sábado, 18 de novembro de 2023


18 DE NOVEMBRO DE 2023
LEANDRO STAUDT

Tempo do trem de Porto Alegre a Canela

Quando vejo a reformada estação de trem de Canela, tento imaginar como eram as viagens entre Porto Alegre e a Serra. O apito da maria-fumaça. A agitação pela chegada ou partida de passageiros. O antigo terminal foi transformado no complexo comercial e gastronômico Estação Campos de Canella.

O ramal de Taquara a Canela saiu de operação em 11 de março de 1963. A justificativa foi o déficit da operação, além da existência de estrada pavimentada ligando os municípios.

A firma João Corrêa & Filhos construiu a ferrovia. O empresário João Corrêa Ferreira da Silva comprou terras na Serra para abrir uma estação de veraneio. Em 1922, a estação de trem de Canela foi inaugurada, mas ainda sem os trilhos até Gramado. A Revolução de 1923 atrasou a conclusão, que só ocorreu após mobilização de madeireiros para arrecadação de verbas.

Em 14 de agosto de 1924, a Viação Férrea do Rio Grande do Sul inaugurou novamente a última estação do ramal de 57 quilômetros. O memorialista canelense Marcelo Wasem Veeck conta que poucas casas existiam no entorno. A estação mudou o rumo de Campestre Canella, nome antigo da localidade, que fazia parte do quinto distrito de Taquara, com sede em Gramado.

Após dois anos da chegada do trem, Canela virou o sexto distrito. O desenvolvimento foi rápido, impulsionado pelo comércio de madeira e pelos veranistas, que buscavam ar puro e fugiam do calor no Vale do Sinos e em Porto Alegre. O pesquisador Pedro Oliveira conta que a estação foi ponto de encontro, concentrando pessoas, cavalos e charretes a cada chegada ou partida.

Em uma tabela horária da década de 1950, consta que um trem diário partia de Porto Alegre às 12h30min, com previsão de chegada à cidade da Serra às 19h13min. Em Canela, a partida ocorria às 5h5min, chegando na Capital às 11h35min.

Na Várzea Grande, em Gramado, eram perdidos em torno de 40 minutos no "rabicho". Em função do terreno íngreme, a maria-fumaça precisava fazer uma manobra e subir um trecho de ré para empurrar os vagões.

Com o desenvolvimento proporcionado pelo trem, Canela virou município em 1944.

LEANDRO STAUDT

18 DE NOVEMBRO DE 2023
FLÁVIO TAVARES

OS NÓS DA ARGENTINA

Talvez perguntem o que temos nós, no Brasil, com os nós das eleições presidenciais na Argentina, cujo segundo turno é neste domingo.

Sim, pois há um nó que as pesquisas eleitorais definem como um "empate técnico" entre os dois candidatos, o peronista Sergio Massa, atual ministro de Economia, e o hiperdireitista Javier Milei, um desconhecido que, agora, busca varrer tudo o que encontre pela frente.

Morei em Buenos Aires durante 22 anos e observei o quanto os dois países têm em comum. Só o futebol nos separa. Em tudo mais as duas nações se complementam. Uma é o prosseguimento da outra.

A Argentina é nosso maior parceiro comercial na América Latina, superado globalmente apenas pela China e pelos Estados Unidos.

Hoje já não vivemos os tempos em que os dois países, à espera de uma guerra entre si, tinham nas fronteiras os maiores contingentes militares. O exemplo está à vista aqui no Rio Grande do Sul. Como defesa mútua, até a bitola das ferrovias era diferente para evitar a invasão de tropas por trem.

Agora, porém, o ultradireitista Javier Milei reabre o conflito alegando que o peronista Sergio Massa tem "marqueteiros" brasileiros e que isto "é uma intromissão". Foi adiante e afirmou que o próprio Lula interveio em favor de créditos à Argentina ao governo atual, cujo ministro de Economia é seu rival. Esse "patriotismo" é estranho, pois Milei propõe substituir a moeda argentina pelo dólar?

Mais ainda: Milei quer terminar com o Mercosul, que ampliou o comércio na América do Sul. Suas propostas excluem o Brasil, numa volta às antigas rivalidades políticas. Mesmo assim, três deputados brasileiros (entre eles o gaúcho Marcel van Hattem) foram ao primeiro turno da eleição argentina em apoio a Milei.

O nó cego da eleição presidencial na Argentina se complica não só pelas posições de Milei, mas também pelo fato de o candidato governista ser o atual ministro da Economia num país à beira da bancarrota, com mais de 100% de inflação.

Lá tudo indica que ressurge o refrão "se ficar o bicho come, se correr o bicho pega"?

A deputada federal Fernanda Melchionna pode ter derrubado a velha visão de que a atividade política consiste em falar bem de si próprio. Seu livro Tudo isto É Feminismo - uma Visão sobre História, Lutas e Mulheres é uma lúcida interpretação do papel feminino na sociedade atual.

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES

18 DE NOVEMBRO DE 2023
OPINIÃO DA RBS

BOM SENSO, POR ORA

Um raio de bom senso iluminou o governo federal, que desistiu da ideia de patrocinar uma emenda parlamentar ao projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para mudar a meta de déficit zero das contas públicas em 2024. O prazo para essa alteração seria a sexta-feira. Trata-se de uma decisão acertada, apesar de ser notório que na prática existem chances mínimas de se alcançar o objetivo de igualar receitas e despesas no próximo ano, como o previsto no novo marco fiscal.

O que está em jogo, sobretudo, é a credibilidade do arcabouço proposto pelo Executivo e aprovado pelo Congresso há poucos meses para substituir o teto de gastos. O abandono do compromisso de responsabilidade com as contas públicas tão cedo, como chegou a prenunciar o próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sinalizaria desdém com o equilíbrio das finanças e contribuiria para deterioração de indicadores como câmbio, expectativas de inflação e juros futuros. Não é algo abstrato. São fatores com consequências na economia real e no dia a dia dos cidadãos.

Se o Planalto seguisse com a ideia de admitir déficit em 2024, demonstrando permissividade com o desequilíbrio, o reflexo imediato também seria alimentar o ímpeto gastador do Congresso e fazer com que os parlamentares se sentissem menos compromissados em aprovar medidas voltadas a elevar a arrecadação. Ao mesmo tempo, enfraqueceria o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que ao longo do ano atuou com habilidade na articulação política com deputados e senadores.

A dificuldade em concretizar o déficit zero reside na resistência do governo - e do próprio parlamento - em cortar despesas em um ano eleitoral, na queda da arrecadação em níveis acima dos previstos e na dificuldade para aprovar no Congresso medidas que elevem as receitas. Haddad, agora, ganha tempo para negociar a votação da agenda que pode aumentar o ingresso de recursos e dialogar sobre o que será possível contingenciar no início de 2024. Resta aguardar para ver até o fim do ano legislativo a real disposição do parlamento de colaborar com o governo.

Calcula-se que seriam necessários R$ 168 bilhões para fechar as contas no próximo ano. Tudo indica ser um valor inalcançável. O mercado financeiro hoje projeta déficit equivalente a 0,8% do PIB. Mesmo assim, manter neste momento a meta indica ao menos existir algum esforço para se aproximar do objetivo, o que dá inclusive mais conforto para o Banco Central seguir o ciclo de corte da Selic - este, sim, um fator que tende a beneficiar a economia de forma mais prolongada, por incentivar o investimento privado. Mas o provável, por ora, é que a vitória de Haddad seja parcial e o governo acabe alterando a meta em março, quando sai o primeiro Relatório de Receitas e Despesas Primárias de 2024. A equipe econômica está e seguirá sob fogo amigo da ala política do governo e do próprio PT.

