segunda-feira, 25 de julho de 2022


25 DE JULHO DE 2022
CARPINEJAR

Onde está a advogada?

Não sei você, mas eu estou apreensivo com o desaparecimento da advogada Alessandra Dellatorre, de 29 anos. Não há sinal dela desde o início da tarde de sábado (16), quando saiu para caminhar em São Leopoldo, no Vale do Sinos.

Não sou familiar, não a conheço, apenas me bateu o desespero íntimo de que o sumiço poderia ter acontecido com quem eu amo. Afinal, a minha filha tem a mesma idade. A tragédia cria vínculos imediatos quando nos imaginamos no lugar aflitivo dos parentes sem notícias.

Eu assisti ao vídeo dos seus pais clamando por qualquer informação capaz de renovar a investigação. É desolador o chamado deles: "Existem um pai e uma mãe que estão sem ar, sem chão, sem vida, somente Deus está nos segurando neste momento".

Já antevejo o pior e, dentro do realismo noticioso, acalento uma secreta esperança de que seja encontrada viva, de que ficou desmemoriada ou mesmo de que deixou tudo para trás num surto de mudança repentina de personalidade. Prefiro uma anormalidade psicológica a admitir que foi vítima de um homicídio ou abuso. Latrocínio está descartado, pois não carregava nada de valor. A ausência de contato para resgate também derruba a tese de sequestro. Suicídio é uma opção controversa, já que não há corpo nem uma carta de adeus.

Entendo que, a cada dia que passa, o sopro do otimismo torna-se ainda mais débil. Gostaria que a Polícia Civil retomasse as buscas, suspensas desde terça-feira, e não desistisse de circular com a sua equipe pelo Matão, no limite com Sapucaia do Sul. A simples procura ativa mantém a nossa fé de pé.

Morei durante treze anos em São Leopoldo e já repeti muitas vezes o seu percurso das avenidas Unisinos e Theodomiro Porto da Fonseca. Conheço os lugares, frame por frame, por onde ela passou, registrados pelas câmeras de segurança.

Alessandra saiu de sua casa, no bairro Cristo Rei, para atividade física, e não levou celular nem outro tipo de acessório ou documento. Era o seu costume permanecer off-line, despojada, para arejar a cabeça das preocupações e das chamadas urgentes da rotina. Quantos de nós já não reproduziram a cena, para combater o sedentarismo e suar um pouco unicamente com roupas esportivas e um tênis? Jamais cogitamos a possibilidade de uma desaparição forçosa e repentina.

O que me intriga é que ela mudou o seu trajeto habitual e entrou na mata. O que ela queria? Foi ver alguém? Quem? Ou foi movida apenas pela curiosidade de ampliar os seus espaços verdes de caminhada?

Alessandra virou subitamente minha filha, minha amiga inesperada do medo. Acordo sempre ansioso por um aviso, por uma pista.

Só não quero que os cães farejadores a localizem primeiro. Que na nossa história policial tenhamos um resgate de alguém são e salvo depois de um longo desaparecimento. Seria um milagre. Estamos carentes de milagres.

CARPINEJAR

25 DE JULHO DE 2022
OPINIÃO DA RBS

A PRAGA DO VANDALISMO

O vandalismo é uma praga urbana de difícil combate. Na Capital, o mais recente episódio a revoltar os porto-alegrenses foi o ataque às estátuas, na Praça da Alfândega, no Centro Histórico, que homenageiam os poetas Carlos Drummond de Andrade e Mario Quintana. Amanheceram na última quarta-feira parcialmente cobertas por tinta amarela. Felizmente, a investida não causou estragos e, no dia seguinte, as peças de bronze já estavam limpas. Mas o impacto visual do ato chamou atenção e, outra vez, conduziu à reflexão sobre as razões de uma atitude sem sentido, a não ser, talvez, o prazer mórbido da destruição.

As cidades convivem com dois tipos de depredação do patrimônio material, afetivo ou cultural. Um deles é o furto do que possa ser revendido. O outro é a mera pulsão por arruinar. Em Caxias do Sul, por exemplo, tenta-se coibir os estragos no Cemitério Municipal, movidos, ao que se percebe, pela busca por subtrair objetos que tenham valor de comercialização no mercado ilegal, mas também pelo simples impulso de vandalizar. 

O município da Serra ainda teve neste ano inúmeros episódios de contêineres de lixo incendiados, uma ação sem qualquer propósito racional. Em Porto Alegre, são raros os monumentos, bustos ou estátuas em locais públicos que ainda não foram depredados ou pichados. No bairro Cidade Baixa, são recorrentes as investidas contra girafas de concreto que enfeitam a calçada em frente a uma escola infantil. Tornaram-se alvo somente por serem um enfeite exposto que pode ser facilmente fustigado por transeuntes com ímpeto bárbaro. São mazelas comuns a várias cidades, especialmente as mais populosas.

A despeito de ser um problema de árdua contenção e com punições, em regra, brandas, esmorecer não é opção. Pelo contrário. A disposição de consertar, manter, limpar é demonstração do poder público e dos moradores de que a vontade de conservar é mais forte. O abandono, por outro lado, sinaliza resignação.

O combate a esse mal deve ser feito em frentes múltiplas. A ampliação do número de câmeras de vigilância, cada vez mais comuns e espalhadas, é uma delas, ao lado da presença das guardas municipais para inibir atitudes desairadas ou furtos, como nos casos dos cabos de cobre utilizados na iluminação. É essencial ainda trabalhar com a ótica da educação, esclarecendo que o patrimônio público é um bem comum. Não é porque não há um dono identificado, como em uma propriedade privada, que não pertence a ninguém. 

O sentimento de pertencimento, aliás, é a chave para o cuidado e a preservação. Seja um busto de um vulto histórico, uma praça ou um equipamento urbano simples, mas de grande serventia, como uma lixeira, é preciso sedimentar a consciência e a mentalidade de que cada cidadão é também um proprietário daquele bem que cumpre uma função no cotidiano ou embeleza e valoriza a cultura de sua cidade. Cuidar é uma tarefa coletiva.


25 DE JULHO DE 2022
+ ECONOMIA

BRUNO OTTONI Especialista em mercado de trabalho

Formado em Economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Bruno Otonni fez mestrado e doutorado em Economia na PUC-Rio. Atualmente pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (IBRE/FGV) e professor adjunto da UERJ, pesquisa a área de microeconomia aplicada com ênfase em economia do trabalho. Nesta entrevista, Ottoni analisa o momento do mercado de trabalho brasileiro e avisa: não há como escapar do desaquecimento econômico que o aumento de juros provocará. Resta só saber quando esse efeito será sentido.

Hoje, a geração de empregos dá respostas positivas, mas até quando isso deve permanecer?

