sábado, 16 de novembro de 2024



16 de Novembro de 2024
MARTHA

Revolução para trás

Daí que a revolução agora é conduzida pela extrema direita, que despreza a diversidade e neutraliza a massa, extorquindo os dízimos da ignorância. Uma revolução apoiada por desiludidos que leem pouco e só pensam em si. Bandeira fincada em terra árida, seca, desmatada, em prol daqueles que nunca se coçaram para se informar direito, preferindo vestir os dogmas e as fake news que lhes servem. É a revolução dos costumes marcha a ré.

A esquerda, desorientada, ainda apegada a discursos que ninguém escuta, se une ao centrão e perde a identidade. Pautas importantes como a homofobia, o racismo e a misoginia caíram na vala comum e, pelo desgaste, já não mobilizam quase ninguém. Combater a desigualdade social virou papo retrô. Cenário perfeito para um ex-presidente golpista se fazer de defensor da democracia, inverter a lógica e confundir os crentes.

Os líderes esdrúxulos desta revolução às avessas soltam frases como "Make America great again", mesmo que seja evidente que não será armando a população e expulsando imigrantes que a América voltará a ter o protagonismo que já teve, mas quem está preocupado em evoluir? O passado é o novo futuro.

Solidariedade, tolerância e compaixão continuam a ser o que há de mais moderno no mundo, mas são vistos como fósseis, despencaram no ranking dos valores. Os sentimentos - que é o que salva um país, uma família, uma pessoa - parecem servir para mais nada. A revolução da direita não fala em paz, nem amor, nem nada que respingue no emocional. Robôs no poder. Os eletrônicos e os de carne e osso.

Diante desta "eficiência" dos brutos, só nos resta tomar um vinho, dançar com os amigos no meio da sala, ver o sol nascer e morrer no mar, enquanto lamentamos a escassez de lideranças afetivas, as que poderiam realmente acordar esse bando de sonâmbulos que não se preocupam com quem sofre a sua volta. Ainda estamos aqui. Quase não sabendo mais escrever à mão, sequestrados pelas redes, mas ainda trazendo na memória o tempo em que importante era ter a capacidade de se comover - o que robôs, por mais que tentem, nem mesmo sabem imitar. 

MARTHA

16 de Novembro de 2024
DRAUZIO VARELLA

Perguntei se algum alimento melhorava ou piorava a dor. Respondeu que não, o único alívio eram os banhos quentes. Chegava a tomar 10 num dia.

A pergunta seguinte me levou ao diagnóstico:

- Você fuma maconha todos os dias?

- Fumo, doutor.

Era um caso típico de hiperemese por cannabis, síndrome descrita em 2004.

Você, leitora, dirá: "Como assim? Tem gente que usa maconha para as náuseas da quimioterapia". É verdade, mas o uso diário pode causar o efeito oposto.

No presídio em que atendo, vi meia dúzia de casos. As queixas são sempre as mesmas: começam com dor de estômago, depois de semanas ou meses surgem as náuseas e os vômitos que só melhoram com banhos quentes. Os exames de imagens são de pouca valia.

Os quadros extremos evoluem com desidratação, convulsões, insuficiência renal e parada cardíaca, complicações felizmente muito raras. Há oito casos descritos nos Estados Unidos.

Você, maconheiro velho, que fuma todos os dias há 30 anos e jura que nunca se viciou, vai dizer que fui cooptado pela repressão. Não é verdade, em mais de 50 anos de medicina, vi pessoas que se beneficiaram do uso de cannabis. Na década de 1980, acompanhei no Exterior os primeiros ensaios clínicos que testaram a maconha para as náuseas da quimioterapia.

Mas, veja bem: o baseado daquela época tinha concentrações de THC, o componente psicoativo, ao redor de 4% a 5%. Como o uso repetitivo induz o fenômeno da tolerância, com o passar dos anos você reclamava: "Essa maconha de hoje é palha velha. A do meu tempo...".

Atentos às demandas do mercado, plantadores e grandes traficantes se empenharam em selecionar variedades genéticas com teores de THC que atingem 20%. A tecnologia permitiu chegar mais longe: surgiram os vapes com 90% de THC, os baseados pré-enrolados e a maconha comestível, apresentações que nada têm a ver com a dos tempos românticos.

Um levantamento publicado em 2018 pelo Bellevue Hospital, de Nova York, conduzido entre mulheres e homens de 18 a 49 anos que fumavam maconha pelo menos 20 dias por mês, mostrou que cerca de 30% se enquadravam no diagnóstico de hiperemese por cannabis.

Há anos, psicólogas e psiquiatras com experiência no atendimento de dependentes químicos chamam a atenção para a influência do uso frequente de maconha no aparecimento de psicoses agudas temporárias, além de funcionar como gatilho para psicoses crônicas, como a esquizofrenia.

Com a enxurrada de casos de depressão e de ansiedade que a pandemia trouxe à tona, é provável que o número dos que procuram lenitivo num baseado continue a aumentar. Não é razoável esperar que o tráfico se interesse em reduzir as concentrações de THC na droga vendida nas ruas.

Então, vamos criar a Maconhabrás? Haveria muitas dificuldades, entre as quais o controle da distribuição e o preço: se for baixo o consumo aumenta, caso contrário, não acaba com o tráfico.

Claro que você, leitor civilizado, acha estupidez defender que a polícia prenda os usuários surpreendidos com pequenas quantidades, mas é a favor da prisão de traficantes. Vamos lembrar que essa distinção não é clara: dificilmente quem usa deixa de traficar. E se sua filha, criada com tanto carinho, comprar um pouco a mais para entregar à amiga que pediu o favor? Mereceria ir para a Fundação Casa ou para a penitenciária?

O caminho mais sensato é a educação. O primeiro passo é ensinar para as crianças e os adolescentes que maconha não é uma erva natural que não faz mal nem vicia, drogas psicoativas estão associadas à compulsão e à abstinência. Depois, entender que o baseado de hoje é diferente daquele da contracultura do passado, agora lidamos com produtos que trazem concentrações perigosas de THC, cujos efeitos são mal conhecidos. Quem imaginaria que pudessem provocar vômitos incoercíveis que só melhoram com banhos quentes?

Não existe bala de prata. Na minha adolescência, 60% dos homens fumavam cigarros industrializados, hoje mal chegam a 10%. O controle do uso de drogas que causam dependência só pode ser alcançado através da educação, em casa, nas escolas e nos meios de comunicação de massa. _

Drauzio Varella

16 de Novembro de 2024
J.J. CAMARGO

Da combinação de lições, doces ou amargas, cria-se a experiência para fazer o hoje melhor do que o ontem, e sempre de olho no futuro, que nos confrontará logo adiante para aplaudir-nos ou vaiar-nos com a implacabilidade da vida real.

Com cinco décadas de trabalho e ensino médico, é inevitável que tenhamos a percepção clara das razões das queixas multiplicadas nesse período. Como fomos juntos com a mudança, conferindo-nos as funções de partícipes e testemunhas, seremos cobrados pela história, com severidade ou benevolência, e já nos contentaremos se ao menos for com justiça.

Com o indisfarçável crescimento das críticas à medicina atual, convém que revisemos o nosso desempenho na formação dos profissionais que sairão das nossas escolas carregando nossos modelos, arquivados muito mais pelo exemplo, do que pelo discurso.