As preocupações de fundo, quanto à verdadeira relevância que Lula dá ao equilíbrio fiscal, permanecem. O presidente da República parece não ter se livrado da mentalidade obsoleta de que gasto público é capaz de animar a economia. O histórico recente do próprio país mostra um empurrão fugaz e o que acaba restando é o desarranjo que, ao longo do tempo, produz maior endividamento público, inflação, juro mais alto e desconfiança de empresários, investidores e consumidores. O ideal seria que o bom senso, em vez de ser apenas momentâneo, se tornasse matéria de convicção.


18 DE NOVEMBRO DE 2023
+ ECONOMIA

PIB deve cair, Campos Neto diz ser preciso "olhar para frente"

Era esperado, mas veio um pouco acima das expectativas: o Índice de Atividade Econômica do Banco Central (IBC-Br) caiu mais 0,06% em setembro, em relação ao mês anterior. No terceiro trimestre, acumulou 0,64% de queda.

É importante lembrar que o IBC-Br tem metodologia diferente da usada para calcular o dado oficial da atividade econômica feito pelo IBGE. Então, não quer dizer que o PIB vai encolher na mesma magnitude. Mesmo assim, a queda do indicador deve provocar correções nas estimativas, que hoje rondam os 0,3% de redução no terceiro trimestre.

A XP reafirmou sua estimativa de redução de 0,3% para o PIB do 3º trimestre em comparação ao trimestre anterior. Mas observou que o "fraco desempenho" do IBC-Br de julho a setembro deve levar a "algumas revisões baixistas" no mercado. O dado oficial sai em 5 de dezembro.

Vai ser um amargo presente de Natal para o governo Lula, mas não faltam economistas que veem o lado "copo cheio" de um sinal negativo seguido de número baixo no PIB: ajudaria a convencer o BC de que é possível aprofundar os cortes no juro, uma vez que a economia já contraiu.

O presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, não deu muita corda:

- É difícil pegar um número mensal ou trimestral e fazer uma grande projeção. A credibilidade é muito importante. Não muda a nossa expectativa. No último comunicado, havíamos dito que ia desacelerar. O BC tem de olhar para a frente.

E fez questão de expressar seu apoio pessoal à manutenção da meta de déficit zero:

- O mercado não acredita, acha que vai ter dificuldades para atingir, mas é importante insistir. Por isso, estou me juntando ao coro com o Ministério da Fazenda, é preciso buscar receitas (para manter a meta).

MARTA SFREDO

 

MARCELO RECH

Os populistas

Pelo jeito, a eleição na Argentina neste domingo será mesmo lembrada como uma escolha entre Drácula e Frankenstein. Seja quem for o vencedor, Sérgio Massa ou Javier Milei, o populismo terá vingado mais uma vez na Casa Rosada, em um ciclo de soluções mágicas frustradas que represa o potencial do vizinho e eterniza uma crise nutrida por irresponsabilidades e miragens embaladas em slogans destinados a iludir o eleitorado.

Um -Sergio Massa - é o herdeiro do peronismo convertido em kirchnerismo que deteriorou a antes pujante e rica Argentina no bojo de concessões sem fim às corporações trabalhistas e a regulações que travam a competição e os avanços decorrentes dela. O outro é um populista mais moderno, que conhece bem o mecanismo de como as redes sociais acabam por impulsionar os mais excêntricos e radicais. Bem ao estilo das redes, que retratam o mundo por fragmentos, Milei faz de tudo para chamar atenção. Do cabelo desgrenhado às declarações bombásticas, o que importa é marcar presença e se distinguir dos demais candidatos pelo exagero e, muitas vezes, pela ausência de compostura.

Ambos extraem parte de sua inspiração em Lula e Bolsonaro, dois exemplos acabados desse populismo tão latino-americano. Tanto Lula como Bolsonaro não demonstraram pejo em estourar as burras do Tesouro para conceder benesses com vista às urnas. Foi torrando o que não tinha, conforme os conselhos de Lula, que Massa encontrou oxigênio para liderar o primeiro turno. Massa, Milei, Lula ou Bolsonaro têm mais em comum: todos buscam se amparar na "força do povo" nas ruas e nas redes, um dos recursos mais vistosos do populismo para tentar emparedar outras instituições, como o Congresso, o Judiciário e a imprensa.

O populismo à Lula ficou evidente nos constantes ataques ao presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, por não cortar os juros na marra. No mundo paralelo do populismo, basta "vontade política" para fazer a inflação baixar sem dor e sem cortes de despesas. Já o populismo à Bolsonaro, copiado por Milei, cria fantasias, desengaveta ameaças delirantes e arruma confusões gratuitas, sempre com a intenção de forjar culpados malvados e se manter na conversação digital.

No universo populista que se retroalimenta nas redes sociais, não há espaço para caminhos, projetos e candidatos sensatos e monótonos, ainda que exequíveis e realistas. Essa é a grande sombra que paira sobre a América Latina: a sensatez, a racionalidade e a responsabilidade serem substituídas de vez pelo alarde, pela fanfarronice e pela incúria generalizada, tudo com objetivo de conquistar e manter o poder. O país e o futuro que se explodam. O importante é o aqui e agora, custe o que custar. Isso é o que a eleição na 

MARCELO RECH

sábado, 11 de novembro de 2023


11 DE NOVEMBRO DE 2023
MARTHA MEDEIROS

De volta aos Beatles e Rolling Stones

Milhares de pessoas têm sido expulsas de seus lares, desabrigadas por bombas, enchentes e tornados. Quem ainda tem casa, como você e eu, também anda se sentindo desabrigado, só que num sentido metafórico: vive para fora e nem lembra mais o que "casa" significa.

Temos ido longe demais em nossa ganância. Guerras estão fora de controle. A Amazônia é incendiada por interesses financeiros que destruirão o planeta. Não é mais uma ameaça catastrofista, e sim uma realidade comprovada pelas mudanças climáticas e pela extinção de bichos, plantas e tribos. Estaria a tecnologia indo longe demais também, criando uma imitação de vida, até nos tornar dispensáveis?

Jovens não sabem se terão emprego no futuro. Parecem pouco interessados em amor e sexo. Não querem filhos. E nada disso faz parte de uma revolução de costumes, de um desejo libertário ou de um ideal qualquer: é um surto de anemia.

O mundo, em constante trabalho de parto, deveria dar à luz uma era mais pacífica, menos monetarista, menos fanática e com pessoas conscientes das questões ambientais, só que adeus, otimismo. Somos oito bilhões e quantos robôs?

Em meio à nossa falência como espécie (é inacreditável que ainda se acredite na violência como solução para o que for), a música vem em nosso socorro e conforta a velha geração a que pertenço, a do flower power. Vem Mick Jagger, aos 80 anos, cantar como se tivesse 30, e vem Lennon, assassinado por um lunático, confirmar que não está morto nem enterrado. Se os Beatles foram mais famosos que Jesus Cristo, não sei, mas entendem um bocado de ressurreição.

