Guimarães Rosa. Bailarinos dançando uma coreografia de Deborah Colker. Os murais de Portinari. As fotos de Sebastião Salgado. Benditos todos os "malucos" que nos proporcionam viagens sensoriais, liberdade de pensamento e o êxtase das emoções inesperadas. A arte subverte a castração a que somos submetidos pela rotina dos compromissos. Alivia nossas dores existenciais e nos dá a sensação de que nada poderá nos ferir. A vida é boa (sim, David!) enquanto escutamos belas canções, enquanto as cortinas dos palcos não fecham, enquanto circulamos pelos corredores dos museus.

Fuga. Escape. Sonho. É preciso saltar o muro deste nosso hospício diário e ir ao encontro da delicadeza. Essa crônica foi inspirada pelo comovente livro Esperando Bojangles, de Olivier Bourdeaut, pelo importante depoimento de Walter Casagrande no programa Bem Juntinhos, do GNT ("Tive que procurar outra forma de prazer depois de largar as drogas. Açúcar? Não. Teatro. Cinema.") e principalmente pelo meu pai, que sempre fez uso abusivo desse entorpecente mágico, lícito e transgressor, e que agora adotou a música como sua mais constante companhia, aos 85 anos.

"Dizem que sou louco por pensar assim, mas louco é quem...", você sabe. Um viva aos Mutantes, que compuseram a Balada do Louco, em 1972, e a todos os milhões de seres extraordinários que não se contentam com a mediocridade. Que a gente morra tentando capturar o sublime.

MARTHA MEDEIROS

04 DE JUNHO DE 2022
CLAUDIA TAJES

Troféu Imprensa

Imagine um mundo sem jornais. Sem um espaço confiável para procurar uma informação. Um mundo onde as pessoas repassassem as coisas no boca a boca - e quem conta um conto, aumenta um ponto, diz a sempre sábia sabedoria popular. Existe uma Janete Clair dentro de cada um de nós, uma novelista enrustida acrescentando complicações imaginativas ao que parece prosaico demais. Nota para as novas gerações: Janete Clair foi a primeira-dama da telenovela no Brasil, até hoje inspiração para autores do ramo.

Maria e João casaram ontem. O vestido dela, credo, era de um mau gosto atroz, todo transparente, não era figurino para se entrar na igreja. E ele, que deixou uma namorada grávida para trás? A madrasta da noiva ficou no altar ao lado do marido, toda carinhosa, mas só para disfarçar. Faz anos que ela tem um caso com a Alzira, a madrinha da Maria, que nem convidada para o casamento foi.

De alguma forma, desde que uns e outros se dedicaram a demonizar a imprensa, a gente tem visto histórias assim, tão maldosas quanto ridículas, espalhadas pelo meio preferido de (des)informação dos que compraram a ideia de que a imprensa nunca diz a verdade. Por que ler um jornal se o grupo de WhatsApp traz tudo bem mastigadinho, e com detalhes que ninguém mais conhece?

A cantora fez uma tatuagem naquele lugar porque é satanista, a favor do aborto, drogada, pró-pedofilia e dança Macarena pelada. Passe adiante sem dó, nem piedade.

Saudade do tempo em que o grupo da família era apenas o órgão oficial do tradicional bom dia com a imagem de um sol nascendo ou de uma flor se abrindo. Hoje, mamadeira de piroca é pinto, sem trocadilhos, perto do que se lê ali.

Já se aventou que os responsáveis pela desinformação que corre solta no WhatsApp são os próprios jornais, que começaram a cobrar pelo conteúdo da internet e deixaram os não-assinantes à mercê dos mentirosos profissionais. Pode até ser, mas bom-senso não é exclusividade de assinante. Cada vez que um absurdo é repassado, fica a dúvida: quem encaminhou é ingênuo ou mal-intencionado? Pessoalmente, voto na segunda hipótese.

A vida sempre vem em versões pouco verossímeis no WhatsApp. Nem vamos falar no que aconteceu no início da pandemia, ou nos esculachos que comprometeram - e comprometem - carreiras e reputações. Nas versões covardes para o assassinato de Gevanildo, em Sergipe, e para as operações policiais que matam também quem não tem nada a ver com o peixe. Conselho de amiga: ao receber uma suposta notícia pelo WhatsApp, perca alguns minutos checando nos jornais. Evita disseminação de lorotas e poupa a gente de passar vergonha.

Tudo isso porque 1º de junho foi o Dia da Imprensa, que é uma das grandes ferramentas da democracia. Repetindo o óbvio: sem imprensa não existe democracia. Quem está distante da rotina de redações, plantões e apurações talvez não imagine o quanto os jornalistas trabalham pela notícia. Quem se apaixonar por uma ou um, já vá sabendo que dias santos e feriados serão dias trabalhados. E o salário, ó, como dizia o professor Raimundo.

Aproveitando o Dia da Imprensa, mando aqui minha mais sincera admiração por todos os jornalistas e um beijo (atrasado, para variar) para as minhas editoras, Renata, Mary e Adriana, que seguram as pontas das minhas tardanças na entrega da página. Na semana que vem, a coluna vai chegar no prazo - juro que não é fake news. E para a família, os amigos e os leitores do David Coimbra, um abraço com a certeza de que ele continua em cada linha que deixou.