Aconteceu um momento surpreendente e positivo. De fato, contrariando as expectativas, houve geração de empregos no país e a taxa de desemprego caiu bastante. Já vem caindo desde o momento de reabertura da economia, com a vacinação avançando. Normalmente, no início do ano, a taxa sobe por questões sazonais, mas se manteve estável e voltou a cair após o primeiro trimestre. Isso é uma boa notícia. O mercado de trabalho tem sido o copo meio cheio da atual conjuntura econômica. Agora, o copo meio vazio é a qualidade destes empregos. Quando a gente olha para os postos, percebe-se que a renda não é boa. É claro que existe o peso da inflação na corrosão dessa renda, mas há também o componente da qualidade. Há muita geração de vagas de trabalho por conta própria, há emprego formal sendo gerado, sim, mas os sem carteira e os informais reduzem o rendimento e fazem com que a qualidade piore.

E quais são as projeções daqui para diante?

Quando se olha para frente, as perspectivas são piores, porque o cenário brasileiro é moldado pelo aumento da taxa de juros na tentativa de conter a inflação. Isso, necessariamente, gera desaquecimento da economia e terá impacto sobre o mercado de trabalho. O cenário global também não contribui, pois os bancos centrais mundo afora aumentam suas taxas de juros, por conta da inflação. Isso deixa o cenário futuro bastante pessimista, diferente do que estamos observando por aqui nos últimos meses.

Mesmo em cenário hipotético, é possível controlar a inflação sem gerar desemprego?

A pergunta de "um milhão de dólares" é: quando o desemprego vai se materializar? Isso acontece porque vão ter dois impactos conjuntos: o primeiro, da desaceleração da economia brasileira, e o segundo, da desaceleração da economia mundial. O que não se sabe é, exatamente, quando esses choques vão começar a trazer efeitos. Sabe-se que as ações do BC levam tempo (fala- se em seis meses ou mais de defasagem) para trazerem resultados e há incertezas sobre o momento em que o emprego irá caminhar na direção oposta da de agora. Depois, ainda tem a política monetária internacional.

Que influência teve a reforma trabalhista de 2017 para o comportamento do emprego agora e durante a pandemia?

É muito difícil dizer. Conheço dois trabalhos que buscam uma análise mais séria a respeito desse tema. Um deles, que tem suas limitações metodológicas, não relata muitos efeitos. O outro, também com limitações, mas com método mais crível, conclui que há geração de emprego associada à reforma. 

O problema é que esse segundo avalia apenas um aspecto específico que se refere aos honorários de sucumbência (valores que a parte vencida em um processo judicial precisa pagar ao advogado da vencedora, que teve teto estipulado pela reforma) que teria reduzido a quantidade de ações trabalhistas. Sabemos que a reforma foi muito mais ampla do que isso e alterou inúmeros aspectos da legislação. Então, esse trabalho também tem dificuldades em delimitar o efeito agregado. De fato, infelizmente, não temos evidências robustas para afirmar que a reforma trabalhista teve impactos no mercado de trabalho brasileiro ou não e, se teve, qual teria sido.

Mas há quem argumente que as novas modalidades teriam contribuído para precarizar o mercado e reduzir a renda?

Nesse aspecto, em específico, podemos refutar e negar a afirmativa. Quando pegamos o número de empregos, vemos que o emprego intermitente e o trabalho em tempo parcial tiveram pouca geração de vagas. Portanto, me parece que não se pode dizer que a baixa qualidade do emprego, que tem sido observada nessa recuperação do mercado e trabalho atual, tenha relação com as novas modalidades trazidas pela reforma. Os dados não parecem corroborar, porque, se isso fosse verdade, teríamos muita geração nessas novas modalidades. 

O que pode estar acontecendo é que a reforma ampliou o escopo para a contratação de autônomos, aqui entendidos como MEIs (microempreendedores individuais) e trabalhadores por conta própria com CNPJ. Este último tipo de emprego tem crescido muito e possui um grau maior de precarização na comparação com a carteira assinada, nem tanto na renda, mas de volatilidade de renda e garantias, como por exemplo acesso ao INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) em caso de acidente. Também, em caso de perda do emprego, não existe FGTS e seguro-desemprego. Então, nesse sentido, o conta própria com CNPJ, talvez, represente a precarização do emprego e pode estar ligado a uma facilitação, via reforma trabalhista. Esse é o canal em que se pode perceber alguma precariedade trazida pela reforma, mas é algo que precisa ser comprovado.

E os efeitos da injeção de recursos na economia para o mercado de trabalho?

Inflação e efeitos sobre emprego dependem do BC. Há um cenário de disputa entre o BC e o governo. O BC pisa no freio e o governo solta a mão. Talvez a gente viva um cenário de aceleração da economia, chegando perto da eleição, com inflação subindo também, em razão dessa injeção de recursos, com uma posterior reação da política monetária para contrapor essa estratégia mais "expansionista" do governo. Vai depender de com que defasagem as duas políticas vão impactar a economia e também a intensidade de ambas.

RAFAEL VIGNA INTERINO

25 DE JULHO DE 2022
INFORME ESPECIAL

A família cresceu

Laís, Lídia, Ícaro, Raquel e Rianna, os cinco robôs que ajudam o Tribunal de Contas do Estado (TCE) a detectar irregularidades em órgãos públicos, ganharam duas "irmãs": Consuelo e Larissa.

Embora não seja possível ver a turma circulando pela instituição, a família de bots trabalha 24 horas por dia dentro dos computadores do TCE. Como já descrevi na coluna, os robôs são sistemas de Inteligência Artificial (IA) programados para cruzar dados e identificar itens fora do padrão nas auditorias.

Consuelo foi desenvolvida para consultar elos (daí o nome: "consu + elo") entre agentes públicos e pessoas registradas no LicitaCon, sistema que monitora licitações e contratos. Por lei, quem tem vínculos com dirigentes do órgão contratante ou com servidores envolvidos no processo, não pode participar. Consuelo evita infrações.

Já Larissa é especializada em emitir alertas de risco aos auditores. Ela atua de forma integrada com os sistemas do Tribunal de Contas da União (TCU) e da Receita Federal e usa detalhes dos Cadastros de Empresas Inidôneas e Suspensas (Ceis) e de Entidades Privadas Sem Fins Lucrativos Impedidas (Cepim). Com base em uma matriz de risco com mais de 30 itens, Larissa avisa sempre que algo não bate.

- Ambas já estão em plena atividade. O ganho é enorme, porque permite ao TCE agir em tempo real, de forma preventiva - resume Aramis Ricardo Costa de Souza, que atua com gestão estratégica de informação na Corte.