Casa é o lugar que acolhe, que permite que você seja quem é, sem hipocrisias. É o espaço protegido da sua alma, área reservada para plantio e colheita de suas emoções mais autênticas. É quando você é chamado para dentro. Pois voltei para casa ao escutar Hackney Diamonds, o recém-lançado álbum dos Rolling Stones, considerado pela crítica o melhor depois de Tattoo You, e aí se vão 40 anos. Tenho me exercitado escutando Stones, dirigido escutando Stones, e é como se eu estivesse de volta ao primeiro quarto que foi só meu, onde escrevia versos adolescentes como: "o que uma guitarra faz/ nenhum rapaz comigo já fez".

Voltei para casa, também, ao escutar Now and Then, a emocionante canção inédita dos Beatles, a prova de que o sonho não acabou, de que vale a pena dar uma chance à paz, de que tudo que Lennon pediu que imaginássemos não era tão utópico. Quem diria? Os Beatles nas paradas de sucesso outra vez, uma balada de quatro minutos silenciando os bombardeios que ninguém mais aguenta ouvir. Aqueles mesmos garotos de All You Need Is Love devolvendo-nos teto, chão e alento. Eu andava carente desse lar, doce lar.

MARTHA MEDEIROS

11 DE NOVEMBRO DE 2023
CLAUDIA TAJES

Seu destino no pano de prato

Estava eu arrumando a cozinha - sem a menor vontade e por pura necessidade, já que ela não se arruma sozinha - e pensando na redação do Enem sobre o trabalho invisível das mulheres. É provável que o tema tenha sido mais indecifrável para os candidatos homens do que algo como "ligações covalentes polares presentes no amido".

A pergunta de milhões é: quantos já teriam percebido, até o momento da prova, que a limpeza, o alimento, o apoio, o cuidado, enfim, são tarefas herdadas pelas mulheres e aceitas por elas? Tanto que ninguém discute isso dentro de casa. Sempre foi assim.

Alguns dos companheiros da gente até têm essa noção, o que não necessariamente se traduz em colaboração. Também é muito comum que se poupe os filhos de ajudar, os coitados já têm tanta coisa para fazer, por exemplo, estudar e aproveitar a vida.

As opiniões mais indignadas que li sobre o tema do Enem vieram, justamente, dos candidatos mais jovens, para quem discorrer sobre "Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil" soou foi grego.

Ora, invisibilidade. Ora, trabalho de cuidado. Ora, mulher.

Tomara que algumas das redações sejam compartilhadas - preservando-se, claro, o anonimato dos autores. Só para que se comprove o tamanho do desconhecimento da turma sobre o sempre desvalorizado, diminuído e desprestigiado trabalho de cuidados das mulheres dentro de casa.

E é aí que entra o pano de prato.

Enquanto arrumava a cozinha sem a menor vontade, peguei o paninho já encharcado, pedindo para ser substituído. Um peixinho muito do mal desenhado, em um fundo do mar que tinha até margaridas e rosas, me olhava com uma mensagem de otimismo: o futuro está sempre nas nossas mãos. Isso lembrado por um peixe que, a qualquer momento, pode ser pescado. E que sequer tem mãos.

Então me dei conta de que o pano de prato motivacional deve ter surgido para ser uma palavra de esperança no oceano de descaso com o trabalho doméstico. Eu na cozinha, me arrastando para terminar a tarefa e o peixe lá, como um coach a me incentivar. O futuro está em suas mãos e as panelas, também. Não pare, ainda tem a roupa para pendurar.

São muitas as mensagens construtivas dos panos de prato da minha gaveta. Não deixe para amanhã a louça que você pode lavar hoje. Faça tudo com amor. Louça primeiro, DR depois. Jesus tem grandes planos para você. Cozinha não é serviço, é amor. Se não puder fazer tudo, faça tudo o que puder. São muitas e muitas mensagens, uma para cada ocasião ou problema. Talvez os panos de prato estejam cada vez mais fininhos para a gente ter que usar vários de cada vez, e receber uma overdose de positividade enquanto rala.

Porque uma coisa é certa. O futuro a Deus pertence, mas a louça é minha.

Com licença que a pia me espera.

CLAUDIA TAJES

11 DE NOVEMBRO DE 2023
LEANDRO KARNAL

Levou seu filho ao pediatra e, no meio dos debates médicos, ouviu do profissional uma piada racista? Mesmo que você e seu rebento sejam loiros, de ascendência sueca, quase albinos, recomendo muita atenção. O problema é mais grave do que possa parecer.

Em primeiro lugar, racismo é crime. Você está lidando com um profissional (e pode ser um arquiteto, encanador, pintor, eletricista etc.) que não vê obstáculo em delinquir. Pela experiência, não existe uma pessoa que deslize apenas em um ponto, sendo exemplar em tudo o mais. Qual seria o outro delito? É perigoso chamar alguém que esgarça a lei. Qual seria o limite dele ou dela?

Em segundo lugar, como não existe nenhuma base racional para falar sobre inferioridade de alguém, diante de melanina, o profissional em questão está tomando por verdadeira uma crença completamente falsa. Também sabemos que uma ideia equivocada raramente é a única no cérebro de alguém. 

Ninguém é inteligente em todos os temas (claro!), mas, da mesma forma, ninguém é completamente burro em apenas um ponto. Se ele defende um ponto não científico, há riscos de uma mente não rigorosa. Se ele faz piada sobre um assunto ilegal e falso, existe orgulho da ignorância e do crime. Isso é ainda mais grave. Racismo é crime e estupidez. Demonstra afronta à lei e indica um grave limite mental.

Alguém pode dizer: "Mas ele é de outra geração... Isso é costume. Ele não é racista de verdade, apenas brinca de forma politicamente incorreta". Substitua a palavra racismo por outro crime, como a prática de pedofilia (ou brincadeiras sobre o tema), para você ver como ficará um pouco mais complexo "passar pano" ou relativizar. 

Você conseguiria levar seu filho a um profissional pedófilo, alegando que é apenas uma expressão de um outro tempo? Como eu imagino que a resposta seja negativa, é importante pensar que a lei brasileira trata de forma mais dura o racismo do que a pedofilia. Que eu saiba (não sou jurista) racismo é imprescritível e inafiançável; pedofilia, não.

Pense, em especial, quando se trata de educação de crianças: temos de pensar no exemplo ético e de formação de caráter. Não se deve expor um ser a uma cultura de preconceito. O chamado "currículo oculto" é mais forte nas escolas e na vida do que o saber estruturado formalmente. Você se esqueceu de alguns teoremas matemáticos, porém nunca apagará da memória a atitude da professora da área. Aprendemos um pouco de forma direta, mas muito mais de forma indireta. Piadas traduzem uma visão de mundo muito estruturante.

O mundo está cada vez mais diverso e voltado a ações de diversidade. O mercado não tolera ofensas abertas que depreciam o nome da empresa e da marca. Publicações de ódio, nas mídias sociais, podem barrar contratação pelo RH. Piadas afastam investidores. Se isso já é tendência forte hoje, imagine daqui a 20 ou 30 anos. Ser preconceituoso tornará seu filho um mau profissional no futuro, com dificuldades na socialização. Ele terá problemas com a lei e será incapaz de lidar com o mundo real.

De novo, alguém virá argumentar: "Mas isso é mimimi!". Eu recomendo o paralelo: brincar sobre estupro de uma menina de cinco anos e fazer piada sobre isso seria... mimimi?