Poderemos alegar que, abstraídas as festejadas ilhas de excelência na formação médica brasileira, uma boa parte das nossas escolas peca pela falta de infraestrutura e suporte para oferta de um ensino profissional qualificado. E que as dificuldades se acentuaram a partir do momento em que inúmeras escolas foram abertas por razões meramente políticas, muitas delas sem ter sequer um hospital escola, que devia oferecer o treinamento elementar pelo convívio com o paciente e a sua doença.

Sabemos todos que, sem essa disponibilidade, o ensino médico se restringe ao aprendizado teórico com um modelo pedagógico virtual, desvinculado de qualquer proximidade com o paciente, único caminho que pode produzir, pela interação afetiva, profissionais tecnicamente qualificados e seres humanos comprometidos.

Mas esgotadas essas justificativas como supostos atenuantes para um desempenho acadêmico mais pretensioso do que verdadeiro, ainda teremos que prestar contas do que estamos oferecendo aos nossos estudantes como recursos extras para o enfrentamento dos enormes desafios de um mercado que é cada vez mais exigente para os veteranos e cruel para os principiantes.

Infelizmente, muitos mestres, reconhecidos por seus conhecimentos e afirmados por competência, parecem ignorar que a porta que se escancarava para o sucesso dos recém graduados há 50 anos atualmente tem senhas de acesso, duramente obtidas com a comprovação de habilidades que transcendem ao conhecimento técnico acumulado.

Cada vez mais comprometido com os temas sensíveis que os livros técnicos ignoram, me encanto em espalhar humanismo e desejar que cada aluno prove, do seu jeito, o deslumbramento de descobrir que a maravilha de ser escolhido pelos pacientes nunca é casualidade.

Em cada despedida de uma nova turma de formandos, todos energizados pela magia dos desafios e eufóricos pela possibilidade de provar, mais para si do que para os outros, do que são capazes, me comovo com os agradecimentos e as promessas de que um dia voltarão só para contar que cumpriram. E me contenho para não confessar que queria muito ser um deles para, outra vez, e como nunca mais, ser feliz. _

J.J. CAMARGO

16 de Novembro de 2024
CARPINEJAR

Insistir é covardia

Antes reinava a crença de que não poderíamos desistir facilmente de um amor. De que deveríamos protestar, fazer juras, mandar mensagens, não permitir que a pessoa renunciasse ao sonho ou ao projeto a dois. Batalhava-se arduamente, num patrulhamento invasivo e ostensivo, envolvendo no meio amigos, familiares e colegas de trabalho.

Casamentos experimentavam um vaivém, com brigas na rua e acertos privados incompreensíveis. Bares e restaurantes tinham sua tranquilidade rompida de repente por barracos e escândalos. Assistia-se a desaforos e declarações veementes com frequência. Havia o costume de lavar, estender e passar a roupa suja em público.

Vigorava uma mentalidade rastejante, marcante até 2010, de que era bonito correr atrás de alguém. Esse comportamento significava um ultimato de modéstia, uma renúncia das aparências, um gesto de coragem. Carros de som, outdoors e entregas de buquês gigantescos de flores serviam ao propósito de uma segunda chance.

Eu vivi isso tanto no papel de suplicante quanto no papel de alvo das lamúrias. Tente insistir hoje e será catalogado como um psicopata amoroso. Tente lotar um WhatsApp e será bloqueado. Tente esmurrar a porta ou infernizar no interfone, e virá a polícia.

Os tempos mudaram, felizmente. A valentia virou covardia. Atualmente entendemos que isso é grave ausência de respeito. O ato unicamente revela uma natureza persecutória, violenta, de opressão psicológica.

Monitorar alguém ou stalkear não é prova de apreço, mas falta de vergonha na cara. Precisamos absorver dois mandamentos sagrados de convívio: - Se a pessoa não quer ficar ao seu lado, deixe-a ir. - Tampouco permaneça onde você não é desejado.

Talvez você pense que está lutando pelo amor de sua vida, e somente está perdendo o seu valor. Pois se aproxima da intolerância e da autocomiseração.

Já começa não aceitando a escolha do outro, o livre-arbítrio, a capacidade de julgamento do seu antigo par, e termina numa conduta moralmente suicida, de se submeter a qualquer exigência para reatar a relação. Desesperar-se pelo retorno dos laços, em investidas ansiosas e frenéticas, é se diminuir. Não tem como dar certo.

Mesmo com a reconciliação, haverá uma situação de desconforto e de incessante desconfiança, a consciência de que o seu ex exclusivamente retomou a rotina de modo persuadido e obrigado, não por espontânea vontade. Só estarão novamente juntos porque você insistiu. Não tem maior humilhação do que dividir o espaço com alguém contrariado, indisposto, ferido.

Você nunca vai saber se a pessoa está com você por favor, por caridade ou por amor. Amor, tenho certeza de que não é, não existe amor unilateral. Não se cura uma desavença pela presença sufocante, mas pela solidão reflexiva e distanciamento. É fundamental sair de perto para realmente atestar o sincero arrependimento e a mudança de hábitos.

Perdão gritado é chantagem. 

CARPINEJAR


16 de Novembro de 2024
COM A PALAVRA -  Jorge Gerdau - Rodrigo Lopes

Ex-presidente do Grupo Gerdau e atual presidente do Conselho Superior do Movimento Brasil Competitivo (MBC)

"Sem amor, você não faz nada de grandioso"

Uma das principais lideranças do setor industrial no Brasil, Jorge Gerdau decidiu escrever o livro A Busca - Os Aprendizados de uma Jornada de Inquietações e Realizações, que será lançado no dia 27 de novembro pela Editora Citadel.

Por que o senhor foi adiando essa decisão de contar sua história?

Tive muito forte essa pretensão de escrever. Procurei, na minha vida, sempre trabalhar muito e não desenvolver vaidades. Isso vem de uma cultura influenciada pelos meus pais, de não criar falsas vaidades e coisas desse tipo. Então, esse tema da obra sempre me levava um pouco para uma visão de autopromoção e vaidades. E isso não fechava com o meu conceito de condução comportamental. Eu praticamente refuguei a ideia de fazer o livro. Fiquei quase uns 10 anos cozinhando se iria escrevê-lo ou não.

O livro se chama A Busca. O que o senhor busca?

Originalmente, o título seria A Busca da Excelência. Mas esse tema é tremendamente complexo. Na minha formação, no meu processo de trabalho, de vida, sempre busquei muito a excelência. Mas sobre o tema de excelência, se você não cuida, você extrapola para a vaidade. Eu tirei a palavra excelência (do título) porque, na verdade, o tema mais importante é a busca, a inquietação de encontrar caminhos.

No livro, o senhor escolhe 23 palavras que considera fundamentais. Algumas o senhor já citou aqui: humildade, excelência. Das 23, qual é a mais importante?

É a primeira palavra: respeito. Aí novamente tem o fator cultural, norte-europeu. De forma geral, o tema do respeito ao próximo. O respeito em tudo que a gente pratica, né? Se tu puderes praticar com respeito, é mais construtivo, é mais positivo. Seja na convivência com os operários... Aprendemos na nossa vida empresarial, com cultura da família, a respeitar o menor colaborador da mesma forma como se respeita o principal engenheiro. Isso estabelece uma mentalidade de colaboração. A primeira palavra é respeito, a última palavra (da lista) é amor.

Como o senhor está vendo tudo o que vivemos no Rio Grande do Sul recentemente: a tragédia das águas, a dificuldade em reconstruir o Estado? Qual o papel das grandes empresas diante desse cenário?

