sábado, 22 de outubro de 2022


22 DE OUTUBRO DE 2022
OPINIÃO DA RBS

O MAU USO DA FÉ NA CAMPANHA

São inúmeros os temas que afetam o dia a dia da população, mas passam ao largo - ou quase despercebidos - do debate eleitoral. É possível notar esse distanciamento em especial na corrida ao Planalto. Quando são tratados, em regra a abordagem é rasa, sem que se aprofundem as propostas voltadas a áreas essenciais para o cotidiano da população ou o futuro do país, como educação, saúde e economia, apenas para citar três tópicos. No lugar de pautas que deveriam ser prioritárias, permanece em primeiro plano a disputa em torno da discussão sobre valores e costumes, com questões religiosas surgindo como um dos núcleos da competição pelos votos.

A instrumentalização da fé para angariar o apoio de estratos significativos do eleitorado não é novidade, mas ganhou proporção inédita em 2022. O resultado é que, mesmo quem eventualmente preferisse focar em outras temáticas, acaba arrastado para essa arena, sob pena de deixar o adversário falando sozinho. É notória a vinculação de Jair Bolsonaro (PL) com os evangélicos, por exemplo. Na busca por tentar abrir um espaço de diálogo, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) divulgou na quarta-feira uma carta se posicionando sobre as pautas que preocupam esse público. Dois dias antes, participou de um encontro com padres, freiras e frades católicos.

O patamar não visto até agora de tentativas de vincular o sufrágio a princípios religiosos, inclusive com a utilização de eventos relacionadas a datas de grande importância para os católicos brasileiros, tem levado a uma reação também incomum da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). "Ratificamos que a CNBB condena, veementemente, o uso da religião por todo e qualquer candidato como ferramenta de sua campanha eleitoral", diz trecho de nota da entidade divulgada no dia 11 de outubro.

Além de ser inapropriada, é uma estratégia que parece buscar o alheamento da população, pontua a própria CNBB. Na mesma manifestação, observa que a tática "tira o foco dos reais problemas que necessitam ser debatidos e enfrentados em nosso Brasil". O país tem incontáveis desafios urgentes em frentes como reformas, qualificação do ensino, produtividade, elevação da cobertura vacinal contra várias doenças e proteção do meio ambiente conciliada com desenvolvimento econômico, entre outras. Enquanto isso, os assuntos que dominaram o início da campanha do segundo turno foram canibalismo, satanismo e pedofilia, temas surgidos das profundezas das redes sociais e apropriados pelas campanhas. E os temas religiosos, que idealmente deveriam estar apartados do debate político, muitas vezes aparecem ainda embalados na desinformação.

O uso indevido da fé é só mais um indicador do lastimável nível do debate político em andamento. Até um candidato que se diz padre apareceu no primeiro turno. Mas há ainda a questão de fundo da laicidade do Estado brasileiro. Ao mesmo tempo que protege a liberdade religiosa, a Constituição é explícita na exigência da separação entre igreja e administração estatal. Ou seja, a crença professada não deve influenciar na gestão dos entes federados. Políticas públicas têm de ser sempre norteadas por critérios objetivos. Assim sendo, o adequado seria que a preferência do eleitor fosse uma disputa em torno das melhores propostas para solucionar os reais e palpáveis entraves do país. 

sábado, 15 de outubro de 2022


15 DE OUTUBRO DE 2022
FILOSOFIA

FILOSOFIA

Pedi tão pouco à vida e esse mesmo pouco a vida me negou.

Uma réstia de parte de sol, um campo próximo,

um bocado de sossego com um bocado de pão (...)

Isto mesmo me foi negado, como quem nega uma esmola

não por falta de boa alma, mas para não ter que desabotoar o casaco.

Fernando Pessoa, no Livro do Desassossego

Já faz alguns anos que, beirando o modismo entre a elite instruída, volta e meia se fala sobre a importância de o indivíduo buscar o conhecimento de si mesmo. Prescrição inscrita na porta do templo de Apolo, em Delfos, conhece-te a ti mesmo! é rematada por outra injunção, nada em excesso!, princípio da moderação em tudo, que conduziria a uma vida plena desde que também cada um se conhecesse a si mesmo. 

O filósofo Eduardo Giannetti, recentemente empossado como membro da ABL, explora minuciosamente essas duas prescrições complementares em sua singular obra Autoengano (Companhia das Letras, 1999). Giannetti estabelece relação entre as duas ideias a de conhecer-se a si mesmo e a de nunca se exceder. A própria prescrição do comedimento deve ser levada a sério, mas sem superabundância, isto é, nada em excesso até o nada em excesso. Psicanalistas, por sua vez, têm que, ao perscrutar a sua essência visando ao autoconhecimento, os indivíduos entenderão melhor a sua forma de ser, ou de interagir com os demais.

Ainda que estejamos diante de um legado da sabedoria ancestral grega tacitamente aceito como verdadeiro, não custa indagar: por que é importante conhecer-se a si mesmo e, principalmente, em que consistiria exatamente isso? Sem tergiversações ou prolixidades evasivas, o que é se conhecer e como o sujeito autoinvestigante na busca desse conhecimento conclui que seu propósito foi alcançado? Uma tal indagação, diante da afirmativa apolínea contemporaneamente assimilada como uma verdade pelo senso comum culto, coloca o indagador como um tipo iconoclasta, ou, no dizer de J. S. Mill, "na perigosa condição de ser considerado lunático".

O português Fernando Pessoa (1888-1935) é conhecido particularmente por sua obra poética; todavia, revela-se também como um original prosador filosófico no Livro do Desassossego (Companhia das Letras, 2011), obra que construiu durante cerca de 20 anos antes de morrer, composta por fragmentos de narrativa que atribuiu ao seu semi-heterônimo Bernardo Soares. São escritos que têm natureza intimista com significativos registros do sofrimento intrapsíquico humano: "Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem factos, a minha vida sem vida. São minhas Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho a dizer. (...) O que confesso não tem importância, pois nada tem importância".

Constituído por centenas de fragmentos descontínuos, o narrador os conseguiu tornar um conjunto complexo que espelha o abandono, os conflitos e o desespero do ser humano diante da vida.

O conhecido poema Tabacaria, pelo heterônimo Álvaro de Campos, escrito na mesma época do Livro, inicia com estes três versos: "Não sou nada./ Nunca serei nada./ Não posso querer ser nada". Pois esses versos exprimem, na essência, todo o percurso do Livro do Desassossego, por cada um dos inúmeros passos que o compõem, é isso que nele se encontra. 

O narrador diz que não sabe sentir, que não sabe pensar, que só resta o tédio de não querer, sem que sequer queira o não querer; tudo são sonhos para o narrador que deseja "sofrer sem sofrimento, querer sem vontade, pensar sem raciocínio". (Pensar sem raciocínio parece atual por aqui.) Os fragmentos variam desde os inúmeros de construção apurada, aos diversos que mostram uma logicidade rigorosa entre afetos e não afetos, sempre com finesse e pitadas de ironia; expressões da descrença absoluta no sentido da vida, permeadas pela autocomiseração e pela inculpação de um outro abstrato por seu vazio existencial - "Pedi pouco à vida e mesmo esse pouco a vida me negou".