JULIANA BUBLITZ

sábado, 23 de julho de 2022


23 DE JULHO DE 2022
MARTHA MEDEIROS

Sobre coisas que acontecem

Quando abri os olhos pela manhã, não podia imaginar que seria o dia que mudaria a minha vida. Que seria o dia que conheceria o homem que me faria cometer um crime. O dia que eu me enxergaria no espelho pela última vez. O dia que descobriria que estava grávida. O dia que encontraria um envelope lacrado, com uma carta remetida a mim 20 anos antes.

(Que dia foi esse? Quem está falando?)

É apenas um exercício de criação. Iniciei a crônica com uma frase fictícia e demonstrei os desdobramentos que ela poderia ter. Uma vez escolhido o caminho a seguir, uma história começa a ser contada, que pode ser longa ou curta, verdadeira ou fantasiosa. Bem-vindo ao mundo encantado da escrita.

Convém que a primeira frase seja cintilante. A partir dela, o leitor será fisgado ou não. Exemplo clássico: "Todas as famílias felizes se parecem; cada família infeliz é infeliz à sua maneira", início do romance Anna Karenina, de Tolstói. Arrebatador. Uma vez aberta a janela do pensamento, a mágica acontece: o leitor é puxado para um local em que nunca esteve, é deslocado para um universo que poderá até ser hostil, mas certamente fascinante, pois novo. Talvez não se identifique com nada, mas será desafiado a enfrentar sua repulsa ou entusiasmo. Não estará mais em estado neutro. A neutralidade é um desperdício de vida, uma sonolência contínua.

A crônica tem o mesmo dever: o de jogar uma isca para o leitor e atraí-lo para o texto. Gênero híbrido (literário/jornalístico), encontrou no Brasil a sua pátria. Somos a terra de Rubem Braga e Antonio Maria, para citar apenas dois gênios entre tantos que fizeram da leitura de jornal um hábito não só informativo, mas prazeroso e provocador. Se eu fosse citar todos os colegas que admiro, teria que me estender por meia dúzia de páginas, mas só tenho essa.

A crônica é um gênero livre por excelência. Pode ser nostálgica, confessional, lunática, poética. Pode dar dicas, polemizar, elogiar, criticar. Pode ser partidária ou sentimental, divertida ou perturbadora, à toa ou filosofal - é caleidoscópica, tal qual nosso cotidiano. Ao abrirmos os olhos pela manhã, nem imaginamos que uma miudeza qualquer poderá nos salvar da mesmice, nos oferecer um outro olhar, mas assim é. Todos nós vivemos, por escrito ou não, uma crônica diária. Hoje, antes de adormecer, você já estará um pouco transformado.

Apêndice comercial: nesta segunda-feira, começa a pré-venda do Master Class que gravei sobre a arte de escrever crônicas. São 30 módulos online onde conto minha longa experiência nesta atividade: os macetes, as alternativas, os obstáculos. Fica o convite para a live de lançamento, dia 25, às 20h, no perfil @_xpertise do Instagram.

MARTHA MEDEIROS

23 DE JULHO DE 2022
CLAUDIA TAJES

Inteligência nada artificial

Já tem o aspirador que trabalha sozinho, a geladeira com internet para você pegar água enquanto pesquisa no Google, o controle universal com wi-fi que aciona a casa inteira. Nessas horas, sempre lembro da música da novela O Espigão, exibida quando eu era criança - portanto, há milhões de anos - e que tratava da especulação imobiliária em uma antecipação das mais sagazes do que estava por vir na vida real. Não por acaso, o autor era Dias Gomes.

Interrompemos nossa programação normal para falar de um caso dessa natureza, a demolição da casa do escritor Caio Fernando Abreu. O famoso sobrado colonial espanhol que pode ser encontrado em tantos textos do Caio. Segundo os órgãos públicos, a casa não tinha valor suficiente para entrar no inventário do bairro Menino Deus, o que asseguraria seu tombamento. Arquitetonicamente falando, talvez não tivesse mesmo. Mas é incrível como o poder público desconsidera que uma cidade também é feita de história e memória e saudade e delicadeza. A casa do escritor gaúcho cultuado no país inteiro, ponto de atração para os fãs que deixavam flores e velas em suas grades, caiu para, muito provavelmente, dar espaço a mais um prédio de pequenos estúdios sem espaço para nada. E preços que extrapolam, em muito, seus poucos metros quadrados.

A Associação Amigos de Caio Fernando Abreu, fundada justamente para tentar salvar a casa, fez o que pode em seus mais de 10 anos de luta. Mas manter um centro cultural não seria tão enriquecedor para a cidade - para alguns? - quanto mais um prédio igual a todos. Era sobre isso que a novela de Dias Gomes, que foi ao ar no longínquo ano de 1974, tratava.

Voltamos à nossa programação normal.

Não assisti à O Espigão, na época o tema não me interessava nadinha e a novela ia ao ar tarde demais para quem tinha aula no turno da manhã. A música dos créditos ouvia já na cama, segundos antes de apagar, na voz de Zé Rodrix. E nunca esqueci.

"Hoje eu não preciso mais coçar as costas / Inventaram o coça-costas eletrônico / Eu só fazia força / Quando ia abrir a porta da minha Mercedes / O único exercício que eu fazia / Era abrir a porta da minha Mercedes."

O protagonista de O Espigão era um empresário rico que nem a porta da Mercedes abria mais, já que o motorista abria para ele. Mas o que me impressionou naquela música, em priscas eras, foi a possibilidade de, um dia, inventarem eletrônicos capazes de fazer tudo pela gente, e de um jeito à prova de erros.

Pois esse dia chegou. Já existe o fogão eletrônico, que pode ser controlado a distância e manda notificação por celular quando a receita fica pronta. Alguns possuem câmeras no interior do forno, e você recebe as imagens no celular via bluetooth, acompanhando o preparo enquanto vê a novela.

Tem a máquina de lavar roupa "smart", que também pode ser controlada a distância e escolhe sozinha os ciclos de lavagem conforme a cor e a sujidade das peças.

E a panela eletrônica com wi-fi? A conexão com a internet permite controlar as funções a distância por meio do smartphone. Feijão queimado e arroz empapado, nunca mais.

A maior parte dos eletrônicos ultrassofisticados ainda não está à venda aqui e custa uma fortuna. Mas em pelo menos um produto eletrônico o Brasil é o mestre da tecnologia. É uma caixinha pequena, com poucos botões, sem conexão com a internet, auditável e com todos os testes e procedimentos possíveis para garantir a segurança e a inviolabilidade antes, durante e após o uso.

O nome é urna eletrônica.

Pode acionar sem medo e com toda a confiança que a coisa tem sido testada e aprovada desde 1989, sem reclamações. Só que, diferentemente da panela que cozinha por conta própria, a urna eletrônica precisa que você faça a sua parte direito para o caldo não entornar de vez.

Por mais que a tecnologia evolua, tem coisas nessa vida que só a gente pode fazer pela gente.