Que maravilha para uma criança se, diante de uma frase infeliz ou de um ato preconceituoso, a mãe corrigisse (de forma direta e clara) o médico, marcando na memória da pessoa em formação que aquilo é inadmissível. Seria uma lição bonita e permanente. Se o profissional retrocedesse na afirmação e confessasse o erro, um passo seria dado. Se insistisse e manifestasse orgulho diante do crime e da ignorância, caberia ao responsável retirar-se do consultório, no mínimo. Um passo ainda maior seria concretizado. 

Com toda a calma, o pai ou a mãe iriam explicando, no caminho de volta, que os adultos erram, que aquilo dito na consulta médica foi um equívoco, porque as pessoas são iguais em dignidade e diante da lei, apesar de diferentes em aparência. Isso se chama educar. Um ato, por vezes doloroso, mas estratégico para indicar bons caminhos.

Depois de uma experiência assim, caberia reforçar com palavras e ações o valor da diversidade. Seu filho evoluiria como pessoa e estaria mais próximo de um mundo melhor. Preparar para o futuro inclui de vacinas a ética, de alimentos a valores. Se você ensina a não roubar e a não matar, seria imprescindível indicar também que não se admite racismo.

Volto ao médico do começo da crônica. Ele emitiu uma piada racista? Pior, se você riu junto, por ser branca e não ver problema naquilo? Bem, entendendo ou não, seu filho aprendeu que atacar a dignidade de outra pessoa pode causar humor; que é legal ser canalha; que a mãe amada e o médico respeitado por ele devem estar certos. São adultos e, se riem de um crime, é porque podemos todos rir. 

Assim, mesmo não tendo ainda lido Minha Luta, de Adolf Hitler, seu pequeno filho já captou o essencial da mensagem da obra. Tenho esperança em um mundo no qual o crime não tenha graça e que todos fujam de profissionais racistas e incompetentes.

LEANDRO KARNAL

11 DE NOVEMBRO DE 2023
ELIANE MARQUES

TORCENDO O DESTINO

Laura - Estou cada vez pior. Além de não conseguir dormir, de não conseguir transar com minha mulher, de não conseguir pagar minhas dívidas, agora me brotaram bolinhas nojentas na barriga da perna. Parecem grãos em pequenos sacos dispostos na mesa da minha panturrilha. Por tudo isso, resolvi procurar outro babá para cuidar da minha espiritualidade. Ele se chama Alarino. É filho de Nanã - sou de Nanã, euá, euá, euá, ê; sou de Nanã, euá, euá, euá, ê; sou de Nanã, euá, euá, euá, ê. Sinto-me culpada por ter deixado o terreiro. Mas não poderia aguentar mais tanta violência do babá Querino. Escuto ainda a voz dele colada ao meu ouvido direito me dizendo que meu futuro será de infelicidade com a mulher que eu decidi amar, com a casa que nós resolvemos comprar, com a vida que eu resolvi levar.

Analista - Mulher, casa e vida são substantivos femininos, não?

Laura - São femininos, mas o que isso tem a ver com a vida que eu quero levar e que ele não quer que eu leve?

Analista - Levar a vida. Como assim? Levar a vida como se leva um quilo de batatas num saco ou numa bolsa de supermercado? E para onde levá-la?

Laura - Quando eu era pequena, meu pai me colocou dentro de um saco de linhagem (...).

Analista - Qual pai? Até aqui, tu já citaste dois, Querino e Alarino.

Laura - Não, não são esses. Falo do meu genitor, Lucino, o marido de minha mãe. Um homem sempre trabalhador e sempre muito violento. Certa vez, quando eu era muito pequena, ele amarrou bem a boca de um saco de linhagem, comigo dentro, e me atirou no meio da plantação de milho, aipim e outras coisas que havia no terreiro, digo, terreno. Sobrevivi porque minha mãe me salvou. 

Mas hoje me sinto à beira da morte novamente. Não tenho dinheiro para pagar as prestações da casa, não tenho dinheiro para pagar o pedreiro e nem os materiais para dar continuidade à construção. Minha vida está parada, a construção está parada. Sinto-me sufocada no meio do terreno. Tudo está dando errado na minha vida.

Analista - Algo tem dado certo. Laura - O quê tem dado certo? Analista - O oráculo do teu babá, do teu pai Querino.

Laura - Isso mudou. Ele deixou de ter importância para mim. Não escuto mais a voz dele me dizendo o que devo ou não fazer.

Analista - Ah, me equivoquei, então. Tu não continuas obediente a ele quanto à previsão oracular de fracasso, de dor e de infelicidade? Ele não continua ainda traçando o teu destino, como se não houvesse possibilidade de torsão?

Laura - E há possibilidade de torsão do destino? Analista - Existe o certo porque de outro lado está o incerto. Existe o destino porque de outro lado está o acidente. Existe Orunmilá porque de outro lado está Bará.

Laura - E como eu faço para torcer o destino? Analista - Quem sabe tu possas cantar algo que não seja um hino a Querino ou a Lucino?

Laura - Oxum era rainha, na mão direita tinha o seu espelho onde vivia a se mirar. Será que esse serve?

Analista - Ficamos por acá, hoje. Laura - Não seria por aqui?

Analista - Resolvi torcer o "i".


11 DE NOVEMBRO DE 2023
COM A PALAVRA

COM A PALAVRA

TODO MUNDO TEM SAUDADE DA SUA JUVENTUDE. AS PESSOAS TÊM SAUDADE DE QUANDO ELAS ERAM MODERNAS. E AÍ SE DEIXAM LEVAR POR ESSE SENTIMENTO. É UM ERRO. VIVA A SUA ÉPOCA! VOCÊ NÃO VAI TER ESSE MESMO SENTIMENTO NUNCA MAIS. EU NÃO ME SINTO ANTIGO. ESTOU VELHO, TENHO 79 ANOS, É BIOLÓGICO. MAS FICAR ANTIGO É CULTURAL. NÃO É BIOLÓGICO. O QUE OCORREU COM AS PLATAFORMAS FOI UMA ABSOLUTA DEMOCRATIZAÇÃO DA PRODUÇÃO MUSICAL. QUALQUER MOLEQUE TEM MAIS RECURSOS EM CASA DO QUE O ESTÚDIO EM QUE EU GRAVAVA COM A ELIS REGINA EM 1969. MAS A BUSCA DA ORIGINALIDADE NO MEIO DISSO É DIFICÍLIMA.

Compositor, jornalista, produtor musical e escritor, Nelson Motta testemunhou e ajudou a escrever momentos marcantes da música nacional junto a grandes artistas - que tratou de narrar em um de seus vários livros, Noites Tropicais. A obra, que se tornou um clássico da história da música brasileira, foi relançada no ano passado em uma versão atualizada e ampliada, com três novos capítulos, para celebrar os 20 anos de lançamento. Ele o autografa neste sábado, às 18h, na 69ª Feira do Livro de Porto Alegre, e participa ainda do bate-papo De Lupicínio Rodrigues aos Anos de Ouro do Nosso Cenário Musical, às 16h, ao lado do também jornalista, músico e escritor Arthur de Faria.

Nesta entrevista, Motta fala sobre a festa literária, aponta os talentos que estão despontando no cenário nacional, tece elogios a Anitta, opina a respeito das novas plataformas de streaming e reflete sobre as letras atuais da música popular brasileira.