Desde seu desassossego, Pessoa nos fala no Livro acerca do que seria um dom (graça dos deuses) que o ser humano possui: precisamente o de se desconhecer a si mesmo e o de desconhecer os demais. Contrariando a injunção no templo apolíneo, o desconhecer a si mesmo seria condição indispensável: "A alma humana é um abismo obscuro e viscoso, um poço que se não usa na superfície do mundo. Ninguém se amaria a si mesmo (a moderna autoestima) se deveras se conhecesse. (...) Ninguém conhece o outro, e ainda bem que não o conhece, e, se o conhecesse, conheceria nele... O íntimo inimigo metafísico. (...) Entendemo-nos porque nos ignoramos".

Então, na visão pessoana, nós tanto não conhecemos a nós mesmos quanto não conhecemos a outrem; o que seria propriamente uma dádiva, na medida em que o autoconhecimento, bem como conhecer o outro, implicaria desentendimento. Entendemo-nos em razão desses respectivos ou mutuais desconhecimentos. 


15 DE OUTUBRO DE 2022
LEANDRO KARNAL

O que há de errado com a felicidade? Assim Bauman começa seu livro A Arte da Vida (tradução de Carlos Alberto Medeiros, Zahar, 2021). Parece uma contradição em termos. Ser feliz é aspiração universal. Apesar disso, como adverte o escritor, o caminho é variado. Baseado no questionamento de Michael Rustin, Zygmunt Bauman identifica como muitos países estão mais ricos, por exemplo, e o dinheiro abundante não veio acompanhado de melhoras expressivas em pesquisas sobre felicidade.

Aqui reside um paradoxo curioso: quase todos lutam por mais dinheiro, mas ele não consegue cumprir sua promessa imediata de satisfação. Por quê? Bauman imagina que uma parte da resposta esteja na transferência da felicidade para o ato que precede a compra. Uma vez adquirido o bem desejado, todo o esforço do mercado e da propaganda é para o bem seguinte.

Expando a ideia do sociólogo. Tudo me seduz para o novo celular. Que câmera! Que design! Que cores! Quantos recursos! Compro a um custo alto e, mal retorno ao meu lar com o penhor da alegria, vejo que surgiu um aparelho ainda melhor. O prazo de validade do prazer consumista é curto porque o objetivo de tudo não é nossa plena e entusiasmada felicidade. A insatisfação permanente garante (lógico!) nossos impulsos permanentes de consumo. Nada busca nossa realização - tudo indica nossa falta, carência, desejo e uma espécie de pedra de Sísifo, que deve sempre ser rolada montanha acima.

Bauman afirma que o consumo mostra um "sonho gêmeo de fugir do próprio eu e adquirir um outro feito por encomenda" (p. 24). O consumo é permanente, rápido e provoca esforços que indicam um vazio continuado e forte. Para quem produz e vende, interessa o buraco impossível de preencher, mas que mantenha todos eletrizados pelo novo modelo e o novo eu. O chamado sistema criou um horizonte inatingível que se alarga sempre "que eu me aproximo".

As críticas ao consumo costumam ter origem em um embasamento marxista e em certa leitura do fetiche da mercadoria. Bauman foi bastante influenciado pela teoria de Marx. O argumento central dele não está em algum recurso mental dado pelo filósofo alemão, todavia em argumentos estoicos e psicologizantes. As epígrafes do livro indicam Sêneca e Epicteto. No curso da obra, surge Marco Aurélio. Nos filósofos ditos estoicos, a satisfação plena costuma ser inatingível; temos de controlar o ato de desejo incessante mais do que comprar as coisas indicadas pelo desejo.

Traduzindo: não se trata de ganhar mais, porém gastar menos. Aprofundando, a felicidade - para um estoico - não pode passar perto da ideia de mostrar ao mundo "o que eu tenho" ou "quanto posso gastar". O mundo é incapaz de validar minha carência, que deve ser atendida por um exame sobre mim e não sobre a imagem. Alguns desses argumentos são próximos daquilo que o budismo traz como reflexão sobre o desejo como fantasia incessante do eu.

Os pais de crianças e adolescentes, em um mundo como o nosso, sofrem ainda mais porque a capacidade dos jovens de viver o estoicismo ou de lerem Bauman é, digamos, menor do que o desejado. Coincidem, na adolescência, dois desejos complementares: a estabilidade é dada pela aceitação do grupo; esta depende dos códigos comuns de consumo. Da mesma forma, existe pouca reflexão sobre o custo da obtenção do dinheiro aos 15 anos. Um adolescente que recusa os padrões vigentes de consumo é possível, mas é tão estranho quanto uma criança que exige brócolis em detrimento do brigadeiro. Viver imune aos apelos do consumo é complexo para o adulto e quase intransponível para o jovem.

Consumir é ser. Comprar possibilita assunto, bem como afirmação social. O tênis da moda é item existencial: isso atinge o rico que pode satisfazer o desejo, o pobre que não pode e até o criminoso que insiste em poder por vias tortuosas.

Creia-me, minha cara senhora e meu estimado senhor, há tênis que podem custar um automóvel. O preço absurdo de alguns itens é uma prova de sua distância do comum e, por consequência, de aumento do potencial de ser que o produto traga.

É preciso dissociar ser de consumir. Os adultos podem aumentar sua capacidade ao lerem livros como o de Bauman, restabelecendo, assim, um projeto de felicidade sem endividamento permanente. Ainda que saibamos o ditado sobre as abelhas jamais deverem perder tempo explicando às moscas que mel é melhor do que o excremento, deveríamos ao menos destinar os dois polos do axioma: há mel para alimentação; há esterco para agricultura. Confundi-los é grave. Consumir pode ser bom se o produto for alavanca simples para melhorar nossa visão de mundo. Jamais devemos deixar de pensar no desafio de um país em que tanta gente não tem o básico; outros, que podem ter, ficam endividados porque acreditaram em miragens.

Por Marx, pelos estoicos, budistas ou pelo Sermão da Montanha de Jesus, está na hora de colocar as coisas no seu patamar de coisas. Eu tenho a pretensão de viver assim. É uma luta. Escrevi este texto para mim também, para minha esperança de "ser mais" do que "ter mais".

LEANDRO KARNAL

15 DE OUTUBRO DE 2022
ELIANE MARQUES

O DIABO CUIDAVA DAS FLORES

Nenhuma das flores que considerava tão suas lamentava a morte dos escravizados que ele sufocara com cal no porão do navio. Diferente deles, agora retornado à casa da família, o capitão estava em liberdade para morrer e amar suas flores. Contudo, elas eram indiferentes a seu amor - ele ou a chuva que as regava no outono, tanto fazia; viver ou morrer, tanto fazia; tanto fazia serem podadas pelo diabo ou por um jardineiro Celestino. E alguém já disse que o oposto do amor não é o ódio e sim a indiferença. Não sobrara ao capitão parente vivo. Vivas apenas as flores e a memória de algo que foi se apagando. Mas um assassino, traficante de gente escravizada, poderá amar ainda que apenas as flores plantadas para seu próprio túmulo?