O tema é assustador. Estou preocupado com o cenário das coisas como estão acontecendo, lógico que aí tem um pouco de cacoete de empresário, viciado em analisar, planejar coisas a médio e longo prazos. Com todas as informações disponíveis, não consegui ainda sentir, na realidade, a dimensão do problema que tivemos, de quanto tempo vai levar, o que falta fazer, principalmente em cidades que praticamente foram arrasadas. Gostaria de poder responder, se vamos precisar de dois, três anos, ou 10 anos. Eu não sei se alguém sabe responder.

Voltando ao livro, é difícil empreender no Brasil. Que sugestão daria a quem deseja ter uma empresa no país?

Eu diria o seguinte. Na minha experiência de negócios, o principal fator é o entendimento ou domínio do core business (o coração do negócio, ramo de atividade). É um tema que, no meu entender, em termos tecnológicos ou acadêmicos, não é suficientemente debatido. Mas o domínio da essência, daquilo que eu vou produzir, é o domínio absoluto. Isso vale para qualquer tipo de atividade. Ela é decisiva para poder construir os passos empresariais.

Quando olha a Gerdau hoje, no século 21, o que tem na empresa que ficou daquela época da fábrica de pregos?

Realmente, o produto pregos sabíamos trabalhar muito bem mercadologicamente. Talvez a maior habilidade tenha sido a estrutura comercial, que nos deu condições de crescer na produção. Hoje, olhando o nosso negócio global, temos três core businesses que orientam o nosso negócio: o suprimento da matéria-prima de seu capital, como organização, cultura, logística. Segundo, o domínio total das tecnologias de produção, com equipamentos melhores do mundo. E a terceira é comercialização, que nós trabalhamos com 120 mil clientes. Então, são três atividades com absoluto domínio de conhecimento acumulado, e que se passa de geração a geração.

Falando sobre a sua vida fora da empresa. Eu sei que o senhor gosta muito de cavalos e esporte. O que o senhor aprendeu com os cavalos?

O cavalo aprimora aquilo que tem de se procurar na busca por conhecimento. Na educação do cavalo, é como uma criança no colégio. Começa com uma doma, sem brutalidade. Se você faz doma sem brutalidade, o cavalo confia em você. É uma relação de diálogo, cavalo-cavaleiro, extremamente importante. Como é que eu construo esse diálogo com o cavalo? Como qualquer diálogo. A gente trabalha com os dedos e as rédeas, o contato na boca, a espora e a perna. E como se trabalha isso? É um diálogo que se tem de ter com o cavalo. Os melhores cavaleiros são os que melhor dialogam com o cavalo.

E a palavra sustentabilidade, o que diz ao senhor?

Adoro a palavra sustentabilidade. Porque a palavra, sozinha, nos aproxima desse processo absoluto comportamental, que você tem de dar para as coisas se sustentarem. Então, a palavra sustentabilidade, para mim, é 10 vezes melhor do que qualquer outra explicação. Porque eu, sem a sustentação desses três fatores (ambiental, social e econômico), não consigo prosperar. A sustentabilidade do ambiental com o social e o econômico é que faz o processo funcionar.

E o amor?

Tenho uma palavra-chave em relação a isso. Sem amor, você não faz nada de grandioso. Essa conjugação emocional, de fazer as coisas com amor, é o mais importante que existe. Tendo o amor na construção das coisas, elas não têm mais limites. O amor é uma peça absolutamente vital na condução do nosso comportamento. 


16 de Novembro de 2024
Artigos

Crise climática e conhecimento técnico

Há poucos anos, as mudanças climáticas e suas consequências pareciam uma realidade distante. Vivíamos como se houvesse tempo para implantar ações mais contundentes de adaptação e mitigação frente aos eventos extremos que poderiam nos afetar no futuro. O foco eram as próximas gerações.

No entanto, a realidade que se impõe é outra. Hoje, a urgência dessa temática é inegável. Os fenômenos naturais extremos são parte do cotidiano, assunto das rodas de conversa e fonte de medo e ansiedade.

Nós, gaúchos, vivenciamos recentemente a tragédia de um desastre natural. As chuvas de maio no RS deixaram um rastro de prejuízos econômicos e sociais. Foram tempos difíceis em que a união e a resiliência do nosso povo se mostraram fundamentais. O Crea-RS, que celebrou 90 anos naquele mês, atuou prontamente no auxílio à reconstrução. Com sua infraestrutura afetada, o Rio Grande necessitava dos profissionais das engenharias e geociências. Pelo Programa Reconstruir-RS, mobilizamos voluntários às regiões afetadas, produzindo mais de 700 laudos técnicos essenciais à obtenção dos recursos do governo federal.

Estamos reconstruindo nosso Estado. Porém, como engenheira ambiental e presidente do Crea-RS, trago à reflexão a necessidade premente de valorizar o conhecimento técnico em todos os âmbitos institucionais, especialmente no debate e na consolidação das políticas ambientais.

Neste ano, o Confea criou o GT COP30, do qual faço parte, em preparação à conferência climática que acontecerá em Belém, no Pará, em 2025. A COP29, no Azerbaijão, abordará temas cruciais como transição energética e adaptação às mudanças climáticas, pautas que exigem o protagonismo de nossos profissionais, que têm a capacitação e as competências necessárias para desenvolver novas tecnologias, alinhando desenvolvimento e sustentabilidade.

Representando com orgulho os mais de 86 mil profissionais registrados em solo gaúcho, tenho a certeza de estarmos prontos para essa missão! As mudanças climáticas não serão mitigadas sem os engenheiros, agrônomos e geocientistas do Sistema Confea/Crea e Mútua. 

Nanci Walter - Engenheira ambiental e presidente do Crea-RS


Solução para as hidrovias

A falta de dragagem adequada e constante dos acessos a portos e hidrovias no Estado é uma queixa que se arrasta ao longo dos anos sem uma resposta apropriada. Empresas que utilizam o transporte hidroviário interior e suas entidades reclamam que a manutenção inapropriada tira o potencial do modal. A situação insatisfatória piorou com as enchentes severas que atingiram o Rio Grande do Sul, em especial a de maio deste ano. Um grande volume de sedimentos carregados pelas águas ficou depositado no fundo dos canais, limitando ou inviabilizando a navegação. Quando um problema chega ao seu ápice, não há alternativa a não ser enfrentá-lo de forma resoluta.

O encalhe de dois navios em um intervalo de duas semanas no canal de Itapuã, que liga a Lagoa dos Patos ao Guaíba, é o sinal inequívoco de que é preciso agir rapidamente. Uma embarcação trazia cevada cervejeira para o porto da Capital e o outro carregava insumos para a produção de fertilizantes. Como reação, foi anunciado que a Portos RS, empresa pública do Estado, vai aplicar R$ 10 milhões para uma dragagem emergencial no local. O governo promete o início da operação até o final do mês. Aguarda-se o cumprimento do prazo.

Mas as dificuldades, como dito antes, são antigas. Na edição da última quarta-feira de Zero Hora, a colunista de agronegócio Gisele Loeblein trouxe a informação impactante de que, entre 2022 e 2023, mais de cem navios desistiram de operar no Porto de Porto Alegre devido aos riscos para a navegação. A dragagem do Guaíba é reivindicada há mais de dois anos pela Hidrovias RS, entidade que reúne companhias e setores usuários do modal. Além disso, embarcações que seguiam fazendo o transporte não conseguiam trabalhar com carga plena. 