CLAUDIA TAJES

23 DE JULHO DE 2022
LEANDRO KARNAL

Existe um caminho formal para o estudo da filosofia: uma graduação na área. Serão alguns anos pela frente, em aulas, trabalhos, fichamentos, seminários e avaliações. Muito esforço e você sairá, em média, daqui a quatro anos, bacharel ou licenciado. Se o curso for de uma boa instituição, isso implicará a necessidade de línguas também: inglês e francês com certeza, grego e alemão como complemento desejável.

O curso é fascinante, e sua maneira de pensar, o graduando, será, com certeza, transformada. Novos termos como epistemologia ou silogismo entrarão no seu vocabulário. Processos mentais serão questionados. Você fará perguntas melhores do que fazia antes do curso. É uma aventura fascinante.

A filosofia é uma teoria e uma prática e um questionamento sobre o que seria teórico ou prático. Sabemos que há demandas grandes e nem sempre acessíveis. Mesmo assim, o interesse pela área vai além dos profissionais. Assim como a vontade de cozinhar ou comer excede os bons cursos de gastronomia, a vontade de filosofar transborda por muitos lugares.

O primeiro caminho é um curso oficial e bom de Filosofia. E para os mortais que não desejam passar pelas estradas lentas de um curso superior e, mesmo assim, amam o mundo das ideias? A segunda via é ser autodidata. Você pega um texto básico como a Apologia de Sócrates, busca informações prévias sobre o autor, sobre o contexto e começa a leitura. Lê uma, duas, 10 vezes. Domina o texto. Cria, talvez, um grupo de debates nas redes. Depois, encara obras mais vastas ou complexas. É uma longa e maravilhosa estrada. Tudo depende do empenho do viajante solitário.

O terceiro caminho é diferente. Você talvez não tenha tempo ou disposição para um curso oficial. Também não deseja o domínio das grandes obras. Talvez você queira algo mais prático e direto. Voltando à metáfora do chefe de cozinha, talvez você não almeje abrir o melhor restaurante do mundo ou dominar complexas artes de doçaria. Você só quer... cozinhar e comer melhor do que faz hoje. Para esse caso, há obras de divulgação.

Começo falando de uma grata descoberta: 50 Ideias de Filosofia que Você Precisa Conhecer (Ben Dupré, Planeta). O texto é bem pensado e indica um estudo quase sistemático de ideias amplas sobre o que é consciência, conhecimento, validação do real e outras bem contemporâneas como os direitos dos animais e Deus existe? Há muitos tratados sobre o tema e capítulos bem específicos no livro do professor inglês. A série ainda tem muitos livros de 50 ideias de psicologia, matemática etc. O canadense Lou Marinoff fez sucesso, há vários anos, com o texto Mais Platão, Menos Prozac (Record). No caminho de dicas práticas, já indiquei aqui o Diário Estoico, com suas 366 dicas sobre a arte de viver (Ryan Holiday e Stephen Hanselman, Intrínseca). Você pode ler uma reflexão por dia e será de grande proveito.

Marc Sautet também fez sucesso com seu Um Café para Sócrates (José Olympio). Eu acompanhei o que ele começou no Café des Phares, em Paris, conversando com estudantes, donas de casa, trabalhadores em geral sobre temas filosóficos. Fiquei impressionado com os resultados iniciais. Na mesma onda, surgiu Sócrates Café (Sanskrito), do norte-americano Christopher Phillips. Esses são dois livros de títulos parecidos e linguagens muito distintas.

Mirando em um público mais jovem, o norueguês Jostein Gaarder fez barulho com O Mundo de Sofia (Cia. das Letras). Foi um livro muito popular há uns 20 anos e ainda conserva um bom interesse. Alain de Botton está perto dos nomes anteriores. Quer pensar sobre o Desejo de Status (Rocco) ou As Consolações da Filosofia (Rocco, L&PM)? O suíço ajudará com ideias caras e interessantes.

Existem boas histórias da filosofia em forma mais didática. Você pode começar por Danilo Marcondes: Iniciação à História da Filosofia (Zahar). Se tiver fôlego, expanda para a coleção da Editora Paulus, organizada pelo grande Giovanni Reale: História da Filosofia (sete volumes). Minha geração lia muito autores de História Geral e de Filosofia, com grande sabor narrativo: Bertrand Russell e Will Durant. Será que alguém ainda os lê? Eu amava.

Eu falei que este era um terceiro caminho. Ler para pensar mais, sem pressa ou demandas de um diploma. Se os livros introdutórios pareceram fáceis, perfeito! Chegou o momento de fazer o itinerário dos grandes clássicos de Platão, Aristóteles, Agostinho, Descartes, Kant, Sartre, Simone de Beauvoir ou Hannah Arendt. Num dia, você pode estar lendo Hegel em alemão e... gostando. Em outro momento, pode escutar um discurso de um político e identificar falácias claras, conforme a lógica formal.

De outra sorte, simplesmente, pode usar o termo "navalha de Ockahn" com propriedade. Se seu Sócrates chegar de havaianas ou de black-tie, o importante é que ele possa ter alguma conversa com você. "Ah, Leandro, eu não entendo tudo o que leio." Não se preocupe, ninguém entende tudo o que lê. Professores doutores em Filosofia não compreendem tudo, mas sabem disfarçar melhor do que o entregador de pizza que vi em Paris, perguntando algo a Sautet. O bonito é tentar e desafiar-se. A esperança é perfectível; a perfeição é divina e não filosófica.

LEANDRO KARNAL

23 DE JULHO DE 2022
ELIANE MARQUES

ERINLÉ E O DINHEIRO NOSSO DE CADA DIA

O mais belo dos caçadores, Erinlé, e o instituidor do oráculo, Orunmilá, tornaram-se amigos. Erinlé necessitava de dinheiro e pediu a Orunmilá, que prontamente o atendeu. Contudo, o tomador do empréstimo não tinha como pagar seu benfeitor. Nessa situação, procurou ajuda de um sacerdote que o aconselhou a fazer oferendas, pois, assim, conseguiria muito mais que o dinheiro para saldar a dívida. O problema é que Erinlé não teve dinheiro para as oferendas. Envergonhado, dirigiu-se até o lugar desabitado onde caçava, depositou seu ofá no chão e desapareceu terra adentro. Embora o itán continue, para os fins desta coluna, importa apenas a parte transcrita.

Como muitos de nós, Erinlé preferiu ser engolido pela terra a trocar seu discurso de impossibilidades, equivalente à quebra dos laços com Orunmilá, com o sacerdote... Pode-se considerar sua insistência no "eu não tenho", no "eu não tenho dinheiro", sob diversos aspectos (econômico, político, sociológico). Contudo, a psicanálise faz desse itán uma leitura singular, especialmente porque, nela, o dinheiro assume o valor de um significante. Significante é o que representa ao sujeito para outro significante. Portanto, quando se quer agarrá-lo, ele foge. Acontece que, para a instância inconsciente, o dinheiro pode perder esse valor de circulante e assumir caráter metafórico, substituindo ou encobrindo qualquer palavra (excremento, presente, órgãos sexuais).