Suponho que, se indiferentes ao amor de Celestino, as plantas não eram indiferentes à escravidão que lhes impunha o então traficante. Quando da morte dele e alforria delas, o plano era o de iniciarem a tomada da casa como antes os escravizados haviam iniciado a rebelião para a tomada do navio. Eles malograram sufocados no porão, mas elas estariam livres no pátio da casa do morto que cavara sua própria cova. Não precisariam lutar. Sua revolta vinha se formulando de "mansinho".

A casa e seu herdeiro estavam decadentes no padecimento de suas penas. Ambos se faziam habitar por craveiros, ameixeiras, roseiras... cujo objetivo consistia em apagar a memória da vida humana que um dia ali tinha habitado - pai e mãe, talvez tios e irmãos, serviçais, talvez uma ou outra gente escravizada. Mas a casa e o herdeiro também se faziam habitar por fantasmas - a menina holandesa que cuidou de Celestino durante uma de suas febres na África, abandonada de olhos vendados depois que ele assassinou os integrantes do grupo dela; a mulher negra que ele atirou num navio no Atlântico e depois jogou o corpo chicoteado ao mar.

Um dia, o capitão Celestino foi visitado pelo padre Alfredo, que o queria levar à Igreja para se confessar. A confissão implica "fala". Mas Celestino desejava matar e não falar; quando muito, dizia algo às suas flores ou às crianças que haviam perdido o medo dele. Quem passou grande parte da vida ocupado com a tarefa da morte de outros agora se ocupava com a vida que também não era sua. Feito um deus ocidentocêntrico e seus sucedâneos mundanos, Celestino continuava decidindo quem deveria viver e quem deveria morrer por suas próprias mãos de jardineiro. Com essas mãos, matou macacos, cavalos, serpentes, vespas, um elefante, um crocodilo do tamanho de uma jangada, matou 10 mulheres, de uma delas cortou os pés, matou centenas de sonhos e de gente com essas mãos. E elas não lhe caíram.

Se as plantas se sentiam cativas de Celestino, ele se sentia cativo delas. O mar o cuspira para a terra, mas zombava dele, domesticando-o, enjaulando-o num jardim cujas hostes preparavam a rebelião próxima. Essa é uma das várias dimensões do livro A Visão das Plantas (Editora Todavia), da escritora angolana Djaimilia de Almeida Pereira. A pena vale!

ELIANE MARQUES

15 DE OUTUBRO DE 2022
EUGÊNIO ESBER

JULIA E O PEDÁGIO

Na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, uma estudante de História passou a encarar com apreensão o momento de ir para a aula. Julia de Castro tem 20 anos de idade e, depois de cinco semestres, sofre as consequências de se haver declarado "conservadora" e favorável à reeleição de Jair Bolsonaro. Foi uma decisão difícil. Por experiência própria, sabia que no recinto acadêmico da UniRio, em geral, e do curso de História, em particular, reinava, absoluto e incontrastável, o que define como "pensamento único de esquerda". 

O linchamento verbal que se desencadeou contra Julia nas redes sociais a assustou pela virulência das mensagens, que variavam do insulto à ameaça pura e simples de retaliações, inclusive físicas. A porta do inferno se abriu para a moça que violou o código de silêncio e submissão que vigora em ambientes de intolerância com grupos de mando bem definidos.

Julia redobrará cuidados quando estiver a caminho da UniRio. O mesmo quando voltar para casa. Vontade de ir ao banheiro, ou frequentar a cantina? Melhor se fazer acompanhar. Mas acompanhar por quem? Como revelou em entrevistas, não recebeu reações de solidariedade na sua turma. Não que não haja "conservadores" em seu entorno, ou mesmo pessoas "de esquerda" com espírito aberto, capazes de interromper uma injusta cadeia de perseguição. 

Há. Mas Julia sabe que é difícil desafiar a doentia marcha da intolerância, que ora faz rufarem tambores do constrangimento, ora acaricia comportamentos de adesão, algo que ela percebeu com clareza na relação professor-aluno desde que pisou pela primeira vez na universidade, quase três anos atrás. Como regra de sobrevivência, ela passou cinco semestres calada, sem tocar em política, o que também é inócuo porque manter-se neutra, principalmente em seu curso, não é uma opção. "Tem que se posicionar!" é o bordão sempre à espreita. Equivale a dizer, como na Omertà, que você deve render-se, e aceitar o cabresto do grupo que assalta sua consciência.

Ela conta ter sucumbido à "espiral de silêncio" por dias, semanas, meses. Mas em seu peito foi crescendo um duelo entre o medo e a coragem. Medo, nunca deixou nem deixará de ter, que é inerente à condição humana. Coragem, ela foi juntando para só agora se assumir. E está pagando o preço por pensar, refletir, ser senhora de suas ideias e, frente ao coronelismo intelectual, lembrar que a universidade deve ser o território da pluralidade e do debate livre. Sente-se sozinha, e a verdade é que estará mesmo - enquanto estruturas acadêmicas, tão pródigas em manifestações de apreço à democracia, permitirem-se, por ação de alguns e omissão de muitos, o direito de esmagar a liberdade de pensamento.

O ambiente de escolas e universidades deve ser livre, plural, em benefício da formação de gerações de brasileiros mais esclarecidos. Impor uma corrente de pensamento como via única de tráfego intelectual é uma violência inaceitável, além de reduzir a nobre missão de instituições públicas de ensino a praças de pedágio político-ideológico.

Julia ousou passar pela cancela, e a patrulha já está em seu encalço. Que não a alcance.

EUGÊNIO ESBER

15 DE OUTUBRO DE 2022
DRAUZIO VARELLA

POLIOMIELITE VOLTA A SER PROBLEMA NO BRASIL APÓS TER SIDO ERRADICADA EM 1994

Às vezes parece que o mundo anda para trás. Do nada surge uma pandemia que nos faz reviver os dias mais duros da gripe espanhola, de cem anos atrás. Doenças infecciosas novas não param de emergir, enquanto as que caminhavam para a extinção ressurgem até nos países desenvolvidos.

A OMS (Organização Mundial da Saúde) considerou o sarampo erradicado do Brasil em 2016, época em que o PNI (Programa Nacional de Imunizações) conseguiu vacinar cerca de 95% das crianças.

O problema é que outros países não fizeram o mesmo, e o vírus permaneceu à espreita; bastou caírem os índices de vacinação entre nós para contra-atacar. Foram mais de 8 mil diagnósticos apenas no ano de 2020.