É uma situação que onera as empresas que utilizam o transporte hidroviário e, por consequência, mina a competitividade da economia do Rio Grande do Sul. Lembra o caso do aeroporto Salgado Filho antes da ampliação de pista de pousos e decolagens, quando aviões maiores não conseguiam utilizar toda a capacidade de carga. Muitas mercadorias, ao fim, têm de ser transportadas por estradas já abarrotadas de veículos pesados, o que também prejudica a segurança no trânsito. As rodovias utilizadas são a BR-116 e um ponto da BR-392, entre a zona sul do Estado e a Região Metropolitana, trechos famosos pelo pedágio mais caro entre as vias federais do país.

A solução esperada para as hidrovias, portanto, tem de ser estrutural. Não com dragagens emergenciais, mas por manutenção constante. No último dia 7, o comitê do Fundo do Plano Rio Grande (Funrigs) aprovou a liberação de R$ 731 milhões para serviços como batimetrias e dragagem. As ações são previstas para cerca de 320 quilômetros de hidrovias interiores e mais 40 quilômetros de canais próximos ao Porto de Rio Grande. 

Vários trechos navegáveis de rios como o Jacuí, Sinos, Caí, Gravataí e o canal de São Gonçalo também devem ser beneficiados. As hidrovias gaúchas são importantes vias de escoamento de fertilizantes, grãos, petroquímicos e celulose, entre outros produtos. Será fundamental que, nos anos seguintes, exista um trabalho permanente de preservação das plenas condições de navegabilidade. A competitividade passa por uma melhor infraestrutura de transporte, que diminua os altos custos logísticos do Rio Grande do Sul.

A competitividade passa por uma melhor infraestrutura de transporte, que diminua os altos custos logísticos do RS

OPINIÃO RBS 


16 de Novembro de 2024
EXPLOSÕES NO STF

EXPLOSÕES NO STF

Moradores de Rio do Sul, onde vivia o homem que lançou bombas na Praça dos Três Poderes na noite de quarta-feira, confirmam que ele viveu um processo de radicalização política nos últimos tempos, mas alegam que sua conduta costumava ser pacífica. Grau de violência do ato surpreendeu a comunidade

A aposentada Maria Irlete Luiz, 68 anos, caminha pela calçada da Avenida Barão do Rio Branco, em Rio do Sul, Santa Catarina, com os cabelos desgrenhados e o rosto enfiado no peito para esconder o semblante abatido. Na sexta-feira, não conseguia entender como o irmão, Francisco Wanderley Luiz, 59 anos, lançara bombas contra o Supremo Tribunal Federal (STF) e finalizara o ato de terrorismo explodindo a si mesmo menos de 48 horas antes.

Até então, apesar de manifestar opiniões políticas alinhadas à extrema direita, era visto como um sujeito tranquilo, simpático e de vida pacata.

- Estamos arrasados com toda essa situação. Jamais imaginamos que chegaria a um extremo desses - confidencia Maria Irlete a Zero Hora diante do terreno onde Luiz, conhecido na cidade como Tiu França, vivia antes de se instalar em Ceilândia e acertar os últimos detalhes do atentado que chocou o município de 72 mil habitantes no Alto Vale do Itajaí.

Entre amigos e vizinhos, há muitas hipóteses para tentar explicar a conversão de França ao radicalismo político. O sentimento é de que um conjunto de fatores o empurrou para a irracionalidade.

O empreendedor, bastante conhecido na cidade, já havia montado quatro danceterias de renome, mas todas acabaram fechando. Depois disso, sofreria outros reveses.

Recentemente, trabalhava como chaveiro no mesmo terreno onde morava em uma casa de madeiras desalinhadas às margens do Rio Itajaí. Sucessivas cheias que culminaram em uma grande enchente, em novembro do ano passado, provocaram perdas significativas e teriam ampliado a frustração de França - alimentada anteriormente por uma separação e por duas decepções políticas. O empreendedor se ressentia da derrota de Jair Bolsonaro na mais recente eleição presidencial e de seu próprio fracasso como candidato a vereador em 2020: somou apenas 98 votos.

- Depois da desilusão na política, mas principalmente depois das enchentes, ele foi ficando muito desanimado. E isso foi se agravando. Não vou dizer que foi só esse o motivo, mas foi agravando - complementa Maria Irlete.

Apesar disso, garante que o irmão jamais havia indicado propensão à violência, e exibia uma personalidade "tranquila e bem-humorada", sempre brincando com as pessoas com quem se encontrava.

Para o proprietário de uma barbearia das proximidades, Rodrigo Naist, França "pegou a onda do patriotismo".

- Mas ele apenas fez o mesmo que quase todo mundo na cidade, que é de direita. Foi a protestos contra o governo Lula, criticava a esquerda. Não indicava que faria algo violento - analisa Naist.

Boa convivência

Com as pessoas mais alinhadas à esquerda com quem convivia, como a comerciante Zélia Ferrari Giovanella, evitava discutir política. A dona do restaurante onde ele almoçava quase diariamente conta que se davam bem apesar das divergências ideológicas mantidas em silêncio.

- Ele vinha aqui e nunca falava de política. Ficava na dele. Eu percebia que tinha uma tristeza dentro dele, de que queria mudar as coisas, mas não de forma violenta - avalia Zélia.

Amigo de quase 40 anos, o professor de educação física Pedro Silva, 67 anos, afirma que sabia do envolvimento de França com política, mas ainda não conseguia entender como a relação se radicalizou em um período tão curto de tempo.

- Ele só podia estar fora do normal, porque quem conheceu ele acha inacreditável o que ele fez. Era um sujeito pacato. Ele cumprimentava todo mundo que passava - lamenta, com a mesma expressão de incredulidade da população de Rio do Sul. _

Embora França tenha concorrido a vereador pelo PL em 2020, a direção da sigla em Rio do Sul garante que ele não tinha atuação partidária, preferindo exercer a militância política de forma pessoal e por meio das redes sociais.

Presidente do PL em Rio do Sul, Milton Goetten afirma que nunca teve contato direto com França. O dirigente também não acredita que o clima político no município, caracterizado pelo amplo apoio à direita (Bolsonaro obteve 76,5% dos votos em 2022, contra 23,5% de Lula) tenha relação com a radicalização dele.

- Rio do Sul é uma cidade pacata. O que aconteceu não foi provocado pela divisão entre direita e esquerda, mas por problemas de ordem pessoal e familiar - opina Goetten.

O presidente do PL diz que não há atritos provocados por razão partidária no município e tampouco crê que o episódio em Brasília vá acirrar os ânimos. Alguns moradores de Rio do Sul que se assumem mais alinhados à esquerda, porém, contam uma versão um pouco diferente.

Irimar José da Silva, 62 anos, por exemplo, entende que há um clima de permanente tensão política na cidade, embora geralmente não resulte em violência explícita.

- Quem é mais de esquerda se encolhe, até evita falar de política. Eu até prefiro ficar em casa, nem saio muito. Antigamente, era possível se envolver em debates políticos, agora não se pode mais para não correr risco de causar uma briga - avalia Silva. _

Marcelo Gonzatto


16 de Novembro de 2024
POLÍTICA - Paulo Egídio

Veto a celular nas escolas deve virar lei federal

Discutida em todo o país e vigente em alguns Estados e municípios, a proibição do uso de celulares e outros aparelhos eletrônicos portáteis em salas de aula caminha para aprovação ainda neste ano no Congresso, em um raro episódio de consenso entre o governo e a oposição. O projeto apresentado pelo deputado federal Alceu Moreira (MDB-RS) tramita desde 2015 e, neste ano, encontrou ambiente propício para avançar.