O itán omite o destino que Erinlé emprestaria ao dinheiro que recolheu de Orunmilá, justamente porque isso não interessa. Não se trata de dinheiro para o fim de suprir uma necessidade material e específica do futuro orixá. Assim como o significante está exilado do conjunto das palavras, o dinheiro está exilado do conjunto das demais mercadorias. Ele se inscreve na política do desejo.

Recordemos que um dia Erinlé foi tudo para Iemanjá até que ela o devolveu ao mundo, depois de tê-lo raptado. Porém, o caçador conhecera os enigmas do mar e, para que não os revelasse, Iemanjá cortou sua língua. Podemos pensar que, no fundo do mar, Erinlé se sentia perfeito, o melhor dos presentes de Iemanjá. Não precisava dar ou estabelecer laços sociais, ele já era o presente. Perdida essa condição, ele preferiu sofrer pelo que supostamente não tinha a reconhecer que, agora, teria que dar algo além de seu próprio corpo. 

Aqui, dar algo significa manter um laço social que não seja o de puro gozo. A ausência de dinheiro teve para ele a eficácia de um pré-texto, algo que precede o texto da sua vida estancada num estado infantil de necessidade e castigo por seus sentimentos hostis - não ter para não dar e para não ser incomodado, pois ninguém pede a quem não tem. Ter ou não ter parece ser a questão, mas não o é. Talvez a única pobreza de Erinlé fosse a de seguir pensando sua vida como se ele ainda o dinheiro de Iemanjá, assim como nossa única pobreza talvez seja a de conceber nossa vida com o excesso ou a falta de dinheiro dos nossos genitores.

ELIANE MARQUES

23 DE JULHO DE 2022
DRAUZIO VARELLA

ABUSO DE ÁLCOOL

É um problema grave de saúde pública. A Organização Mundial da Saúde (OMS) calcula que mais de 40% da população mundial com mais de 15 anos consomem bebidas alcoólicas, contingente de 2 bilhões de pessoas.

Entre elas, estão as que fazem uso abusivo, termo técnico cuja definição varia entre os países. Segundo o doutor Riad Younes, cirurgião abstêmio: "Uso abusivo é o do paciente que bebe mais do que o seu médico".

O consumo excessivo está associado a aumento da mortalidade geral e a mais de 200 doenças, das quais ele é causa necessária em 40. A variedade é grande: vai das crônicas (hepáticas, cardiovasculares, câncer), às transmissíveis (tuberculose, pneumonia, HIV/aids), aos acidentes e à violência interpessoal. No Brasil, o álcool é o sétimo fator de risco mais importante para mortalidade: 5,5% do total de mortes.

O Ministério da Saúde criou em 2011 um Plano de Ações Estratégicas, em que uma das metas era a de reduzir em 10% a ingestão abusiva, até o ano de 2022. De acordo com o Plano, ingestão abusiva é "o consumo igual ou maior do que cinco doses em uma única ocasião para os homens, e igual ou maior do que quatro para as mulheres" (uma dose = 12 g de álcool puro).

Luiza Sá e Silva e colaboradores do Ministério da Saúde acabam de publicar os resultados colhidos em duas avaliações: a primeira realizada em 2013, entre 60.202 participantes de ambos os sexos, com 18 anos ou mais. A segunda em 2019, com 88.513 mulheres e homens da mesma faixa etária.

No ano de 2013, a prevalência do consumo abusivo nos 30 dias anteriores à pesquisa era de 13,7%. No ano de 2019, esse número, em vez de cair, aumentou para 17,1%.

Tanto num ano como no outro, a prevalência do abuso foi mais alta no sexo masculino, na faixa etária dos 18 aos 39 anos, nos negros, nos indivíduos com mais escolaridade, residentes em áreas urbanas e nas regiões Sudeste e Centro-Oeste.

De 2013 a 2019, as prevalências aumentaram em todas as categorias sociodemográficas. Os maiores aumentos ocorreram no sexo masculino (21,6% para 26%), nas mulheres (6,6% para 9,2%) e na faixa dos 25 aos 39 anos (18,9% para 23,7%).

Em relação à escolaridade, a prevalência é mais baixa na população sem instrução ou com curso fundamental incompleto. Apesar de ter aumentado de 11,1% para 12,7%, essa prevalência foi inferior à daqueles com curso superior. Neste grupo mais instruído o consumo excessivo cresceu 30% no período.

Em 2019, a prevalência foi mais alta nas regiões Centro-Oeste (19,6%) e Sudeste (17,4%). A mais baixa foi na região Sul (14,7%).

Na maioria dos Estados, a prevalência cresceu. Em 2019, os maiores índices foram os de Sergipe (23,7%), Mato Grosso do Sul (21,7%) e Mato Grosso (21,5%). Em Sergipe, Rio Grande do Norte e Mato Grosso do Sul, a prevalência entre os homens ultrapassou 30%.

Conduzida com dezenas de milhares de participantes, o estudo mostra que os brasileiros bebem cada vez mais. Os números se referem ao consumo excessivo nos 30 dias que antecederam a pesquisa. É evidente que existem diferenças entre um homem que tomou cinco ou mais doses (quatro ou mais se for mulher) uma única vez, nesse período, e outro que o faz todos os dias. No entanto, ultrapassar as quantidades estipuladas na pesquisa, ainda que ocasionalmente, é marcador de risco para alcoolismo.

A principal característica do alcoolismo é a perda de controle. São aquelas pessoas que às vezes nem bebem todos os dias, mas quando começam não conseguem parar. São os que se embriagam mesmo quando juram que nessa noite não beberiam.

Um país que vende 1 litro de cachaça popular a preços ridículos como o nosso está fadado a conviver com legiões de dependentes de álcool que sobrecarregam o sistema de saúde, além de causar danos sociais e tragédias na vida familiar.

DRAUZIO VARELLA

23 DE JULHO DE 2022
J.J. CAMARGO

ESCRAVOS DO CARÁTER

Seria ótimo se pudéssemos classificar as pessoas por comportamentos e atitudes, porque a partir daí as atitudes seriam previsíveis e as surpresas desagradáveis evitadas, ou prevenidas. E, leves e soltos, festejaríamos o fim das desilusões, que muito mais magoam do que educam.

Um dos grandes trunfos da velhice é a capacidade de, precocemente, identificar o generoso, o dissimulado e o mau-caráter. Talvez a sabedoria signifique eleger corretamente estes critérios que nos definem como seres únicos, porque, afinal, não somos mais do que isto: escravos do caráter que temos.