Em 1989, uma criança teve poliomielite na Paraíba. Foi o último caso. Em 1994, a OMS conferiu ao Brasil o certificado de erradicação da doença.

A pretensão de erradicar a paralisia infantil do mundo, como fizemos com a varíola, no entanto, foi frustrada pela persistência do vírus na Nigéria e na conflagrada fronteira entre Afeganistão e Paquistão.

Como insistem os epidemiologistas, enquanto uma doença transmissível existir em algum canto do mundo, nenhum país estará seguro. Assim aconteceu: quando menos esperávamos, surgiu um caso em Israel, outro nos Estados Unidos, além do isolamento do vírus no esgoto de Londres e de Nova York. Com os índices de vacinação em queda livre entre nós, voltamos a correr o perigo.

A poliomielite é causada por um vírus (poliovírus) que se instala no sistema nervoso. É uma doença altamente contagiosa que costuma incidir em crianças com menos de cinco anos, 70% das quais não desenvolverão qualquer sintoma. Dois a cinco dias depois de adquirir o vírus, apenas 25% apresentarão febre, cefaleia, dores no corpo, dor de garganta, náuseas, vômitos e diarreia. Em de 1% a 5% surgirá, nessa fase, um quadro de meningite viral, de evolução variável.

Tipicamente de uma a três semanas depois de contrair o vírus, cerca de cinco em cada mil infectados apresentarão fraqueza muscular e paralisia que poderá acometer os músculos dos membros, da respiração, da deglutição e da fala. Esse quadro inicial eventualmente evolui com sequelas motoras irreversíveis, insuficiência respiratória aguda ou morte.

O vírus é transmitido com facilidade por meio do contato interpessoal. A porta de entrada é a boca. Ele permanece na garganta por de uma a duas semanas. Depois de se multiplicar nos intestinos, é expelido nas fezes durante três a seis semanas, mesmo que o portador não apresente sintomas.

Embora esteja presente na saliva e nas gotículas eliminadas ao falar, tossir e espirrar, a principal forma de transmissão é por meio do contato direto com as fezes ou de alimentos ou água contaminada por elas.

Correm risco de contrair o vírus aqueles que não foram vacinados e os que não completaram o esquema vacinal, especialmente quando vivem ou viajam para áreas com saneamento precário.

O diagnóstico de certeza é feito pelo isolamento do vírus nas fezes. Testes genéticos permitem identificar o tipo de poliovírus e de que região geográfica é originário. Não existe tratamento específico.

Nos últimos anos, foi descrita a síndrome pós-pólio. Trata-se de uma condição não infecciosa que se instala de 15 a 40 anos depois da infecção inicial. É caracterizada por fraqueza nos músculos comprometidos pelas sequelas, dores articulares, fadiga física e mental. Quantas mulheres e homens com sintomas desse tipo, instalados décadas depois da paralisia, padeceram sem que a medicina fosse capaz de identificar a causa?

Em minha infância, convivi com crianças que apresentavam sequelas de poliomielite. Andavam com próteses rígidas, que emitiam sons metálicos a cada passo na sala. Para jogar bola na calçada com a gente, os meninos só eram escalados como goleiros, ainda assim por condescendência. As meninas entravam em crise ao chegar à puberdade.

No curso médico, tínhamos aula na enfermaria sobre pulmões de aço, aparelhos em forma de tubo, no interior dos quais a criança permanecia deitada, só com a cabeça de fora, enquanto um tipo de fole movido a eletricidade aumentava a pressão no interior do tubo para expulsar o ar dos pulmões para em seguida diminuir e expandir a caixa torácica. Muitos passavam o resto dos dias enclausurados nessas máquinas.

Vamos deixar que essas tragédias se repitam?

DRAUZIO VARELLA

15 DE OUTUBRO DE 2022
BRUNA LOMBARDI

OS 12 TRABALHOS DE HÉRCULES

Uma das mais conhecidas passagens da mitologia fala de um personagem bastante complexo: Hércules. Foi um herói e um semideus, pois era filho de uma mortal chamada Alcmena e de Zeus, o principal deus dos gregos. Hércules para os romanos e Héracles para os gregos, ficou famoso por sua força física imbatível. Sua história trágica e intrincada tem elementos de traição, ciúmes, loucura, vingança, arrependimento, culpa e grandes conflitos, como tudo o que envolvia os deuses.

Mas a missão de realizar 12 trabalhos considerados humanamente impossíveis foi a grande façanha que construiu sua fama.

A mitologia é justamente feita da construção de mitos, lendas, símbolos e da interpretação dos mesmos e seus significados nas culturas ancestrais. O número 12 é cabalístico, presente desde os primórdios da civilização. As tribos de Israel foram 12. A Távola Redonda contava com 12 cavaleiros. Jesus Cristo teve 12 Apóstolos. O ano se divide em 12 meses. O dia e a noite, em 12 horas. São 12 os signos da Astrologia. A dúzia é a nossa medida. No Tarô, o Arcano 12 promete trabalho, luta e sofrimento.

O foco de Hércules representa a incessante luta do ser humano, enfrentando tarefas impossíveis, descobrindo seu poder, buscando sua liberdade e vencendo monstros internos e externos. Assim criamos a nossa força e perspicácia para avançar em cada etapa da jornada.

Acredito que todos nós passamos por pelo menos 12 trabalhos hercúleos que nos pareciam impossíveis. Cada passo da nossa trajetória é repleto de obstáculos, dificuldades, confrontos. Bate constantemente na nossa cara o vento da adversidade. Um verso do meu poema Gaia diz:

"carrego pedras no bolso e enfrento ventanias?"

Na minha vida, contei pelo menos 12 grandes desafios, que me pareciam impossíveis de realizar e que foram transformadores. Trabalhos que se apresentaram e que eu nem acreditava que ia conseguir fazer porque todos estavam muito acima do que eu me sentia capaz.

Experimente você também fazer uma retrospectiva dos acontecimentos de sua vida. Com certeza você vai enumerar batalhas extraordinárias que marcaram etapas do seu caminho e você nunca imaginou que saberia enfrentar. Pense em todas as suas superações e conquistas.

Todos nós temos vitórias internas, silenciosas. simbólicas. Não existe comparação, nem competição, nem mesmo qualquer ostentação nessas conquistas. Porque o único efeito que realmente importa em cada uma delas está dentro de nós. Lutamos contra nossos medos, nossos fantasmas, nossos próprios pensamentos. Precisamos superar o peso dessa bagagem que carregamos. E vamos conseguir realizar todas as tarefas gigantes que parecem além das nossas forças.

Temos sonhos, relacionamentos, contas pra pagar e uma infinidade de pequenas batalhas diárias, inevitáveis. Mas existem aquelas marcantes que transformam nosso destino. São esses grandes enfrentamentos, as ações que nos parecem impossíveis que nos fazem descobrir nosso poder.

Somos, sem perceber, heroínas da nossa própria jornada.