O texto restringe o uso dos aparelhos durante as aulas e nos momentos de intervalo, exceto em caso de atividades pedagógicas, mediante autorização dos professores, ou quando for necessário por razões de saúde ou acessibilidade. A regra valerá para alunos de escolas públicas e particulares.

A iniciativa tem simpatia de parlamentares de esquerda e de direita, passando pelo centro. Como relator na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), foi designado o deputado Renan Ferreirinha (PSD-RJ), que implementou a restrição quando foi secretário municipal da Educação do Rio de Janeiro e já adiantou parecer favorável.

Otimista com um consenso "do PSOL ao PL", Alceu alinhou com a presidente da CCJ, Carol de Toni (PL-SC), para que o projeto seja votado ainda neste mês. Se for aprovado sem modificações, irá direto ao Senado, sem necessidade de passar pelo plenário.

- No Senado, já conversamos com o Davi Alcolumbre (que comanda a CCJ) e com o Rodrigo Pacheco (presidente) e eles estão dispostos a colocar em votação ainda neste ano. É um assunto muito discutido, todo mundo conhece e, se sair da Câmara com consenso, dificilmente terá alguma mudança - projeta Alceu.

Sanção encaminhada

Após a aprovação nas duas casas legislativas, basta a sanção presidencial para que a proposta se torne lei, o que não será uma barreira, visto que o próprio presidente Lula já defendeu a medida. Em setembro, o Ministério da Educação (MEC) cogitou mandar um projeto com esse teor ao Congresso, mas desistiu diante do avanço do texto em tramitação.

No RS, a lei estadual que veta o uso dos celulares durante as aulas não é aplicada. Nesta semana, o governador Eduardo Leite pediu à Secretaria da Educação que estude a implementação da medida. _

Melo publica decreto que acaba com o teletrabalho

O prefeito Sebastião Melo publicou decreto que acaba com o trabalho remoto na prefeitura de Porto Alegre a partir de 2025. O teletrabalho foi adotado durante a pandemia e perdurava na gestão municipal desde então, mas Melo avalia que é preciso retomar a proximidade física das equipes para ampliar a agilidade do trabalho.

Hoje, dos 14,7 mil servidores ativos, cerca de 1,3 mil atuam em teletrabalho. A nova dinâmica para 2025 será alinhada pelas secretarias nos últimos 45 dias do ano. _

Conexão Tóquio-RS

De Tóquio, onde prepara a missão do governo estadual no Japão, o chefe da Casa Civil, Artur Lemos, reuniu-se virtualmente na sexta-feira com líderes de federações empresariais gaúchas. Lemos e o secretário do Trabalho, Gilmar Sossella, ouviram as considerações dos presidentes de Fiergs, Fecomércio e Farsul sobre o reajuste do salário mínimo regional.

A reunião foi solicitada pelas entidades após os secretários receberem as centrais sindicais na segunda-feira, data em que o governo protocolou o projeto que corrige o piso em 5,25%.

- Tivemos oportunidade de externar nossa posição, a mesma oportunidade que os representantes dos trabalhadores tiveram - disse o presidente da Fiergs, Cláudio Bier, para quem a reunião foi "cordial e produtiva". _

Redesenho administrativo

O prefeito eleito de Pelotas, Fernando Marroni (PT), prepara mudança na estrutura administrativa. Marroni vai retirar o status de secretaria da diretoria do Theatro Sete de Abril e das assessorias especiais de Governança, do Pacto pela Paz, do projeto Cidade das Crianças e do Conselho de Desenvolvimento.

Em contrapartida, serão criadas as secretarias da Mulher, de Igualdade Racial e de Defesa Civil, enquanto a pasta de Desporto será desmembrada da Educação e a assessoria de Comunicação ganhará status de secretaria.

O vereador Jurandir Silva (PSOL), que auxilia na transição, diz que a nova gestão vai enxugar cargos comissionados e valorizar servidores de carreira. _

Reforço jurídico em Brasília

O vereador afastado Pablo Melo (MDB) contratou o escritório do advogado Admar Gonzaga Neto para atuar em seu processo no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Gonzaga já foi ministro da Corte e defende o ex-presidente Jair Bolsonaro e seus familiares em ações judiciais.

Na sexta-feira, o escritório protocolou agravo contra a decisão do ministro André Mendonça, que negou seguimento ao recurso de Pablo no início da semana.

O vereador da Capital tenta garantir a validade de sua candidatura neste ano. Ele teve o registro cassado pelo Tribunal Regional Eleitoral por ser filho do prefeito Sebastião Melo. Caso tenha sucesso, assumirá como titular em 2025 no lugar de Mauro Pinheiro (PP). _

POLÍTICA

16 de Novembro de 2024
INFORME ESPECIAL - Rodrigo Lopes

Teste de "soft power"

Os pavilhões oficiais dos países na COP29, em Baku, no Azerbaijão, não influenciam diretamente o andamento das negociações sobre o documento final da conferência, mas demonstram o nível de engajamento de cada governo nos debates sobre o clima. São a expressão do soft power ("poder suave") de cada nação: cada uma tenta exibir o que tem de melhor em termos culturais, tecnológicos e, supostamente, na área ambiental. Alguns estandes são grandiosos, verdadeiras maravilhas da arquitetura de interiores, como os de China, Catar e Emirados Árabes Unidos. Outros, mais austeros, como o da Austrália e da União Europeia. O do Brasil fica no meio termo.

O estande dos EUA já resume o clima de fim de mandato do governo Joe Biden - e, por tabela, um possível enfraquecimento da agenda climática na futura gestão Donald Trump. Na maior parte do tempo, está vazio. John Podesta, enviado especial do Clima, que chefia a delegação americana na ausência de Biden e Kamala Harris na COP29, disse que a volta do republicano não conseguirá implodir por completo as políticas ambientais do governo atual. Ele afirmou que há muitos investimentos em jogo, inclusive em redutos do partido, e as agências ambientais fortalecidas nos últimos anos podem fazer frente a investidas da Casa Branca, segundo ele. _

Recomendações da Holanda ao RS

As principais sugestões

Implementação de um sistema de monitoramento e alerta hídrico.

Plano Diretor Integrado de Gestão de Inundações, que combine soluções estruturais e ambientais.

Melhorias na infraestrutura de drenagem, capacitação de técnicos e gestores e criação de uma instituição estadual para gestão de desastres e recursos hídricos, semelhante à da Holanda.

Centros de monitoramento estaduais e metropolitanos.

Criação de uma estrutura robusta de monitoramento, com um inventário de dados hidrológicos e uma unidade de previsão de inundações.

Enfim, um plano para as ilhas

O projeto nasce de cooperação assinada na sexta-feira entre o secretário municipal do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade, Germano Bremm, e a coordenadora da Unidade de Desenvolvimento Ambientalmente Sustentável do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), Luana Lopes, durante a COP29 (foto).

A primeira fase inclui o zoneamento das áreas de risco, de reassentamento e diretrizes para ocupação dos territórios a permanecer. Em seguida, a análise de riscos, ameaças e vulnerabilidade. A segunda etapa inclui zoneamento, urbanização, habitações adaptáveis, regularização fundiária e recuperação ambiental. Em seguida, estimativa de custos e cronograma de intervenções e estratégias para captação de recursos. Por fim, plano de monitoramento e avaliação permanente, com estratégias para gestão de riscos e gerenciamento de desastres. _

INFORME ESPECIAL

sábado, 9 de novembro de 2024


09 de Novembro de 2024
MARTHA MEDEIROS

Etarismo flexível

Na época em que assistia shows inteiros em pé, na pista do estádio, como aconteceu nas turnês de Paul McCartney, Rolling Stones e Roger Waters, eu tinha de 17 a 56, dava no mesmo. Hoje, ficar três horas em pé no meio da multidão é uma coisa que não aguardo com ansiedade. A última vez foi ano passado, vendo Titãs, ao ar livre, sob uma chuva torrencial: iniciei o show com 18 e encerrei com 110.