Algumas dessas classificações impressionam pela simplicidade e didática. Senão, vejamos:

Uma foto, numa galeria de arte, em Minneapolis (EUA) mostrava três macacos. O primeiro deles, em posição de alerta máximo, olhando fixo para a câmera. O segundo com a cabeça apoiado no ombro do primeiro, e o terceiro com a cabeça por trás dos outros dois. E a legenda: "Existem três tipos de pessoas: as que fazem as coisas acontecerem, as que assistem acontecer e as que querem saber o que que aconteceu".

Ivan Faria Correa, meu primeiro e inesquecível mestre de cirurgia e de vida, recomendava prudência em relação aos amigos, certos ou potenciais: "Existem aquelas pessoas que gostam da gente e nem sabemos o porquê, e não nos preocupamos em descobrir. Essas gostam de qualquer jeito e até quando não merecemos. São joias que temos que preservar a todo o custo, porque sem elas sobra nada.

Um segundo grupo é formado por uns tipos que não gostam de jeito nenhum, e não nos preocupam porque já aprendemos que não há nada que se possa fazer para conquistá-los.

E um terceiro grupo é formado pelos que ainda não se decidiram, e sendo assim temos que ficar de olho neles, até que se decidam".

Numa loja de souvenir no Quartier Latin, em New Orleans, me encantei com uma placa de madeira com a seguinte legenda: "As pessoas superiores falam de ideias. As pessoas medianas falam de coisas. E as pessoas inferiores falam de outras pessoas". Ela desceu da parede para me fazer companhia na viagem de volta.

De tanto viver, e convencido de que a vida sem desafios desencanta, tive a sabedoria de manter distância dos desanimados e recrutei entre os jovens aqueles que acreditavam que não podíamos permitir que as mazelas que nos rodeiam fossem limitantes do tamanho dos nossos sonhos, e que a coragem mais produtiva é aquela que se opõe às circunstâncias que os fracos atribuem ao destino.

E foi assim que encontrei três tipos de convivas, munidos de motivações contrastantes. Os que fazem, os que não fazem e não se importam que alguém faça, e os que, não fazendo, não suportam que outros façam. Claro que ninguém deve sentir-se obrigado a fazer qualquer coisa que não lhe dê prazer, e então deixemos o segundo grupo em paz.

Mas se eu soubesse o que fazer com o terceiro grupo, não teria sentido tanta falta dos conselhos do Mestre Ivan.

J.J. CAMARGO

23 DE JULHO DE 2022
CARPINEJAR

Peito ou asa?

O casal de velhinhos já havia completado bodas de ouro, cinquenta anos de cumplicidade e cuidados recíprocos com o frio. Na véspera de sair, ela o lembrava da boina, ele a lembrava da manta.

Numa noite de inverno gaúcho, os dois foram jantar no apartamento da filha, no Menino Deus. Ela preparou uma galinha assada no forno, do jeito antigo, dourando a ave com o pincel dos temperos. Na hora de servir, a filha perguntou para a mãe: prefere peito ou asa?

A mãe enrubesceu, titubeou e disse: - Asa! Seu marido a interrompeu: - Como asa? Sempre a servi com o peito.

- Pois é, eu gosto mesmo é de asa - ela explicou. Um desconforto dominou a cena. A filha tentou ajeitar o ruído de comunicação, o silêncio esquisito, agora perguntando ao pai o que ele preferia: asa ou peito?

- Peito! - Ele quase gritou, não controlando a determinação do seu desabafo. - Como peito? Sempre separei para você a asa - atalhou a esposa.

- Pois é, sempre gostei mais de peito. Ambos se entreolharam com espanto, e começaram a rir. Desencadearam uma crise de risos sem precedentes, sem trégua. Chegava a doer a barriga, iam para trás e para frente como se estivessem numa cadeira de balanço imaginária, não nas cadeiras fixas ao redor da mesa.

A filha não entendeu qual o motivo para desenfreada graça. Era para chorar, não para rir. Jamais tinha testemunhado gargalhadas sinceras e intermináveis dos seus pais. Ficou até assustada, com medo de que se engasgassem e passassem mal.

Durante o casamento de décadas, um tentou ser mais gentil do que o outro, e assim se anularam. Entenderam errado o que o seu par apreciava e se prontificaram a fazer renúncias. Amor não é telepatia. O casal descobriu isso tarde demais. Mas antes tarde do que nunca.

Adivinhar é um risco, deduzir é temerário, leituras de mentes geram sempre enganos na transcrição ao papel.

Eles acabaram sendo vítimas do excesso de educação. Por não expor o que desejavam, ela comeu peito quando queria asa, ele comeu asa quando queria peito. Ninguém nunca fez objeção, acordaram que era assim desde a primeira galinha juntos. Não esclareceram a falha. Um deixava para o outro a sua parte favorita, jurando que agradava e realizava uma provação de amor.

- Que bom que não morremos com esse equívoco - ela suspirou, aliviada. - Dizem que galinha cisca para trás. Essa galinha foi longe no passado - ele brincou.

O casal de velhinhos se beijou enternecidamente. Um selinho prolongado, como aquelas cartas de outrora fechadas com a cola da saliva. - Sabe o que é o melhor de tudo? - Ela questionou.

- Não, o quê? - Ele ficou curioso. - Veio uma grande esperança: ainda temos muito a nos conhecermos. Tão triste quando não há nada mais a descobrir em quem amamos.

Pela primeira vez na vida, lado a lado, a esposa se deliciou com a asa (seus olhos voavam plenos), o marido degustou o peito (com a altivez dos ombros erguidos), e repetiram a porção três vezes, para compensar o tempo perdido.

CARPINEJAR

23 DE JULHO DE 2022
FLÁVIO TAVARES

INQUIETA PERGUNTA

Uma pergunta inquietante paira no ar: o que pretendeu o presidente Jair Bolsonaro ao reunir-se com cerca de 40 embaixadores estrangeiros para dizer-lhes que o sistema eleitoral do Brasil não é confiável?

Foi adiante o presidente da República, afirmando que a apuração eletrônica é uma farsa e que, por isso, a "estabilidade democrática" depende do ajuste das urnas. Descumprir a "estabilidade democrática" seria um golpe de Estado?

A insinuação foi tão direta que, em Washington, o governo dos Estados Unidos, de imediato, rebateu as afirmações de Bolsonaro: "As eleições brasileiras, conduzidas e testadas ao longo do tempo pelo sistema eleitoral e instituições democráticas, servem como modelo para as nações do hemisfério e do mundo", disse o governo de Joe Biden.