BRUNA LOMBARDI

15 DE OUTUBRO DE 2022
J.J. CAMARGO

O PARCEIRO DISSIMULADO

O câncer de pulmão é responsável por 13% de todas as mortes por câncer no mundo (OMS, 2016). Apesar do inegável sucesso das campanhas antitabagismo no Brasil, com redução do número percentual de fumantes na população geral, ainda é a principal causa de câncer entre homens e uma das três causas de mortalidade por câncer entre as mulheres.

Com a redução do tabagismo, a ameaça persiste por duas razões: a doença tem uma história natural muito lenta, de tal maneira que quando a lesão atinge 1 cm de diâmetro, já se passaram cerca de 10 anos desde que a primeira duplicação celular anárquica se desenvolveu.

Em segundo lugar, o diagnóstico precoce, que representa a chance verdadeira de cura, ainda é infrequente, pela longa fase silenciosa da doença e pelo perfil emocional do fumante, que tendo se colocado conscientemente em risco (pelo menos ninguém mais diz que não sabia que fazia mal), quando se sente ameaçado resiste a procurar ajuda, numa atitude extremada de negação. Sem considerar os que ungem o cigarro de "um parceiro das horas difíceis".

Nos últimos 30 anos, a chance de cura se manteve praticamente estagnada em torno de 20% de todos os casos diagnosticados. Este percentual decepcionante se deve ao fato que a maioria absoluta dos pacientes com câncer de pulmão têm o diagnóstico firmado em fases avançadas da doença, já fora do alcance da cirurgia e limitados a tratamentos paliativos.

Na última década, a quimioterapia mais atuante e menos traumática ajudou a resgatar para o tratamento cirúrgico pacientes com doença localmente avançada, mas sem metástases a distância, e a partir de 2015 surgiu a imunoterapia, que tem mostrado resultados promissores como terapia isolada ou, mais frequentemente, associada à quimioterapia.

Com a experiência mostrando o quanto é pequena a chance de cura de um tumor detectado pelas buscas das causas de sintomas persistentes, a recomendação atual, no mundo todo, é a busca ativa (screening) na população de alto risco, ou seja, pacientes com mais de 55 anos, fumante por mais de 20 anos, uma carteira ou mais por dia. Nesta população selecionada por risco, uma tomografia anual de baixa voltagem aumenta a chance de cura pela descoberta de um nódulo, que se tornaria sintomático somente quando se tornasse intratável.

Os seguintes dados são considerados sugestivos da presença de um tumor, exigindo imediata busca de atendimento médico:

* Escarro com sangue. Não se conforme com hipóteses tolas. Insista com seu médico para realizar uma broncoscopia.

* Mesmo procedimento deve ser feito se uma pneumonia se repetir no mesmo pulmão, em menos de dois anos.

* Se houver persistência diária de tosse depois de já ter expectorado a secreção da bronquite crônica que acompanha o fumante pesado no esforço de limpar o pulmão toda a amanhã.

* Se surgiu uma dor torácica de intensidade crescente.

* Se as suas unhas ficaram arredondadas.

Se você ainda fuma e, sendo inteligente, tem o compreensível constrangimento de anunciar que não consegue parar, procure seu pneumologista. As medidas antitabágicas modernas tornaram o abandono do fumo uma conquista muito menos heroica do que já foi no passado.

Livre-se do risco de um câncer passível de prevenção e fuja do pavor de tentar pôr para dentro um ar que o enfisema não vai permitir.

J.J. CAMARGO

15 DE OUTUBRO DE 2022
ARTIGO

A EDUCAÇÃO DOS SONHOS

A educação nunca esteve no centro do debate político e social do Brasil, entretanto, esse quadro deve ser revisto. Para pautar o assunto, é necessário olhar para a figura do docente, que abdica de si em prol da formação e do sonho de brasileiros e brasileiras que confiam na educação pública, gratuita e de qualidade.

É com muito orgulho que o Conif celebra, neste dia 15 de outubro, o Dia do Professor. No caso da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica - formada por 38 Institutos Federais, dois Cefets e o Colégio Pedro II -, falamos de 45.206 profissionais extremamente capacitados, majoritariamente mestres e doutores, que formam cidadãos conscientes de seu papel no mundo.

Mesmo com os reveses orçamentários, com as dificuldades impostas pela pandemia, com as diferenças salariais e a desvalorização da profissão, com a descontinuidade e a ausência de políticas públicas educacionais efetivas, nossos professores fazem a diferença e colocam nossos estudantes em destaque. Isso ocorre quando se pensa em qualidade de ensino, de pesquisa e de extensão. E esses profissionais mudam a realidade das comunidades onde estão inseridos, principalmente nas regiões interioranas do país.

Diante do exposto, convidamos a sociedade e o poder público a discutir e pensar políticas públicas que fortaleçam a educação profissional, científica e tecnológica. Como forma de agregar ao debate político que movimenta o país em 2022, de forma transparente e isenta, o Conif pontuou, no documento intitulado "Diretrizes para a Educação Profissional e Tecnológica do Brasil", 10 objetivos estratégicos para a melhoria da educação nos próximos anos. Neste, os docentes estão no centro dos debates, uma vez que não há como progredir sem falar da formação e da valorização deles.

O Conselho está à disposição para debater políticas públicas voltadas à educação profissional. Não obstante, apesar de ainda estarmos distantes da educação ideal, congratulamos todos os docentes incansáveis da Rede Federal, que acreditam no potencial da juventude brasileira e no poder renovador da educação. Afinal de contas, quem não tem uma gratidão especial por um professor ou uma professora que fez a diferença na sua vida?


15 DE OUTUBRO DE 2022
FLÁVIO TAVARES

JUSTIÇA JUSTA

O poder judicial é o suporte da sociedade moderna. Os atos da nossa convivência acabam caindo em mãos da Justiça, decidindo o certo ou o errado. Por definição, a Justiça tem de ser imparcial para ser justa.

Por isto, é inquietante o anúncio do presidente Bolsonaro de que, se for reeleito, pensa em aumentar para 16 o número de ministros do Supremo Tribunal Federal, mesmo que depois ele tenha se desdito. Os adeptos do presidente já se manifestaram defronte à sede do STF pedindo para fechá-lo, e o próprio Bolsonaro se diz "perseguido" pela Suprema Corte.

Assim, o aumento do número de ministros-juízes vira tentativa de tornar o STF um apêndice da Presidência da República. Nos anos 1960, nem a ditadura militar ousou tanto ao aumentar o número de ministros. Na época, o general-ditador tinha poder total, mas - mesmo assim - houve cuidado nas escolhas.

Eu próprio o testemunhei ao ser preso em 1967, em Brasília (onde vivia), e ser libertado, meses depois, por um habeas corpus unânime do STF, relatado pelo ministro Odalício Nogueira, nomeado pela ditadura, mas que se pautava pela justa Justiça.

No caso do STF, a ditadura foi rigorosa e nomeou ministros com notório saber e que, mesmo conservadores ou direitistas, tinham visão ampla.