CLAUDIA TAJES

04 DE JUNHO DE 2022
LEANDRO KARNAL

GENTE COMO A GENTE

Quem conhece narrativas bíblicas sabe que as pessoas do texto são muito marcadas pela ambiguidade. Na Idade Média dominou a narrativa modelar sobre os santos, as chamadas hagiografias. Os eleitos eram perfeitos desde o berço, nunca tremiam, jamais duvidavam. No texto bíblico, pelo contrário, as pessoas são reais. Abraão mente ao faraó que sua esposa seria sua irmã; um irmão engana o pai com ajuda da mãe (Jacó com o idoso Isaac); o encarregado do culto a Deus, Aarão, é quem cede ao povo e faz o bezerro da idolatria; e, apenas para dar outro exemplo, Jonas fica decepcionado que Deus não destruiu a cidade de Nínive. Existem narcisos feridos, jogos de poder, tramoias e estratégias pessoais. Vale o mote de Nietzsche: humano, demasiado humano.

O encontro do jovem Davi e o gigante Golias é narrado no capítulo 17 do Primeiro Livro de Samuel. Usando da habilidade com sua funda, o rapaz acerta o guerreiro enorme e o mata. Depois, decepa sua cabeça. Juntamente com o episódio de Judite/Holofernes e Salomé/João Batista, são três cenas fortes de gente perdendo a cabeça na Bíblia para deleite da história da arte.

Quase sempre, Davi é representado como um adolescente no episódio, com a notável exceção da estátua de Michelangelo. O florentino preferiu a exuberância de um homem forte e jovem.

Avanço na narrativa. O povo de Israel está feliz no capítulo 18 narrado por Samuel. O gigante atacava a honra de todos e ainda insultava o Deus dos hebreus. A vitória inesperada do jovem tinha provocado euforia. A fama de Davi crescia ao atacar filisteus. As mulheres cantavam que o rei, Saul, tinha matado milhares, mas Davi, dezenas de milhares. Não bastasse a fama crescente do jovem de Belém, a amizade com Jônatas, filho mais velho do rei, era muito forte.

O jovem Davi matava mais inimigos do que o velho e experimentado rei? Entrava na casa real com uma amizade forte com o herdeiro natural do trono? Era mais amado pelas mulheres de Israel e pelo primogênito do que o próprio Saul? Era demais para o primeiro rei de Israel.

A reação do soberano foi significativa. Duas vezes arremessou uma lança para matar o jovem filho de Jessé. Errou em ambas. O rei estava em uma rede complexa de sentimentos. Na narrativa, logo após ter tentado cravar Davi na parede, dá a ele sua filha Merab em casamento. O ex-pastor se achava indigno de ser genro de rei. A jovem acabou casando com outro.

Para piorar a ambiguidade, outra filha do rei se apaixonou pelo guerreiro célebre. Davi, de novo, acha honra elevada, porém acaba aceitando o encargo em troca de um gesto de gosto duvidoso para nosso padrão atual: o dote seria o corte de um número expressivo de partes íntimas de filisteus. Era uma armadilha do rei ao futuro genro, que respondeu dobrando a meta e oferecendo 200 prepúcios ao soberano que demandara cem.

Uma das coisas que adoro na Bíblia é sua humanidade. As personagens são de imensa riqueza e muitas contradições. Reis violentos e com abalos psíquicos, jovens cheios de fé, amizades improváveis como a de Jônatas com Davi (ou Rute e Naomi como bom exemplo de camaradagem fora do padrão).

A história do pastor de Belém, Davi, é tomada de gente com inveja, desequilíbrios mentais, desejos, e tentações com a mulher de Urias. Eu me lembro perfeitamente da imensa impressão que tive com o quadro de Pedro Américo no Museu Nacional de Belas Artes. Do que trata o quadro? O primeiro capítulo de I Reis narra o rei Davi com frio, não conseguindo se aquecer por causa da idade. Então, arrumam uma jovem virgem, Abisag, com a função térmica no leito real. Pedro Américo pintou o momento em que um assustado ancião vê uma jovem se deitar com ele. O quadro tem influências do chamado "orientalismo" na sensualidade e na opulência erótica de "harém turco" que imagina.

O texto sagrado se permite liberdades que fariam corar muitos autores libertinos dos séculos 18 e 19. A lição é clara: o chamado de Deus ocorre em meio ao real histórico, ao contraditório e a todas as ambiguidades de pessoas normais.

"O Senhor é meu pastor, nada me faltará", proclama Davi como salmista. Ele me conduz e ao me conduzir me protege do rei louco, da inveja, dos excessos de sexo, da briga dos meus filhos pelo trono e de todas as intrigas que minhas fraquezas e as dos outros provocam. Em resumo, gente como a gente. Pessoas que parecem reais enfrentando seus limites e os do mundo, dialogando com o plano divino dentro e inserido até o pescoço no mundo profano. 

O que eu admiro em algumas personagens é que não falariam ao povo "vocês pecadores", porém "nós". Diferentes de tantos de hoje, não se colocariam em um pedestal imaculado julgando todos abaixo. Ao ouvir alguns, lembro-me da reclamação de Fernando Pessoa: "Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo?". Tenho esperança de que mais pregadores consultem a Bíblia e menos seus treinadores midiáticos. "Ó príncipes, meus irmãos!..."

LEANDRO KARNAL