Mesmo soando em apoio ao vigente sistema eleitoral brasileiro, a manifestação do governo Biden não impediu que Bolsonaro mobilizasse diferentes setores governamentais para respaldar suas esdrúxulas afirmações. Os ministros da Defesa e da Justiça, além do Gabinete de Segurança Institucional (ou seja, o tripé da ação política governamental), apoiaram publicamente as afirmações de Bolsonaro aos embaixadores. Logo, somaram-se a Controladoria-Geral da União (CGU) e a Advocacia-Geral da União (AGU), numa tentativa de dar consistência ao que Bolsonaro sustentou.

Mobilizar diferentes áreas governamentais parece mostrar apenas uma tática para chegar a um fim determinado. Quando põe em dúvida o sistema eleitoral sob pretexto de que é "farsa", o presidente da República estaria pensando em quê?

Todas as alternativas levam a uma interrupção da eleição de outubro, algo similar a um golpe de Estado, totalmente diferente de 1964 (que nasceu em Washington em plena Guerra Fria), mas que, em certos aspectos, lembraria 1937. A diferenciação é que, em 1937, o Exército forçou Getúlio a golpear e, agora, Bolsonaro forçaria as Forças Armadas a acompanhá-lo no golpe.

Aqui, no Rio Grande, outra pergunta inquietante: por que três ex-deputados e atuais conselheiros do Tribunal de Contas (Alexandre Postal, hoje presidente do órgão, Marco Peixoto e Iradir Pietroski) continuam se negando a devolver R$ 1,2 milhão ganhos ilegalmente do Estado, descumprindo até uma sentença judicial?

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES

23 DE JULHO DE 2022
EDUCAÇÃO

Unisinos encerra 12 dos 26 programas de pós-graduação

Professores foram informados da decisão em reuniões nesta semana. Estudantes têm a conclusão dos cursos garantida

A Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) informou professores, nesta semana, que deve encerrar parte dos 26 programas de pós-graduação (PPGs), alguns com conceito de excelência reconhecido. Por meio de nota divulgada nesta sexta-feira, a instituição confirmou que 12 PPGs serão descontinuados, mas não divulgou a lista completa.

A reportagem de ZH conseguiu apurar ao menos seis: Comunicação, Psicologia, Economia, Biologia, História e Ciências Sociais. Demissões também teriam sido anunciadas, mas ainda não foram confirmadas.

Os professores foram informados da decisão em reuniões entre quarta e quinta-feira. A Unisinos confirmou a decisão em nota, onde afirma que "o contexto do ensino superior brasileiro mudou radicalmente ao longo dos últimos anos". O comunicado cita, além da queda do número de matrículas, "a redução expressiva de financiamento público para o Ensino Superior" e a pandemia.

"Para promover o equilíbrio financeiro da instituição e sua preparação para crescer de forma sustentável nos próximos anos, a Unisinos está adotando algumas ações que envolvem o início do processo de desativação de uma parte de seus programas de pós- graduação. Os alunos desses programas não serão prejudicados, pois lhes será garantida a continuidade do curso até que concluam sua formação", diz o texto.

A nota afirma ainda que "a Universidade seguirá investindo e mantendo sua reconhecida excelência em pesquisa acadêmica por meio de 14 programas de pós- graduação, produzindo conhecimento que gera impacto positivo para a sociedade", e que "potencializará seu portfólio de cursos e programas, em permanente conexão com as oportunidades e demandas do mercado, visando contribuir ainda mais para o desenvolvimento do Estado."

Psicologia

Em e-mail enviado aos estudantes, o Colegiado do Programa de Pós-Graduação em Psicologia destacou que "essa é uma das mensagens mais difíceis" que já tiveram de escrever. O texto destaca que todas as atividades acadêmicas e bolsas serão mantidas até a data prevista da defesa de cada aluno, bem como o acesso dos mestrandos e doutorandos aos laboratórios de pesquisa.

"A Coordenação e os professores do PPG Psicologia estão profundamente tristes com todo esse cenário. Contudo, pretendemos garantir a qualidade de ensino e pesquisa do Programa até a última defesa, a fim de honrar os 16 anos de excelência em pesquisas na área de Psicologia Clínica do PPG Psicologia", diz ainda o e-mail, que também lamenta a demissão de quatro professores do programa.

 JÉSSICA REBECA WEBER



23 DE JULHO DE 2022
EMPREENDEDORISMO NO RS

É preciso ter um propósito claro para lidar com desafios

Aos empreendedores, Wilson Zatt sugere que se escolham muito bem as pessoas que estarão ao seu lado no início da jornada, que costuma ser árdua. Ele aponta que, se preciso, vale a pena investir um pouco mais de tempo com esse processo antes de começar a empreender efetivamente. Também ressalta que é necessário entender muito bem o que se está fazendo, o que se pretende solucionar e se realmente há clientes buscando essa solução:

- Para se perpetuar no mercado, a empresa tem que ter seu propósito muito claro: por que existe, que dor resolve, o que faz para ajudar a melhorar a vida das pessoas? A partir daí, se consegue entender o que a empresa nasceu para fazer e no que está focada. É isso que a faz conseguir ter pessoas engajadas para superar os desafios.

Alerta ainda que uma startup nasce com os dias contados e pouco recurso. Então, tem de tentar ser assertiva:

- Se tu não tens um propósito claro no momento em que precisa tomar algumas decisões, podes errar mais. Na Lauduz, quando precisamos tomar decisões estratégicas importantes, sempre nos apegamos ao propósito dela, porque essa é a nossa essência.

sábado, 16 de julho de 2022


16 DE JULHO DE 2022
LEANDRO STAUDT

Moça que deu nome ao leite condensado

O Leite Moça é daquelas marcas que já foram sinônimo do produto, presente na infância de várias gerações. Lembro de ficar esperando minha mãe entregar a colher usada para tirar o leite condensado da embalagem antes da preparação de alguma receita na cozinha. Uma briga para saber quem poderia lamber. As latinhas vazias iam para o lixo, mas os rótulos com receitas de sobremesas eram guardados.

O leite condensado, consumido na Europa e nos Estados Unidos, já era anunciado em jornais do Rio de Janeiro na década de 1860. Apresentado como um produto resultante da retirada de água do leite de vaca e adição de açúcar refinado, chegava nas remessas das companhias de importação.

Na década de 1890, a pioneira Anglo-Swiss Condensed Milk Company, que viria a se fundir com a rival suíça Nestlé anos depois, colocou no mercado brasileiro o Milkmaid, nome em inglês da marca de leite condensado com uma moça, camponesa vendedora de leite, no rótulo. A jovem da embalagem acabaria dando novo nome à marca no Brasil.

O produto era oferecido como substituto do leite fresco, que não podia ser conservado como hoje. De acordo com as propagandas, uma lata de leite condensado misturado com água renderia até quatro litros de leite. A marca importada logo enfrentou a concorrência. Em 1911, a Nestlé & Anglo-Swiss Condensed Milk Company publicou em jornal do Rio de Janeiro o que o consumidor precisava observar para não ser enganado: todo rótulo deveria ter a moça com um balde na mão e outro na cabeça.