Agora, em plena democracia, assistimos a cenas deprimentes, com o presidente da República acompanhando o protesto de adeptos junto à sede do STF. Não opino sobre o tosco debate entre os dois candidatos a governador, pois Eduardo Leite e Onyx Lorenzoni, de fato, só trocaram insultos, sem planos administrativos.

Comento, porém, sobre a reunião pública em que a prefeitura da Capital expôs os planos de conceder a particulares os parques Farroupilha e Marinha do Brasil. O prefeito Sebastião Melo não compareceu, mas a secretária Ana Pellini expôs os planos. Frisou que a prefeitura não tem verbas para coibir vandalismo e depredações, restando apenas conceder os parques, mas sem os cercar nem cobrar ingresso. O lucro privado viria do estacionamento subterrâneo a construir sob o atual parque de esportes.

Em termos geológicos, porém, é temerário construir subterrâneos devido ao lençol freático, pois as chuvas do alto da Independência ali deságuam, alagando o que seria garagem.

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES

15 DE OUTUBRO DE 2022
OPINIÃO DA RBS

DUPLICAÇÃO TRAVADA

É frustrante constatar que, 10 anos após o início dos trabalhos, a duplicação da BR-116, entre Guaíba e Pelotas, ainda permaneça distante de ser concluída. Dos 211 quilômetros da rodovia que teriam a capacidade ampliada, apenas 136 quilômetros estão prontos. Mais decepcionante ainda é saber que, pelas previsões atuais, existem intervenções projetadas para ter início apenas em 2026.

O trecho em questão é um dos mais importantes corredores logísticos do Estado. É a principal estrada por onde é escoada especialmente a produção industrial da Região Metropolitana de Porto Alegre e da Serra para o Porto de Rio Grande. Na situação atual, eleva os custos de transporte, o que significa perda de competitividade. Além do aspecto econômico, há o problema da segurança no trânsito. Por ser uma rodovia bastante movimentada, os riscos de acidente crescem nos pontos de pista simples.

Como é comum em obras que se arrastam, o custo aumenta. Ao mostrar o caso na edição de sexta-feira de Zero Hora, o repórter Jocimar Farina observa que, uma década atrás, previa-se um investimento de cerca de R$ 870 milhões para finalizá-la. Mas agora, pelos cálculos do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), o montante de recursos necessários pode chegar a R$ 1,5 bilhão. Mais um lamentável exemplo de falta de planejamento adequado, inépcia e descaso de todos os governos nos últimos anos, desde que os trabalhos se iniciaram. Ao fim, são os cidadãos e as empresas, pagadores de impostos, que arcam com a fatura. Como essa, multiplicam-se pelo país outras obras inacabadas, muitas lançadas com intuito eleitoreiro, sem provisão orçamentária e preparação adequadas, gerando imensos gastos extraídos da coletividade.

Desde a emissão da ordem de serviço, em 2012, a obra vai aos trancos e barrancos. Originalmente, a previsão era de que estivesse pronta em 2014. Um dos principais entraves, à época, foi a demora na transferência de comunidades indígenas. Outros obstáculos, ao longo dos anos, foram projetos malfeitos e as dificuldades financeiras de empreiteiras responsáveis por alguns lotes. O Exército foi chamado para construir dois deles, mas sem recursos suficientes não há como o trabalho ganhar a tração esperada.

A principal razão para o avanço moroso dos trabalhos, agora, é outra vez a falta de recursos. Um problema crônico, aliás. Existem apenas R$ 50 milhões do orçamento federal reservados para a duplicação em 2023. É deplorável que faltem verbas para projetos estruturantes como este da BR-116, enquanto sobra dinheiro para finalidades questionáveis como as emendas de relator, orientadas por interesses político-eleitorais, com farta distribuição de quantias para obras paroquiais. Existia a intenção do governo gaúcho de repassar quase R$ 500 milhões de recursos para rodovias federais no Estado. A duplicação da BR-116 seria contemplada, mas a iniciativa foi rejeitada pela Assembleia.

Será tarefa prioritária da nova bancada federal, do futuro governo gaúcho, de entidades empresariais e outras forças da sociedade se articular e pressionar para que, a partir de 2023, seja possível obter mais recursos para acelerar a construção dos trechos e das intervenções que faltam. A BR-116, da forma como está, é um dos maiores gargalos da área de transporte no Estado. Pela posição geográfica em relação ao resto do país, o Rio Grande do Sul necessita ter uma logística eficiente para ser mais competitivo. Não é aceitável se conformar com o ritmo atual da obra. 

OPINIÃO DA RBS

E a economia?

Agora que as campanhas de Lula e Bolsonaro parecem já ter discutido o suficiente sobre maçonaria, satanismo e canibalismo, quem sabe sobra um espaço para que os dois digam como pretendem cuidar do futuro do Brasil, a começar pela estabilidade econômica.

Exigir que candidaturas abordem com realismo a economia não é fazer o jogo do mercado, como espertamente tentam se desvencilhar adjuntos de ambas as campanhas. A apresentação de propostas sólidas sobre de onde os candidatos vão arranjar dinheiro para quitar um mundaréu de promessas não é só uma obrigatória testagem da veracidade dos seus menus de intenções. É na economia que reside o combate à inflação e à miséria e o financiamento público da saúde, da educação e da infraestrutura. Ou seja, é o futuro do governo e do próprio país que os dois deveriam estar esmiuçando agora, e sem meias palavras ou tergiversações.

Pela voltagem das promessas, cada um já estourou em mais de R$ 150 bilhões o orçamento para 2023. É pacote de bondade para todos os lados. Para a manutenção do Auxílio Brasil em R$ 600, compromisso de ambos, faltam R$ 52 bilhões. A promessa de Lula de corrigir a faixa de isenção do IR custa outros R$ 17 bilhões e a de Bolsonaro de pagar uma 13ª parcela a mulheres chefes de família que recebem o auxílio sai mais R$ 10,1 bilhões. E por aí vai. Só falta dizer que um gnomo trará saquinhos de moedas enterradas no subsolo e as distribuirá aos brasileiros sem produzir o descontrole da inflação e a manutenção dos juros nas alturas.

Como dinheiro não surge por milagre ou boa vontade, os dois poderiam ser sinceros sobre como pretendem bancar esses gastos. Vão aumentar impostos? De quem, em quanto, como farão para aprovar um aumento no Congresso? Quanto vão produzir de recessão e evasão com as propostas? De boas intenções uma reforma tributária está cheia, mas tanto Lula quanto Dilma e Bolsonaro passaram ao largo de desatar o emaranhado fiscal do país.

Em vez de tratar do futuro, Lula e Bolsonaro se agarram ao passado como suposta prova de suas capacidades. Lula, nos oito anos de governo em que surfou condições externas muitas vezes únicas, de fato demonstrou responsabilidade fiscal, mas também abriu as comportas para inchar a máquina, o que se reflete em aumento de despesas com o funcionalismo por pelo menos mais uma geração. Bolsonaro prometeu um governo de mais Brasil e menos Brasília e acabou concentrando enorme poder no Planalto e às turras com prefeitos e governadores que tiveram os cofres minados com a imposição da redução do ICMS.