FERNANDA POLO

11 DE NOVEMBRO DE 2023
BRUNA LOMBARDI

EGO E COLESTEROL

Egotrip é coisa de iniciantes. De quem logo de cara cai na primeira cilada e se deixa seduzir pelo demônio mais idiota. Aquele que comete o mais banal dos pecados: soberba, vaidade, futilidade, arrogância, coisas que mostram como é estúpida a ideia de superioridade.

Como é pobre a ostentação. Falta de noção. Você só vê o brilho do show e não os bastidores, com um monte de gente ralando pra aquilo aconteça, inclusive o astro do show.

Quem só mora na aparência das coisas não sabe que qualquer cenário precisa de estrutura pra se segurar. Quem sonha com a efêmera fama que arranque o véu da invisibilidade precisa ser capaz de olhar para os outros. Quem se deixa capturar na intrincada teia do sucesso e acredita no que vê de fora, mas ignora o que se passa dentro.

Gente que vive da fachada só fica na superfície sem nunca compreender que atrás de todo personagem existe a profundidade da história de uma vida.

Lembrei do filme O Advogado do Diabo, em que Al Pacino, fantástico como demônio, diz a famosa frase: "Vaidade, definitivamente meu pecado favorito". Provando que a vaidade é a raiz de todos os pecados, o pior e o mais demoníaco deles. Da vaidade nascem todas as distorções.

Sempre percebi que viver nos apresenta ciladas, encruzilhadas, escolhas de rumos diversos. Um passo em falso e pronto, caímos. Nos deixamos conduzir pelo ego, pelo nosso pior. Um manipulador que mora com a gente, um sedutor que sussurra coisas perigosas.

Sucesso, fama, grana, elogios não fazem alguém necessariamente uma pessoa melhor. Tudo pode ser unidimensional. Uma festa onde a alegria é fabricada pra disfarçar o vazio. Onde as gargalhadas encobrem o desespero, e o barulho precisa ser intenso porque ninguém quer escutar sua própria voz interior. O ego pode ser um palco brilhante e uma experiência oca.

As redes sociais podem ser extremos condutores de vaidades fabricadas a partir de coisa nenhuma. São os famosos 15 minutos de fama, como previa Andy Warhol. O que poderia ser uma excelente maneira democrática de distribuir o sucesso acaba se revelando uma triste guerra de imagens que tantos travam consigo mesmos. O que poderia ser uma magnífica revelação de talentos descobertos pode se transformar na maratona desesperada de dançar até a última fímbria de resistência.

Reflexos artificiais onde as pessoas deixam de se reconhecer para tentar a qualquer custo a semelhança de um rosto padrão, de um corpo padrão, transumano e desumanizado, que resulta numa insatisfação generalizada. Uma fonte inesgotável de conflitos.

Mas o ego é como o colesterol. Existe o ego bom e o ego ruim. Precisamos do bom pra nos erguer, motivar, dar identidade e ter orgulho do que somos e podemos ser. Do que fazemos e podemos fazer. É o chacra do plexo solar, que nos conduz e posiciona na vida.

Muitas ciladas se apresentaram no meu caminho, e vi que rótulos não me definiam e a vaidade não traduzia as coisas que mais me interessavam. Aprendi logo a cuidar do ego e do colesterol.

BRUNA LOMBARDI

A PUREZA DE UM ÚLTIMO DESEJO

Não se pode esperar que as reações humanas que brotam por instinto sejam as melhores, até porque, quando não temos chance de elaborar nossas reações, elas ficam à mercê do estado de espírito daquele momento.

Em contrapartida, o que emerge do improviso na maioria das vezes revela na essência o que somos. Essa exposição visceral é benéfica, desde não seja agressiva, e é sobre este aprimoramento que se discute as melhores estratégias para acolher o sofrimento das famílias arrastadas pela doença dos seus amados.

O que não se pode negar é que o convívio com situações dramáticas exige apuro e reflexão, e isto pode ser ensinado de várias maneiras, incluindo técnicas de simulação.

Muitas vezes, por não saber o que dizer nem interpretar o que se diz diante do irreversível, os médicos inexperientes ignoram, por exemplo, o critério mais confiável para identificar o filho amoroso. E por ingenuidade embarcam numa grande farsa: o filho mais revoltado com a iminência da perda, aquele que esbraveja, protesta com veemência contra a precariedade da medicina e revela na sua indignação uma ruidosa transferência de culpa raramente é mais do que um pimpolho mimado, que agora está em sofrimento pela crise aguda de culpa e remorso, pelos afetos negligenciados, pelas confissões de amor omitidas e pelos amores desperdiçados.

Este ajuste final de contas é implacável, porque morremos exatamente como vivemos, ou seja, não dá para viver de um jeito e morrer de outro, e por isso a terminalidade é a depuração verdadeira da vida que tivemos e que, por ser última, não tolera dissimulações.

Um filho amoroso acompanhou a agonia prolongada da sua mãezinha que, aos de 91 anos, convivendo com as dores de um trauma que lhe fraturou as costelas, segredou ao filho, colorado desde pequeno, que ela, gremista durante décadas, tinha o sonho de um dia, quem sabe, conhecer a Arena do Grêmio. 

E ele, sensível e carinhoso, percebendo o pedido como último desejo, tratou de cumpri-lo. Aproveitou uma brecha no sofrimento da mãe que naquela tarde de sol parecia mais animada e o fez com a alegria de quem sabe o que significa o sorriso derradeiro de uma mãe encantada com afeto que plantara no coração do filho.

Quando conversamos, dias depois, por ocasião da morte dela, decorrente de complicações daquele trauma, o filho, com o choro contido e a voz embargada, sentiu necessidade de me relatar esta experiência na tentativa presumível de que a dor da perda pudesse ser minimizada pelo relato dessa expedição que alegrou, pela última vez, um velho coração afeito à mais genuína emoção.

Havia orgulho de ter oferecido à sua mãe uma alegria no ocaso de uma vida marcada pela doçura do convívio, e que deixava mais uma carinhosa lembrança que haveria de adoçar as conversas das reminiscências futuras, que haverão de misturar a saudade inevitável da perda com a certeza de ter se esforçado no limite do possível para corresponder, minimamente, ao seu amor incondicional. Esse tipo de amor que ganha de goleada no confronto com o time do coração.

J.J. CAMARGO 


11 DE NOVEMBRO DE 2023
CARPINEJAR

Oi

Sem exagero, metade de minha biblioteca eu formei na Feira do Livro de Porto Alegre. Gastava nas bancas da Praça da Alfândega meu salário inteiro de estagiário. Adquiria obras por valores que jamais obteria nos preços cheios das livrarias no decorrer do ano.

Além disso, desde adolescente, eu esperava avidamente o fim de outubro para pegar autógrafos dos meus autores prediletos.

O evento tradicional servia para ter um raro contato, mesmo que fosse breve, com quem admirava. Talvez pudesse abraçar e vencer a barreira da mesa, talvez pudesse ser inesquecível com comentários bonitos e gratos como "você mudou a minha vida" ou "obrigado por existir", talvez roubasse um sorriso ou uma piada do escritor acomodado humildemente, à espera de seu público.

Eu ensaiava meu discurso durante os pequenos passos nas intermináveis filas que contornavam o Pavilhão de Autógrafos. Não reclamava da demora, pois assim escolheria melhor o que dizer. Quem sabe citar um parágrafo marcante, ou destacar um personagem de minha fascinação, avisando que eu me parecia com ele?