Diante de um cálice de vinho, sou maior de idade. Diante de dois, estou apta a dar conferências. Com um cachorro-quente nas mãos, me lambuzo com a mostarda e cai meu primeiro dente de leite. Assim que coloco os pés em um aeroporto, tenho 35. Ao embarcar no avião, 32.

Ao desembarcar em outro país, depois de um longo voo noturno, retorno aos meus 63, e com eles permaneço até que eu passe pela fila da imigração, pela esteira da bagagem e pelo trajeto até o hotel. Depois de me instalar, rua. Volto aos 30 e poucos.

Ao me sentar em uma cadeira de dentista, tenho oito anos. Diante de um primeiro beijo, 15.

Com febre e dor no corpo, 96. Reunida com as melhores amigas do colégio, todas nascidas em 1961, temos no máximo, 19 - quem escutar nossas risadas por trás das paredes confirmará. Às vezes, engatamos conversas adultas, aí encostamos nos 37.

Se o encontro se der apenas entre mim e uma delas, voltamos aos 63. Amigas íntimas, em dupla, trazem sua vivência plena para o centro da mesa. Quando rezo, 10 anos. Quando transo, idade é o que, mesmo?

Dentro do cinema, na plateia do teatro, devorando um livro, tenho 26, 88, 32, 5, 49, 71, 104, 11.

Quando treino, minha idade depende do peso de cada haltere e de cada caneleira, e de quantas vezes precisarei repetir os exercícios. Vou dos 25 à morte. De manhã, sou sempre mais jovem do que à noite.

Quando sofro, envelheço. Aí escrevo algo - e compenso. Se vier a publicar, congelo o tempo. Como mágica, leitores de todas as idades passam a ter comigo a mesma história para contar.

Se entra por WhatsApp uma mensagem muito aguardada, fico excitada como se fosse meu aniversário - que, aliás, celebro com entusiasmo adolescente, não importa o número de velas sobre o bolo.

Triste, sou idosa. Alegre, mais gaiata. Sorrir sai mais em conta do que harmonização facial: suprime, no ato, uns oito anos da minha certidão de nascimento. Neste instante, estou sentada (63), escrevendo (49), com planos de viajar (35), a fim de me apaixonar (17) e acreditando no futuro (12), mesmo ciente de que o mundo entortou e os problemas não irão sumir (63).

São 10h30min da manhã e sou mais moça do que ontem. _

MARTHA MEDEIROS

09 de Novembro de 2024
CARTA DA EDITORA

CARTA DA EDITORA

Donna Beauty Pompéia - Tudo azul no Sextou das Gu

Somos instantes

O outubro foi rosa, mas o novembro é azul! E para reforçar os cuidados com a saúde, as Gu e a Pompéia se unem para um look todo blue.

Aliás, o azul será o protagonista na estação mais quente do ano, sendo que o tom claro estará presente nas tendências, representando toda a sua serenidade, seu romantismo e seu frescor. A dica da consultoria de moda da Pompéia é acrescentar uma tonalidade vibrante, como o laranja e suas variantes, que podem estar presentes em acessórios, dando o contraste na produção. Quer um truque de styling para looks monocromáticos? Utilize um lenço com as cores complementares na cintura.

Confira mais looks nas lojas, no site lojaspompeia.com.br e no aplicativo. Visite a Pompéia no Shopping Iguatemi (Av. João Wallig, 1.800, 1º andar, de segunda a sábado, das 10h às 22h, e aos domingos, das 12h às 20h) e conte com o serviço de consultoria de moda gratuito, disponível em todas as lojas. _

Essa expressão me pegou em cheio à época do lançamento do livro homônimo da gaúcha Claudia Sehbe. Oito anos depois, estou aqui revisando as páginas de Donna encantada com uma coincidência. O tema do espetáculo que apresentamos na reportagem de capa é muito semelhante ao da crônica de Martha Medeiros. Sem querer, vamos promover em dose dupla um papo de qualidade sobre o tempo - e como ele nos toca como mulheres. Nota mental sobre "coincidências": grandes vozes unem-se em assuntos necessários.

Nos dias 13 e 14 deste mês, dentro da programação do Palco Giratório, a peça Idade é um Sentimento tomará o Teatro da Santa Casa com a voz, o movimento, o roteiro e as experiências de quatro mulheres potentes da nossa cena cultural, que receberam a repórter Letícia Paludo durante um dos ensaios finais.

A atriz Gabriela Munhoz, a diretora Camila Bauer, a cantora e performer Paola Kirst e a coreógrafa Carlota Albuquerque mostram que a vida não tem roteiro. É cheia de "e se?", assim como a dinâmica da montagem que, torcemos já, ainda vai alcançar um grande público.

Ao final, ou no começo se você é daquelas pessoas que adoram começar a leitura pela contracapa, temos nossa certeira Martha Medeiros, que fala de sua idade flutuante, guiada, vejam só, por sentimentos. Aquela história, meninas: a idade do joelho nem sempre coincide com a do brilho no olho de uma nova paixão. O importante é viver todos os nossos instantes. _

Beleza - Cuidados corporais

Tododia Jambo Rosa e Flor de Caju é o novo lançamento da Natura, desenvolvido para realçar a beleza das peles pretas e pardas. Com ingredientes como Niacinamida, Pantenol, Óleo de Gergelim e Vitamina E, a linha traz cinco produtos - esfoliante, óleo em creme, manteiga uniformizadora, geleia iluminadora e creme corporal. Disponível no e-commerce da marca (natura.com.br) a partir da segunda quinzena de novembro.

Novo ponto  - Bazar de noivas

Atuando na moda circular de vestidos de noivas desde 2015, o I Do Bazar inaugurou uma nova sede em Porto Alegre (Av. Carlos Gomes, 1.155/sala 601), oferecendo modelos de estilistas internacionais como Vera Wang, Milla Nova e Rosa Clará, e marcas gaúchas como Sandra Ferraz, Luiza Fichtner e Juó Couture. Além de peças - usadas apenas uma vez - de diversos estilos, manequins, formatos e valores, há possibilidade de customização e personalização no atelier. Conheça mais no perfil @ido.bazar.

Palestra - Em Caxias do Sul

No dia 21 de novembro, a psicóloga, enfermeira e sexóloga Claudette Seltenreicht realiza a palestra "Empoderamento Feminino e Sexualidade", em que abordará como superar a falta de orgasmo com autoconhecimento e exploração do corpo. O encontro ocorre às 19h, no City Life Centro Comercial (Rua Moreira César, 2.650), em Caxias do Sul. As inscrições podem ser feitas no WhatsApp: (54) 99114-2172.

Leilão - Em prol do RS

Em parceria com o Instituto Lojas Renner, o artista Filipe Jardim promove até o dia 21 de novembro um leilão beneficente de obras exclusivas para ajudar as vítimas da enchente no RS. Toda renda será destinada às iniciativas do Instituto. Os lances começam em R$ 1,5 mil e podem ser acessados na plataforma Santayana Leilões.