O mundo mudou muito desde as posses de Lula e Bolsonaro, mas a Brasília dos dois segue uma ilha da fantasia assolada por pesadelos de satanismo e canibalismo. É pouco, muito pouco, para quem quer governar 212 milhões de brasileiros pelos próximos quatro anos.

sábado, 8 de outubro de 2022

08 DE OUTUBRO DE 2022
CRISTINA BONORINO

MAPA DO TESOURO

Na semana que passou, a Anvisa autorizou os primeiros testes clínicos de eficácia e segurança da vacina Spin-Tec para a covid-19. A vacina foi desenvolvida pelo grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) liderado por Ricardo Gazinelli, um dos grandes imunologistas brasileiros, no CTVacinas, em associação com a Fiocruz, que tem um braço em Belo Horizonte. Os testes clínicos serão coordenados pelo médico e imunologista Helton Santiago, que também trabalhou nos ensaios clínicos da vacina para a dengue produzida no Butantan.

A vacina usa uma tecnologia já conhecida há décadas, usada, por exemplo, na vacina da hepatite B, uma proteína recombinante (produzida por biologia molecular, sem precisar cultivar o vírus). A SpinTec é uma fusão entre pedaços da proteína S e da proteína N do Sars-Cov-2. Se alguns perguntam se vale a pena desenvolver agora uma vacina nova para a covid-19, Ricardo e Helton podem responder que a eficácia das vacinas disponíveis pode ser melhorada, com tecnologia segura.

O uso da proteína N na vacina é um diferencial das demais, baseadas na proteína S, apenas. Como a S sofre mais mutações, precisa ser atualizada, o que as empresas estão fazendo agora para as variantes novas. Na semana do dia 20 de setembro, comparando resultados com Ricardo e Helton no congresso da Sociedade Brasileira de Imunologia, comentávamos que seria muito interessante ver a eficácia da SpinTec em crianças, pois nosso estudo aqui, na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), mostrou que esse é o foco da resposta e da memória imune das crianças que tiveram covid-19. Talvez elas respondam melhor com essa vacina. Enfim, são várias perguntas sem resposta, para as quais podemos contribuir.

Mas devolvo outra pergunta: por que só agora chegamos aos testes clínicos? Por que empresas como Pfizer e AstraZeneca tiveram suas vacinas testadas e aprovadas pela Anvisa muito antes? (Estamos agora para analisar a aprovação da atualização da Pfizer para a Ômicron.) Depois dos pesquisadores de excelência, o fator que faz mais diferença em qualquer projeto é a quantidade de recursos investida. A UFMG sempre foi um centro de excelência no Brasil. Atraiu e formou grandes cientistas graças a um investimento inicial da Fundação Rockefeller para formar seu Departamento de Bioquímica, ancestral do de Imunologia, de onde saiu o INCT Vacinas.

Mas nada se compara à montanha de dinheiro investida pelas farmacêuticas nas vacinas de covid-19 que hoje dominam o mercado. Se quisermos liderança em qualquer área tecnológica, o tema de casa é mapear quem são seus melhores quadros, ouvi-los e investir. Muito. Essas pessoas foram formadas com recursos brasileiros e estão em universidades brasileiras. Cabe a nós fazer escolhas que nos ajudem a mantê-los aqui, trabalhando para resolver problemas brasileiros.

CRISTINA BONORINO

AFINAL, LULA É LADRÃO OU NÃO?

Diante da continuada e injusta difamação da deputada Maria do Rosário (PT), o jornalista Paulo Germano lançou desafio, em sua coluna de 27/8/2016, nesta ZH: "Me mostrem uma frase dessa mulher defendendo um estuprador, ou dizendo que um assassino é vítima da sociedade, que eu escreverei uma coluna inteira me retratando". O dileto colunista venceu o desafio e, com ele, a verdade dos fatos, em defesa da honra de uma pessoa digna e necessária. Já passou da hora de realizarmos o desafio mais importante, com a pacificação de questão muito grave: Lula é ladrão ou não?

Nas redes sociais, onde a leviandade e a malícia fazem colheita farta, publiquei numerosas vezes igual desafio para os que insistem nessa acusação: apresente o fato e sua prova e receba um Pix de R$ 1 mil; ora o reitero. O jornalista Reinaldo Azevedo, similarmente, tem declarado muitas vezes: senhores juízes, mostrem onde está a prova que sustenta a sentença de Moro? Acrescentemos: qual o fato? A falta de respostas é uma resposta: não há.

A sociedade em que vivemos depende de fundamento estabelecido na origem da modernidade, na Grécia: conhecimento baseado em evidências e conclusões lógicas. O mito, por outro lado, baseia-se em crença difusa, que se quer verdadeira e sagrada, e se reproduz em um mundo inimigo das evidências e das instituições de conhecimento e sociedade modernas. Não é possível se fazer justiça em uma democracia sob o jugo de fantasmagorias. E os que têm objeções políticas a uma liderança, que as formulem com honestidade, sem farsas e sem consagrar mentiras como verdades eternas. Ou arquem com a consequência: praticar, covardemente, calúnia e difamação, ao chamar um homem inocente de ladrão.

Lula é o brasileiro mais investigado da história e vítima de uma condenação fraudulenta que lhe roubou um ano e meio de liberdade. Não há na sentença de Moro um só fato criminoso com autoria de Lula, nem tampouco evidência de qualquer delito. Sabemos que o juiz alimentava ambições políticas e apoiava, como segue apoiando, o candidato beneficiado por sua torpe sentença. Isso tudo é muito escandaloso e não deve ser desdenhado ou esquecido, especialmente quando esse agressor da República ganha, sufragado, imunidade parlamentar. 

Igualmente, há o imperativo de que se apurem as responsabilidades daqueles três e dos demais desembargadores que chancelaram aquela farsa hedionda, a condenação de um líder popular sem fatos ou provas. Houve óbvio império de ideologias e paixões políticas, onde jamais deveriam ocorrer. E a sociedade perdeu a chance de ver apurada com o rigor merecido a grave acusação que paira sobre o nome deste homem. Pior, essas aleivosias interferem em nossa vida política e perturbam severamente nosso destino histórico, em favor de vilezas inaceitáveis.

Todo cidadão brasileiro isento de condenações judiciais é inocente, e este é o caso de Lula, ademais, vencedor, com seu advogado Cristiano Zanin, em uma penca de processos armados na molecagem judicial (lawfare) de que foi vítima. Chega de farsa, e que fique claro: votaremos com decência, por democracia e modernidade.

FRANCISCO MARSHALL 


08 DE OUTUBRO DE 2022
DRAUZIO VARELLA

SÍFILIS

Doença milenar, curável com poucas doses de penicilina, a sífilis tinha tudo para ser eliminada da face da Terra. Sua incidência, entretanto, cresce no Brasil e no resto do mundo.