O que falar para quem alegrou a minha solidão de leitura? Seriam cinco minutos disponíveis. Procurava me concentrar para não perder a oportunidade. Expectativas gerariam balbucios, engasgos. Um dos momentos mais aguardados de minha juventude foi cumprimentar Luis Fernando Verissimo. Até porque seria um desafio arrancar algum diálogo dele, tinha a fama de esfinge. Seu silêncio o precedia.

Eu já havia colhido dedicatórias de Mario Quintana, Lygia Fagundes Telles, Caio Fernando Abreu, Adélia Prado, Ziraldo. Faltava a caneta azul de Verissimo para a minha coleção, para assinalar as vozes que ecoavam dentro da lombada do caráter.

Verissimo é, ao lado de Rubem Braga, aquele que faz parecer fácil o que é extremamente difícil. Sua clareza comove porque essencializa dilemas da existência em pouquíssimas pinceladas. É como uma escrita feita para ser encenada. Suas crônicas saem do papel para, magicamente, surgirem em nossa frente. Ele apanha a realidade para devolvê-la melhorada. A crueldade do cotidiano vem editada em comédia. Ter um livro novo dele sempre representou os picos da minha ansiedade.

Eu lembro que, quanto mais me aproximava, mais o meu batimento se acelerava desordenadamente. Eu ia extraviando as frases ao longo da andança até o tablado. Como um saco furado que vai deixando o conteúdo pelo caminho. Não duvido que fazia um rastro atrás de mim. Meu discurso foi se encurtando. Fui cortando linhas do texto mental. Quando me postei diante dele, falei somente, com muito esforço:

- Oi!

Estendi a mão suada de nervosismo, apanhei o livro e cheirei o autógrafo. O livro mudava de perfume com a tinta de seu nome na folha de rosto. Havia conhecido Luis Fernando Verissimo, ninguém me arrancaria essa vitória. Dei espaço para o próximo leitor anestesiado de alegria, não me importando com o fracasso total de minha comunicação. Bastava a presença sincera. Aliás, o encontro poderia ter sido um fiasco perante qualquer autor, menos para Verissimo, pois consegui ser mais tímido do que ele.

Neste sábado, autografarei Manual do Luto, meu novo livro, às 19h. Eu queria dizer a cada leitor de minha fila que eu já estive aí tantas e tantas vezes, por isso, vou esperá-lo de pé, jamais sentado. Eu também faço fila por você. Meu "oi" continua o mesmo.

CARPINEJAR

11 DE NOVEMBRO DE 2023
FLÁVIO TAVARES

DIFERENTES, MAS IGUAIS

Nada é mais positivo e belo na política do que quando visões opostas se reúnem na mesma causa incontestavelmente justa. Assim ocorreu em 1961, no Movimento da Legalidade. Aqui no Rio Grande do Sul, até os opositores mais ferrenhos se uniram à pregação do governador Leonel Brizola.

Ao contrário, porém, nada é mais negativo, ou horripilante até, do que quando a unidade se faz por algo torpe e perigoso, que ameace a saúde da população ou a vida em si.

Este é o caso, agora, da inesperada união dos três senadores gaúchos - Paulo Paim, Luís Carlos Heinze e Hamilton Mourão - ao apresentarem o Projeto de Lei 4.653, que estimula a extração e o uso do carvão mineral, um dos responsáveis diretos pelo aquecimento global. Pergunto: nossos três senadores esqueceram que isso provoca desastrosas consequências para a saúde humana e para a própria vida do planeta?

O projeto de lei, que os três senadores apelidaram de "transição energética justa", trafega na contramão de todas as conclusões da ciência. Além disso, renega as advertências dos organismos ambientais, como a Organização Climática Mundial, sobre a necessidade de excluir o uso dos combustíveis fósseis até 2030.

O projeto propõe o absurdo de prolongar até 2040 os subsídios governamentais à exploração do carvão mineral. Esqueceram-se dos malefícios à saúde humana, como na região carbonífera de Candiota, onde as doenças respiratórias afetam crianças e adultos em níveis gigantescos.

Será isso a "transição energética justa" que os três senadores querem transformar em lei a ser cumprida?

Esqueceram-se os senadores das advertências do papa Francisco contidas na encíclica Laudato Si. O esquecimento vai além e contradiz (ou nega) as conclusões da ciência de que os últimos anos superaram o aquecimento do planeta mais do que em milhões de anos, séculos afora.

A unidade de pensamento dos nossos três senadores ao negarem as funestas consequências do aquecimento global mostra que, mesmo com visões políticas diferentes, são igualmente iguais.

Talvez exclamem: e daí, é só o planeta que vai sofrer!.

As guerras são terríveis por serem instrumentos de morte e destruição. Todos perdem numa guerra - o agressor ou o agredido e até o que triunfa. Ou não é isso que mostram agora a agressão dos terroristas do Hamas e a resposta do Estado de Israel?

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES

11 DE NOVEMBRO DE 2023
OPINIÃO DA RBS

A FORÇA DO TURISMO

O turismo tem sido uma das atividades mais promissoras no Rio Grande do Sul. Considerando-se anúncios recentes de projetos na área, é um segmento com potencial de se desenvolver ainda mais. Impressionam em especial os investimentos vultosos na área hoteleira na Região das Hortênsias. 

É um sinal inequívoco na confiança de que a serra gaúcha ganhará ainda mais espaço como um dos principais destinos do país. Conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o segmento turístico no Estado teve um crescimento de 35,8% em 2022, um dos maiores do país.

A colunista Rosane de Oliveira revelou na sexta-feira os planos de construção em Gramado de resort do Club Med, grupo de origem francesa que opera nos cinco continentes. O empreendimento foi disputado com o balneário de Punta del Este, no Uruguai. A unidade receberá um aporte de R$ 1 bilhão. Além de 250 quartos, o complexo contará com pista de esqui com neve artificial, moradias e centro de entretenimento.

Mas há outros projetos com investimento de valor parecido. No início do ano, foi anunciado, também em Gramado, um Hard Rock Hotel. O desembolso igualmente será de R$ 1 bilhão, em 10 anos. Mês passado, foi confirmado que São Francisco de Paula, em uma sociedade entre a Laghetto Hotéis e a BR Resorts, terá um resort temático da dupla Gre-Nal. Mais um aporte de R$ 1 bilhão. Em Canela, segue em andamento a revitalização do Laje de Pedra, ícone da hotelaria gaúcha, ao custo de mais de R$ 500 milhões. Foi a entrada do grupo europeu Kempinski na América do Sul, para tocar um empreendimento que une hotel e unidades residenciais. Junto a estes projetos há diversos outros na área imobiliária e de parques temáticos, uma característica sem igual no país.

A serra gaúcha é um dos destinos mais desejados dos brasileiros. Além da Região das Hortênsias, há várias outras atrações, como o enoturismo e os parques nacionais nos Campos de Cima da Serra, agora sob administração privada, com melhor infraestrutura e mais atrativos, além das belezas naturais. O turismo é uma atividade que espalha reflexos positivos no comércio e em outros segmentos dos serviços, como alimentação e transporte. Multiplica a geração de emprego e renda.

Mas, em relação à Região das Hortênsias, é preciso ter atenção para que a grande quantidade de empreendimentos não descaracterize as cidades. São as peculiaridades culturais e a natureza, além da qualidade dos serviços, da limpeza urbana e do atendimento que tornaram esses municípios famosos. Também na sexta-feira, a colunista de economia Marta Sfredo informou que um relatório sobre o mercado de entretenimento local indica que quase 60% dos empresários e líderes da Serra temem um colapso na infraestrutura de Gramado. 