09 de Novembro de 2024
+ SAÚDE

+ SAÚDE

- Temos que ler estudos publicados toda a semana, porque estão saindo muitas coisas novas. O mundo inteiro pesquisa sobre o autismo e tenta desenvolver novas terapias e novos testes diagnósticos - afirma Simone Sudbrack, professora da Escola de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

O diagnóstico do autismo é clínico. Ou seja, tem base na observação e análise dos comportamentos do paciente. Questionários a exemplo do MCHAT podem ajudar na coleta de informações relevantes para identificar o transtorno. Ainda assim, inovações tentam simplificar esse processo e diminuir o risco de diagnósticos incorretos. Carlos Gadia, neuropediatra gaúcho formado pela UFRGS em 1980 e especializado em TEA que atua nos Estados Unidos há mais de 40 anos, conta que o psicólogo brasileiro Ami Klin está prestes a mudar esse padrão:

- Foi aprovada, em setembro do ano passado, uma técnica, que agora é reconhecida pelo Food and Drug Administration (FDA), de diagnóstico de crianças entre 16 e 30 meses de idade baseada unicamente no foco ocular. O exame apresenta uma série de vídeos para essa criança e o computador rastreia 120 vezes por segundo cada tomada do vídeo para ver onde essa criança estava focando o seu olhar - explica Gadia.

Os achados são comparados com o rastreamento ocular de crianças típicas (sem o transtorno) da mesma idade. A partir disso, é possível fazer um diagnóstico em minutos. Para ele, inovação pode ajudar a agilizar a identificação do TEA em crianças.

Algoritmo para o diagnóstico

Simone cita uma inovação que pode ajudar a aumentar a precisão do diagnóstico, auxiliando a parte observacional. Trata-se de um algoritmo desenvolvido recentemente por pesquisadores brasileiros e alemães.

- Através da função do cérebro, do desenho da sinapse, o algoritmo compara um cérebro típico e um atípico. Os pesquisadores conseguiram mapear cérebros de mais de 200 pessoas com comportamento típico e atípico. Crianças, adolescentes e adultos. E, usando esse algoritmo na ressonância funcional, eles conseguem ver que há diferenças e, então, auxiliar no diagnóstico.

Inovações para o tratamento

O tratamento do TEA é outra área que recebe bastante atenção dos pesquisadores e especialistas. Entre as novidades disponíveis, Gadia fala sobre uma medicação que não tem o objetivo de tratar os sintomas do TEA, mas sim desligar genes que podem causar outras doenças, como a Síndrome de Rett - distúrbio raro do neurodesenvolvimento causado por problemas genéticos.

- A primeira medicação a ser aprovada pela FDA, que se chama Trofinetide, é para a Síndrome de Rett, que é uma síndrome severa, que afeta basicamente meninas, e está associada ao autismo. Já é um caminho que nós estamos trilhando.

O neuropediatra entende que as inovações para o tratamento do TEA, principalmente as relacionadas a medicações, pode ser longa, uma vez que envolve as indústrias farmacêuticas e muito dinheiro para pesquisas e testes. Novos exames, algoritmos e medicamentos inspiram o neuropediatra, que olha para o futuro com expectativas:

- Todas essas novidades mudam aquela ideia de que "infelizmente não há nada a ser feito, essa criança não vai ser nada na vida". Poder mudar isso, para algo que ainda está muito longe, abre uma janela de esperança de que, quem sabe, a história vai ser diferente. Isso é uma das coisas mais mágicas.

"Siga a Ciência"

- Estamos vivendo uma situação no mundo inteiro, em que existe, ao contrário de 30 anos atrás, muita informação sobre o autismo. Infelizmente, nem sempre essa informação é de qualidade. Fica difícil para as famílias, e, às vezes, até para os próprios terapeutas ou profissionais de saúde e educação que não têm tanta experiência, distinguir o que é de qualidade e o que não é - pontua o neuropediatra.

No ano passado, a primeira edição, com o tema Dia Global do Autismo, contou com profissionais e famílias dos Estados Unidos, do Brasil, de Portugal e da Angola. Neste ano, presenças internacionais também estão confirmadas. _

Yasmim Girardi

09 de Novembro de 2024
J.J. CAMARGO

Como historicamente nada acontece por acaso, precisamos, mais do que identificar culpados na sociedade, onde sem dúvida está ocorrendo uma deterioração de valores elementares de civilidade, assumir a nossa inegável responsabilidade pela depreciação da empatia, da qual a compaixão é o suporte histórico da reverência espontânea com que o médico sempre foi tratado. Atribuir o descalabro das relações entre médico e paciente, especialmente na saúde pública, ao fato de que "os tempos mudaram" seria admitir que o ser humano está em franca decadência, o que é uma simplificação preguiçosa e inútil.

Assumindo que esta relação se baseia em troca de delicadezas e que o afeto mora nos pequenos detalhes, parece racional revisar algumas situações específicas em que poderíamos ser melhores, dando-nos a partir daí o legítimo direito de criticar o sistema.

Um dia desses, atendendo o ambulatório de cirurgia torácica pediátrica, comentei com uma mãe que me encantara com seu garotinho, super à vontade e sorridente. E ela me advertiu: "Ponha um avental e o senhor vai ver a transformação". Alguém trajando branco tinha subvertido a relação médico/paciente e plantado naquele pingo de gente uma aversão gratuita e cruel, que ele carregaria por um tempo injusto.

Um jovem acidentado, com inconfundível cara do medo, aguardava numa maca para ser atendido no meio de um turbilhão de gritos, gemidos e choro, numa convergência casual de vários traumatizados. Quando esboçou uma reclamação pela espera, um atendente sintetizou: "Tenha paciência porque você é o que tem menos chance de morrer". Incrível imaginar que aquela frase pudesse acalmar alguém que saíra de casa flamante e, uma hora depois, tinha descoberto que a morte, impensável naquela idade, se tornara uma possibilidade real. A pretensão estúpida de acalmá-lo certamente alimentaria muitos pesadelos no futuro.

Uma senhora nonagenária com um câncer de intestino, com disseminação abdominal grosseira e com expectativa de morte em poucas horas, foi transferida para uma UTI extremamente qualificada, obrigando-a a conviver no ocaso de uma vida riquíssima de afeto com máquinas barulhentas e rodeada de pessoas boas, mas emocionalmente descomprometidas. Menos de quatro horas depois, a natureza generosa abreviou-lhe o martírio, mas a insensibilidade absoluta roubou-lhe a inestimável oportunidade de morrer de mãos dadas com quem de fato iria sentir a sua falta.

Esses três pacientes teriam sobrevivido ou morrido com ou sem compaixão, mas isso não pode de nenhuma maneira justificar a falta de sensibilidade, que tantas vezes é confundida com objetividade, mas que nunca será reconhecida como virtude quando imaginarmos que o alvo, independentemente da circunstância, poderia ser qualquer um de nós. 

J.J. CAMARGO

09 de Novembro de 2024
COM A PALAVRA - André Medici

COM A PALAVRA

Doutor em História Econômica pela USP, economista sênior do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e do Banco Mundial em Washington (EUA) entre 1996 e 2020. Consultor, inclusive, da ONU

"Precisamos mudar a organização do Sistema Único de Saúde"

O financiamento da saúde é há décadas tema de estudo de André Medici. No seu currículo, está a participação na construção do Sistema Único de Saúde (SUS). Atualmente, é consultor internacional para organismos como Banco Mundial, BID e ONU.