É causada pelo Treponema pallidum, bactéria que sobrevive por pouco tempo fora do corpo, limitação que restringe a transmissão ao contato direto com a lesão infectada. Pode ser adquirida por contato sexual, transfusão de sangue infectado ou por via transplacentária.

A evolução é dividida em quatro estágios: primária, secundária, latente e terciária.

Na infecção primária, a bactéria penetra a mucosa e cai nas correntes linfática e sanguínea, em poucas horas. O período de incubação - que vai do contato ao aparecimento da lesão genital ulcerada, de bordos salientes, indolor - é de três a seis semanas, em média, mas pode variar entre 10 e 90 dias.

A resposta imunológica é capaz de cicatrizar espontaneamente ou mesmo impedir o aparecimento da ferida genital, mas, em ambos os casos, é insuficiente para eliminar o treponema do organismo. Quatro a 10 semanas contadas a partir da lesão primária, estará instalada a sífilis secundária, estágio em que a bactéria se multiplica e se dissemina por todos os órgãos.

As manifestações da fase secundária são variáveis: febre, dores musculares, ínguas e manchas avermelhadas, que não poupam a palma das mãos nem a planta dos pés nem as mucosas da orofaringe. Embora essas lesões contenham o treponema, as da boca são as mais contagiosas.

As manifestações da neurossífilis são múltiplas. As mais precoces podem surgir seis meses depois da infecção sob a forma de meningites, como resultado da inflamação provocada pelo treponema nos vasos sanguíneos que irrigam as meninges.

Pode ocorrer queda de cabelo, de sobrancelhas e de barba, em áreas circunscritas. Na fase secundária, a produção de anticorpos atinge o pico. Sem tratamento, os sinais e os sintomas regridem, e a doença entra no estágio de latência que pode durar anos.

Cerca de um terço dos casos em latência evolui para a quarta fase, a terciária, enquanto os demais permanecem assintomáticos. A sífilis terciária se caracteriza pelo acometimento do sistema cardiovascular (em 80% a 85% dos pacientes) e do sistema nervoso central (em 5% a 10%). Esses quadros são caracterizados por processos inflamatórios que evoluem no decorrer de meses ou anos.

Complicações cardiovasculares acontecem pelo menos dez anos depois da lesão primária. As mais frequentes são os aneurismas da aorta e as lesões de válvulas cardíacas.

As manifestações da neurossífilis são múltiplas. As mais precoces podem surgir seis meses depois da infecção sob a forma de meningites, como resultado da inflamação provocada pelo treponema nos vasos sanguíneos que irrigam as meninges.

As mais tardias envolvem a intimidade do sistema nervoso central, causando alterações da marcha, paresias, perdas de sensibilidade e o quadro conhecido pelos médicos antigos como "paresia geral dos insanos", que evolui com perda de memória, alterações de personalidade e da fala, irritabilidade e sintomas psicóticos.

Como consequência da disseminação da doença, os casos congênitos aumentam ano a ano, no Brasil. Em 2008, nasceram 5.728 bebês infectados; em 2013, foram 13.705.

DRAUZIO VARELLA

08 DE OUTUBRO DE 2022
MONJA COEN

ESPANTO

É preciso não perder o espanto, a surpresa, o questionamento, a entrada no inesperado, no desconhecido que nos provoca a um andar mais lento e a um olhar mais apurado. Silenciar e contemplar. Ser a vida que pulsa em nós e em tudo à nossa volta. Vida que precisa de pausas, de silêncios, de percepção espantada e maravilhada. Devagar e rápido se alternam.

Alegria e tristeza. Acerto e erro. Pares inseparáveis. Por que precisamos sempre estar bem?

Não é necessário provar a si e ao mundo a própria capacidade, inteligência, habilidades, positividade. Sorrimos para as fotos e nossos músculos faciais se enrijecem, vincos cada vez mais profundos marcam nossas faces nas dobras da pele ao sorrir.

Será que a vida é só contentamento e alegria? Um olhar mais profundo e surpreso, curioso e atento pode causar espanto a quem não se espanta com o milagre da vida.

Algumas vezes falhamos, desconfiamos de tudo e de todos, duvidamos de nós, erramos, tropeçamos e nos reequilibramos, recomeçamos. Algumas vezes ficamos temerosos, nervosos, deprimidos por nos percebermos humanos e falíveis. De outras vezes, nos tornamos garbosos, pois "nada me derruba", "sou mais eu".

Queremos encontrar meios de progredir, de melhorar, para isso fazemos cursos e treinamentos de autoajuda, de pensamento positivo, à procura de um superser que jamais se cansaria, que estaria sempre bem, sorrindo e produzindo mais e mais. Trabalhando mais que todos sem se importar em ganhar menos.

Afinal, somos reconhecidos socialmente, aprovados e incluídos se nos comportarmos assim. E nos reconhecemos como pessoas de sucesso. Mesmo que não tenhamos tido tempo para brincar, rir, fazer nada, olhar a lua e as estrelas cobertas e descobertas pelas nuvens - água gasosa.

Somos estimulados a ser tão hábeis e tão capazes de fazer mais e mais, de produzir tanto e cada vez melhor, que acabamos nos cansando de ser. Vem a exaustão, a tristeza quando nosso desempenho não atinge os níveis que nos propusemos.

Procuramos academias diversas, para treinos físicos e emocionais. Queremos vencer, e nossos treinadores dizem que podemos, que vamos conseguir, que a mente é poderosa. "Pense positivo." "Você é senhor de si mesmo."

Sem pausas, sem poder desistir desse personagem perfeito, estamos sempre nos julgando e exigindo o bom desempenho, o pensamento positivo capaz de transformar a si e a realidade. Alguns se tornam exaustos, tristes, depressivos - pois correram tanto, fizeram tantas coisas e, pensando que estavam seguindo os princípios da plena atenção (mindfulness) em múltiplas tarefas, deixaram de contemplar mais, respirar lentamente.

Estamos sempre querendo chegar a algum lugar. Corremos, atropelamos a nós e a vida. De repente percebemos que a vida passou e não fomos capazes de apreciar as nuances sutis de um amanhecer, do sorriso de uma criança, do choro que exigia nossa presença. Não fomos capazes de sair do computador, de deixar de pensar no sucesso e de perseguir apoios para nos tornarmos cada vez mais capazes, positivos, melhores.

Pare!

Observe a si. Perceba a Sociedade do Cansaço, título de um livro do pensador sul-coreano Byung-chul Han, lançado em 2015 pela Editora Vozes. Estamos correndo muito e nos tornando esgotados pelo esforço de sermos quem somos, sendo agressores e vítimas de nós mesmos, onde somos os exploradores e os explorados.

Observe. Respire. Reflita. Aprecie a vida.  Sem nada a ganhar, sem nada a perder.

Mãos em prece

MONJA COEN