Notam, a despeito do progresso prometido para os próximos anos, o risco de perda de identidade. Deve-se esperar que exista bom senso de empreendedores e autoridades para evitar um crescimento desordenado, capaz de, ao longo do tempo, prejudicar a região.

Mas o Estado como um todo tem boas perspectivas. Segundo a Secretaria de Turismo do Rio Grande do Sul, o setor teve, de janeiro a julho, saldo positivo de 1,5 mil postos formais. E, no mesmo período, o Estado foi a segunda unidade da federação que mais recebeu visitantes estrangeiros. Foram 850 mil visitantes, de 112 nacionalidades. Existe ainda um enorme potencial a ser explorado, como o turismo de eventos em Porto Alegre, a paleontologia na Região Central e o ligado às tradições gaúchas em regiões como a Campanha e a Fronteira Oeste.


11 DE NOVEMBRO DE 2023
TRADICIONALISMO

Homenagem ao pajador

Com uma sequência de sete edições entre os dois primeiros colocados - campeão (2014 e 2019) e vice -, o CTG Tiarayú, localizado no bairro Jardim Itu, em Porto Alegre, também mantém ritmo intenso de ensaios. Às vésperas do Enart, os treinos ocorrem todos os dias, com uma folga na semana.

- Esse ano o Enart tem uma peculiaridade: ele foi adiado um pouco para não dar conflito com as provas do Enem. Temos mais umas semanas de preparação. A expectativa está lá em cima - conta Wagner Oliveira, 32 anos, instrutor de dança e ensaiador da invernada adulta.

No ensaio acompanhado pela reportagem, Ronaldo Estevo, 46 anos, instrutor e responsável técnico, repassa as técnicas, alertando sobre os passos entre os pares e o tempo para retomar movimentos. A coreografia é marcada por sapateados dos peões no piso de madeira e muita movimentação das prendas enquanto manuseiam os vestidos.

- Temos uma cobrança grande entre os dançarinos e eles sabem o comprometimento que precisam ter com a entrega no Enart - explica Ronaldo.

Como já foi divulgado nas redes sociais da entidade, a invernada adulta apresentará no tablado do festival uma homenagem ao poeta Jayme Caetano Braun.

Parentesco

A ideia do tema partiu do centenário do pajador, que será celebrado no dia 30 de janeiro do ano que vem. Além disso, uma das integrantes da invernada é sobrinha-neta do poeta.

- Essa proposta de falar do tio Jayme já vem sendo amadurecida há muito tempo pelo CTG. Aproveitando que o ano que vem é o centenário, vamos fazer essa homenagem. Assim, essa proposta estará pronta para ser apresentada depois. Finalmente tiramos do papel essa ideia e, como familiar dele, estou muito feliz - explica Cristiane Braun, 37 anos.

"Vai emocionar o público"

Ensaiadora e bailarina no grupo, Cristiane Braun chegou a conviver com o tio até a adolescência. No ensaio, o "tio Jayme" deixa de ser só dela.

- Quando criança não temos dimensão, mas hoje consigo enxergar o quanto ele foi uma figura forte e importante no nativismo. E, para mim, unir a família de sangue com a família que adotamos, que é o CTG, e ver o pessoal se sentindo sobrinho é muito emocionante - diz Cris, que dança há mais de 30 anos.

Os ensaiadores do Tiarayú adiantam que a apresentação contará com um acessório que será levado para o tablado. Mas o foco será nos movimentos. Os declamadores Pedro Júnior, Liliana Cardoso e Adriana Braun, mãe de Cris, farão uma participação.

- O tema trata de saudade e de família. Vai emocionar o público - afirma Cris.


11 DE NOVEMBRO DE 2023
EMPREENDEDORISMO

Gaúcha é eleita a jovem mais visionária da América Latina

É de Bento Gonçalves, na Serra, a jovem mais visionária da América Latina de 2023, escolhida pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT), universidade dos Estados Unidos. Ariane Tamara Pelicioli da Rosa, 32 anos, recebeu o prêmio no final de outubro em Lima, capital do Peru.

Na cerimônia, foi escolhida para o seleto grupo de empreendedores mais inovadores abaixo dos 35 anos no continente, que já teve na mesma lista em anos anteriores Mark Zuckerberg, fundador do Facebook, e Elon Musk, CEO da Tesla e SpaceX.

Psicóloga formada pela Universidade de Caxias do Sul (UCS), Ariane conquistou os prêmios do MIT com a criação do Piipee, produto para banheiros que elimina o uso da água após urinar, desenvolvido ao lado do marido, Ezequiel Vedana da Rosa, 35. O spray tira odor da urina e elimina a necessidade de acionar a descarga.

Da infância, e boa parte da vida adulta no bairro Fenavinho, ela recorda com o orgulho de sua trajetória. Em entrevista, contou que sempre foi muito dedicada aos estudos. Quando pequena, também praticava atividades físicas e buscava sempre estar integrada em outras ações, como os movimentos tradicionalistas.

- Nos finais de ano, as minhas professoras pediam o meu caderno para ficar como exemplo para elas terem o conteúdo para aplicar no ano seguinte porque elas sabiam que eu realmente tinha anotado tudo - recorda ela.

Atualmente, Ariane mora com o marido em Paris, na França. O casal está na Europa há quase um ano. No Velho Continente, seguem na busca por se desenvolver intelectualmente.

Produto

Mesmo com todo o crescimento da Piipee, que nos últimos anos já ganhou mais de 30 prêmios, como o da Organização Mundial da Propriedade Intelectual, a sede da empresa segue em Bento Gonçalves. Atualmente, Ariane tem cerca de 4 mil clientes no Brasil.

Além de pessoas físicas, grandes multinacionais, como a Randoncorp, também estão na cartela da Piipee. Conforme Ariane, são cerca de 200 mil pessoas em contato diário com o produto no país. Em 2022, a solução ajudou na economia de mais de 65 milhões de litros de água. Ariane também é cofundadora e CEO da iUPay, fintech B2Banking que desenvolveu o Boletix, solução que captura e agrega todas as cobranças bancárias dos usuários de bancos digitais e outras fintechs.

MARCOS CARDOSO

11 DE NOVEMBRO DE 2023
MARCELO RECH

Nilton de Albuquerque Cerqueira era um combatente duro, um militar daqueles que não recusavam missão e levavam até o fim o cumprimento de uma ordem. Como major, ele chefiara, em 1971, o destacamento do Exército que perseguiu e matou no sertão baiano o capitão Carlos Lamarca, desertor que se bandeara para o lado da guerrilha e se tornara inimigo número 1 do regime militar.

Foi com esse currículo que o então coronel Cerqueira assumiu, em 1981, o comando da Polícia Militar do Rio de Janeiro. A escolha fora uma decisão pessoal do presidente Figueiredo, imposta ao governador Chagas Freitas para restabelecer a ordem e a segurança no Rio. Cerqueira fez o que suas ordens diziam. Começou por um processo de limpeza na PM. Oficiais corruptos eram expulsos em cerimônias públicas de desonra, as divisas arrancadas e a tropa de costas.