A primeira fábrica da Nestlé no Brasil foi inaugurada em 1921 em Araras, no interior de São Paulo. Além do novo leite condensado Ararense, produziu no país a famosa marca Moça.

Inicialmente, o Leite Moça era apresentado como um alimento infantil, além dos outros usos domésticos. Um rótulo de 1945 destacava que poderia substituir o leite fresco em todos os seus usos, especialmente indicado para alimentação de crianças. Uma tabela mostrava as porções indicadas da mistura de leite condensado e água para mamadeiras dos bebês a partir de uma semana de vida.

Desde o início, a Nestlé oferecia receitas em livros, além dos famosos rótulos que vieram mais tarde. A indústria passou a direcionar a propaganda para o uso culinário. Atualmente, as embalagens trazem a advertência de que o leite condensado não deve substituir o leite materno, nem ser usado na alimentação de menores de três anos.

LEANDRO STAUDT

16 DE JULHO DE 2022
MARTHA MEDEIROS

O que virá?

Ativismo e tecnologia: dupla explosiva. Nada mais é morno, agora tudo é escaldante. As lutas pelas causas indígenas e pelo meio-ambiente, os movimentos pró-negros e mulheres. É a vida aos gritos, acessível a bilhões de habitantes do mundo, como não se envolver? Para a turma do "me dou o direito de não opinar", uma súplica: fale, traga novas ideias, exponha suas convicções. Estamos surfando uma onda gigantesca e planetária em busca de mudanças, de igualdade de direitos e de conscientização, a fim de que a Terra resista por mais alguns séculos antes de se desintegrar.

Planetária, sim, não é exagero semântico. Até podemos nos iludir, achando que essa onda é exclusivamente brasileira, em função do nosso preocupante embate político, mas somos apenas parte da história. O mundo inteiro agoniza e exige uma nova mentalidade: temos que tomar conta de todos nós ao mesmo tempo, basta de segregações e preconceitos. Zero tolerância para guerras, ganâncias, hegemonias - tudo isso é tão antigo. Uma nova ordem social se faz necessária.

Embalada por tantas transformações, especulo: contra o quê mais deveremos nos rebelar? Sei que não é pouca coisa se mobilizar pela aceitação plena de nossas diferenças, mas ando curiosa a respeito do que provavelmente jamais testemunharei: quais serão nossas próximas lutas? Ou a luta pró-diversidade durará um tempo indeterminado?

Não é pouca briga, essa de apaziguar conflitos históricos, e pode mesmo levar dezenas de anos sem que nunca se chegue lá (esse lugar inatingível: lá). A inclusão é a grande causa atual, mas não abdico de outros flertes com o futuro. O que temos feito para não se render à mesmice dos hábitos? O que ainda nos surpreenderá? Quais artistas estão revolucionando os costumes? Que movimento cultural irá nos fazer questionar o estado das coisas? O que o poder transformador da arte produzirá nos anos 1930, nos anos 1940, nos anos 1950 deste século em curso?

Quem dera surgisse uma nova banda como os Beatles, uma esquisitice provocadora de um Andy Warhol, uma revolução silenciosa como a feita pela bossa nova, um escândalo provocador como os Secos & Molhados, uma hipnotizante Janis Joplin sem medo de sofrer em público, um novo Domingos Oliveira falando de amor, a arte chegando antes do faturamento, e não planejada para tal. A autenticidade da criação, sem o constrangimento de ser pré-avaliada pela quantidade de selfies, postagens e engajamentos virtuais. Tarde demais? Talvez não. Quem sabe consigamos abrir uma brecha em meio a tantos gigabytes. Ando faminta de um movimento puramente libertário, sem o marketing digital incluído, que tantas vezes obscurece a beleza e a verdade da causa. Meu Deus, como envelheci. Caramba, como ainda sou jovem.

MARTHA MEDEIROS

16 DE JULHO DE 2022
CLAUDIA TAJES

Cidadãos

This Much I Know To Be True. No documentário em cartaz no serviço de streaming Mubi, e que eu aqui traduzo porcamente por Isso Eu Sei Que É Verdade - acredito que deva haver mais poesia no original do que o meu inglês alcança, acompanhamos um pouco da relação criativa entre Nick Cave e seu parceiro musical de décadas, Warren Ellis.

Para não parecer que essa é uma coluna esnobe sobre um artista que nunca chegou a ser popular, e um documentário que talvez não mobilize multidões, explico. Sou fã de Nick Cave desde os anos 1980. Tudo o que ele faz me interessa, seus discos, filmes, livros, enfim, o homem é um artista completo. Nick Cave perdeu dois filhos de forma trágica em apenas sete anos. Essas perdas, esse luto que não passa, se refletem de várias formas nos trabalhos dele a partir de 2015.

Depois dessa breve explicação, corta para This Much I Know To Be True, o documentário em cartaz no Mubi. Já quase no final do filme, Nick Cave diz que teve um tempo em que se apresentava como cantor, compositor, roteirista. Não faz muito, percebeu que essas coisas todas não significam o que ele é, são apenas as ocupações dele. E passou a se apresentar como pai, marido, amigo, um cidadão que canta, compõe, escreve, filma.

É aí que eu queria chegar.

Antes de ser um cantor, um desembargador, um médico, um engenheiro, o que for, os homens deveriam se enxergar como pais, maridos, amigos, cidadãos. Aqui me refiro aos homens porque os tristes acontecimentos dos últimos dias, todos eles, tiveram protagonistas masculinos. A autodefinição do Nick Cave deixa no ar o quanto certos absurdos poderiam ser evitados se os homens se enxergassem assim. Maridos, pais, filhos, amigos, cidadãos.

Bem diferente do que se tem visto. Os que querem desmatar, garimpar, pescar, se apropriar da terra sem regra e sem limite, o que inclui matar quem se atravessar no caminho.

O policial - que deveria trabalhar pela segurança das pessoas - invade uma festa que não lhe diz respeito, deixa quatro crianças sem pai, uma viúva e um país inteiro em choque. O tarado vestido de médico estupra mulheres prestes a dar à luz, sedadas por ele mesmo. Em que filme de terror, em que submundo da ficção alguém conseguiu imaginar coisa tão cruel e tão bizarra?

O deputado federal que comemora 38 anos assoprando as velinhas em um bolo decorado com um três-oitão, e ao lado da filha pequena.

O presidente que não se solidariza com nada, nada, nada, como se a dor tivesse orientação política.

Além de toda a beleza do documentário que fala sobre fazer música através do talento de dois artistas, e o parceiro Warren Ellis brilha tanto quanto seu comparsa Nick, This Much I Know To Be True também traz essa brisa de humanidade que anda fazendo tanta falta.

É um consolo.

CLAUDIA TAJES