Por alguns meses, o novo xerife do Rio conseguiu estabelecer limites, mas logo constatou que o problema tinha origem nos corruptores e resolveu botar ordem aí também. Achando-se com as costas quentes, Cerqueira passou a prender os bicheiros. Semanas depois, o coronel foi removido. Nem o regime militar, com todo o seu arsenal de exceções legais, era páreo para a promiscuidade que, desde sempre, conjuga interesses de malfeitores e de políticos cariocas.

De 1981 para cá, os bicheiros viraram um problema modesto diante do que se passa no Rio, onde as narcomilícias dominam boa parte do território e se infiltraram no aparato estatal. Basta dizer que a companhia elétrica do Rio, a Light, quebrou principalmente porque não consegue cobrar a conta de energia em um terço do Estado.

O Rio tem, sim, um enorme problema de confiança em suas forças de segurança. Mas a gênese é uma cultura de leniência com a delinquência e uma degradação moral que vai do grupo de moradores da periferia que saqueia a carga do caminhão acidentado enquanto o motorista agoniza na cabine até o gabinete principal do Palácio Guanabara: dos sete governadores desde 2014, seis foram investigados e cinco presos. Nas últimas semanas, o Rio parece ter chegado ao auge da barbárie, com 35 ônibus queimados por terroristas locais. As narcomilícias extorquem mais de 20 atividades, entre elas a de guardador de carros. Ou seja, no Rio de hoje até os flanelinhas, esses que vivem de extorquir motoristas, são extorquidos.

Para o bem e para o mal, o Rio é espelho e coração do Brasil. O que ocorre ali acaba sendo transplantado para outras partes do país, seja a magia da Bossa Nova ou a tragédia do crime organizado. Estancar a hemorragia, portanto, é uma missão para todos os brasileiros, mas não bastam promessas e boas intenções. Com GLO ou sem GLO, o Rio apodrecido precisa de uma limpeza de alto a baixo.

MARCELO RECH


11 DE NOVEMBRO DE 2023
CARTA DA EDITORA

CARTA DA EDITORA Aventuras de repórteres

Na última segunda-feira, o repórter Marcelo Gonzatto recebeu a missão de mostrar como é o projeto que concede à iniciativa privada algumas partes do Delta do Jacuí. Desde o final dos anos 1970, a área que abrange as ilhas da Pintada e da Casa da Pólvora foi transformada em um parque estadual, com o objetivo de preservar um refúgio natural que abriga dezenas de espécies animais em meio a rios e canais.

Para entender o plano do governo estadual e o porquê de estar gerando polêmica entre ambientalistas, Gonzatto precisava conhecer uma das porções do parque mais importantes: o conjunto de construções históricas que fica na Ilha da Pólvora. Depois de ler documentos e fazer entrevistas, o repórter, juntamente com o fotógrafo Jonathan Heckler, entrou na aventura de chegar até o local, que, apesar de ficar do outro lado do Guaíba, bem defronte ao Cais Mauá, não tem acesso por terra.

Na última quarta-feira - último dia possível para conhecer a ilha a tempo de concluir a reportagem para esta edição -, Gonzatto e Jonathan tentaram alugar uma embarcação que saísse da área central da Capital. Sem sucesso, foram por terra até a Ilha da Pintada na esperança de conseguir o transporte de lá.

- Conseguimos alugar um pequeno barco a motor com um pescador da região e fomos até lá . Era importante mostrar construções históricas como o antigo Paiol (onde já se guardou a pólvora da Capital) e a Casa da Guarda (cuja torre pode ser vista desde o Centro), nem que fosse de dentro do barco apenas - conta Gonzatto.

Ao chegar à ilha, mais um desafio: como a área é alagada, não há como caminhar pelo chão. Ambos tiveram que subir no trapiche deteriorado pela ação do tempo e andar sobre as vigas para reduzir o risco de algum acidente. Já dentro da ilha, tiveram a grata surpresa de encontrar o seu Caco, morador que vive isolado naquela região há várias décadas.

- Com a ajuda do morador, circulamos pelas passarelas que levam de uma construção a outra e registramos a situação de abandono das estruturas, que haviam sido reformadas em 2001 a um custo superior a R$ 2,6 milhões - afirma Gonzatto.

A reportagem está no caderno DOC.

DIONE KUHN

sábado, 4 de novembro de 2023


04 DE NOVEMBRO DE 2023
CARPINEJAR

Hidratação profunda

Não conheço mulher que não se perceba no caminho da alopecia. É um dos seus maiores medos, como se a feminilidade residisse na vitalidade dos cabelos. Minha amiga Criss Paiva, comediante que fala sério, destacou o hábito feminino de optar pelo xampu com propaganda catastrófica. A mulher escolhe o xampu que mais a ofende, que mais a condena, que mais a puxa para baixo.

Raramente uma mulher compra um produto normal, neutro, de manutenção. Ela não se interessa pelo otimismo dos anúncios, mas pelo alarmismo. Antes mesmo de levar em conta a especificidade do cabelo (liso, crespo, cacheado, ondulado), ou ainda sua textura (oleosa ou seca, alinhada ou propensa ao frizz), os gatilhos de consumo decorrem das orientações negativas no rótulo, para corrigir fios ressecados, com pontas duplas, descoloridos ou simplesmente destruídos.

A tragédia não pode ser pouca. Ela se sente atraída pela reconstrução e hidratação profunda. Ela se sente convencida com recomendações para cabelos danificados e quebradiços. Ela se sente fisgada com promessas de restauração e reposição da massa capilar. Na persuasão do pior, algumas frases-chave são irresistíveis, tais como "reposição da queratina", "redução da porosidade", "recuperação da elasticidade".

As descrições se valem das trevas. O retrato tem que ser o mais desanimador possível para que ela decida ir ao caixa. As campanhas exploram a culpa da mulher, que se vê responsável por sanar algo que possa ter feito de errado antes: exagero de tinturas, emprego ostensivo de secadores, escova definitiva.

Se ela tem mais de 20 anos, é óbvio que já passou por um desses processos e acaba apanhada pelo remorso de não ter se revelado suficientemente dedicada, prevenida e cuidadosa com a raiz de seus cabelos. O recado é infalível e atingirá o histórico de todas as consumidoras.

Em momentos de valorização do equilíbrio emocional e de busca por romances saudáveis, será que tal dispositivo depreciativo não interfere na confiança da mulher? Será que não a tenta a se relacionar com pessoas que se mostram ciumentas, possessivas, desleais, sob o pretexto de consertá-las, sob a missão de salvá-las?

Será que não a incita a crer que "com ela será diferente" diante de cafajestes e canalhas? Será que o descrédito com a própria aparência não a influencia a se rebaixar, a confundir desaforos com preocupação?

Será que não a molda a perdoar a infidelidade por achar que ninguém mais vai querê-la? Será que não traduz seu apego a um universo romântico, caracterizado por sacrifícios e renúncias? Será que não expressa uma cultura do boicote, do desmerecimento, da desvalia?

Será que não ilustra uma mania de sempre se enxergar equivocada, inapropriada, inoportuna? Será que não explica a ideia de que precisa dar atenção exclusiva para ser amada? Será que não escancara a cobrança desmedida e diária que ela sofre da sociedade?

Ainda bem que existe o condicionador, um contraponto de carinho às críticas ácidas do xampu. É o retorno ao creme da solitude. O condicionador não provoca espuma, não xinga, não se baseia no escândalo da precariedade e da insuficiência.

Apenas desembaraça os nós na hora de se pentear. É discreto, doce, de aroma contido. É a esperança pela maciez e brilho do elogio.

CARPINEJAR