Vinicius Coimbra

O NHS (sigla em inglês para o Serviço de Saúde Nacional do Reino Unido), que serviu de inspiração para o SUS, tem enfrentado crises recentes. Há reclamação de médicos e insatisfação dos usuários, semelhante ao que ocorre no Brasil. O que esses dois cenários representam em relação à ideia do financiamento público da saúde?

O sistema financiado com recursos públicos enfrentará instabilidades. O NHS continua sendo muito bom, mas não teve capacidade de renovação. A crise pandêmica deixou o sistema em uma situação difícil, porque ele não estava preparado para receber um grande número de pacientes - a Inglaterra foi um dos países mais afetados pela covid-19. Temos de considerar o envelhecimento da população também.

O Brexit (saída do Reino Unido da União Europeia) também influenciou neste cenário. Há a chegada de imigrantes, que podem ter outros tipos de necessidades. Além disso, a situação econômica da Inglaterra não é boa. Se não há recursos, ocorre uma crise na saúde, com a perda de profissionais e desistência de carreiras para o sistema; o atendimento piora e as filas aumentam para os pacientes.

? Podemos relacionar a situação atual do NHS com o presente do SUS?

O SUS também é um bom sistema. Até 2000, teve muitas inovações, uma delas a introdução da saúde da família, que criou a base de atendimento à população que não tinha acesso. Não sofreu tanto com a pandemia, que foi quando mais recebeu recursos. O SUS tem problemas e uma organização diferente da Inglaterra. A base de operação é municipal e a maioria dos municípios brasileiros tem menos de 50 mil habitantes, que, em muitos casos, não têm a capacidade necessária para organizar um sistema de saúde.

Por isso, a prefeitura recebe o dinheiro, não tem capacidade de gerenciar e as pessoas que precisam de níveis de complexidade maiores vão para municípios vizinhos. É o que ocorre na região metropolitana de Porto Alegre, por exemplo. Isso faz com que a prefeitura receba o recurso para pacientes que são tratados na Capital. Assim, você sobrecarrega determinados sistemas e deixa outros sem a capacidade necessária de dar atenção.

Qual é a melhor maneira de organizar o SUS?

É um modelo de regionalização, mas não pode ser baseado em municípios, mas sim em regiões de saúde. Primeiro deve existir uma boa atenção primária (municipal) e, depois, se precisar, o atendimento especializado (regional). O paciente, por fim, deve voltar para o centro de saúde do seu município de origem. Também deve haver um sistema de prontuário médico eletrônico que consiga mapear pacientes, com a história clínica dele.

Melhorar o SUS passa apenas por mudar como ele funciona ou é verdadeira a ideia de que faltam recursos para a saúde?

Antes de falarmos em investimentos, precisamos mudar a organização do SUS. O sistema precisa de uma divisão de trabalho. Uma pessoa com um problema simples de saúde deve resolver isso na atenção básica, e só depois ir para a média e alta complexidade. Mas não é o que ocorre: no Brasil, você não atende bem em nenhuma etapa. Isso faz com que as pessoas busquem uma emergência hospitalar quando não é o caso.

Observamos esses problemas no SUS em meio ao envelhecimento da população. No RS, os idosos representarão 40% da população em 2070. Como enfrentar esse cenário?

É uma questão mundial e foi uma das causas do agravamento da crise do NHS. Isso ocorre porque você estreita a base de financiamento do sistema e não tem estruturas capazes de tratar um conjunto de grandes pessoas. A solução é aumentar a promoção, a prevenção e fazer com que as pessoas tenham uma vida mais saudável. Ou seja: é necessário que a população mantenha hábitos saudáveis desde cedo.

O envelhecimento brasileiro ocorre em meio ao subdesenvolvimento, ao contrário dos países ricos. Qual é o tamanho do nosso prejuízo nesse contexto?

A diferença é muito grande. Países que ficam ricos antes de envelhecer conseguem enfrentar os custos da velhice. O Brasil é um país que não enriqueceu e não terá os recursos para enfrentar o envelhecimento. Nunca vamos conseguir gastar 5 mil dólares por pessoa, como faz o NHS, ou 17 mil dólares, como fazem os Estados Unidos. Não chegamos a mil dólares por pessoa. Por isso, o Brasil precisa de soluções racionalizadoras para fazer com que a promoção, a prevenção e a atenção médica sejam mais eficazes.

A forma de fazer isso é por meio da interoperabilidade dos registros eletrônicos, que fazem com que a informação seja utilizada para administrar a gestão da saúde.

O atendimento particular tem ganhado espaço no país por conta dos problemas do SUS. É uma saída para melhorar o setor?

Vejo o privado como um complemento ao sistema público. O SUS é importante porque possibilitou o acesso à saúde a uma parte da população que não tinha acesso. Nas capitais, em torno de 50% da população está coberta por seguro de saúde. Na média do Brasil, são 25% que estão cobertos, os outros 75% são SUS. Isso ocorre porque há regiões rurais onde os seguros não estão disponíveis. 


09 de Novembro de 2024
ANDRESSA XAVIER

O sonhador da Restinga

O Éverton tinha uns nove anos. Morava na Restinga. Observava o incansável esforço do pai para tentar finalizar a residência da família. Sempre surgiam outras necessidades. A conta não fechava e a obra ficava em segundo plano. Ele também via a tia de 40 anos, que morava nos Estados Unidos, finalizando a construção de uma casa no mesmo bairro. Ela vivia bem no país e ainda sobrava dinheiro para investir aqui. Desde aquele momento, o guri teve certeza de que queria viver o sonho americano.

Na escola, ouvia a risada dos amigos e professores, que debochavam da pretensão dele. Sem dar bola pra isso, o sonho foi sendo alimentado. O plano era conseguir dinheiro para viver fora e ainda mandar recursos para a família no Brasil. Um pré-requisito nos relacionamentos era saber se a possível namorada aceitaria entrar no que poderia ser uma fria. A Daniela topou. Embarcaram com o filho, na época com pouco mais de um ano, com a cara e muita coragem.

Conheci o Éverton em abril desse ano, quando estava em férias nos Estados Unidos. Ele me mandou uma mensagem pelo Instagram se oferecendo para fazer nosso transfer até o aeroporto. Dois dias depois, lá estávamos na caminhonete gigante com quase uma hora pela frente de conversa até chegar ao destino. Até comprar aquele carrão ele e a esposa choraram muitas vezes tentando esconder do Paulo, a criança que crescia longe do restante da família, a saga que estavam vivendo.

Ele entregou comida andando de bicicleta na neve, trabalhou na construção civil, lavou louça, fez faxina. O balanço era de muita frustração e pouco dinheiro para sobreviver em um país em que mal sabiam o idioma básico.

O Paulo, agora com 10 anos, cresce em uma realidade bem diferente. O inglês dele é muito melhor do que qualquer um de nós, já que cresceu no país das oportunidades. Eles moram em um apartamento no Queens, bairro mais afastado de Manhattan, mas que dá boas condições de vida à família. A frota de cinco carros e mais os motoristas parceiros garantem uma vida boa para os três, mas também para os familiares no Brasil. Foi para isso, afinal, que fizeram o sonho se realizar.

O sonho americano é dividido entre milhares, talvez milhões de pessoas pelo mundo. Nem todas conseguem chegar lá. Umas ficam pelo caminho, outras acabam voltando depois de ver que aquilo se tornou um pesadelo, outros tantos acabam até em abrigos para sobreviver. O porto-alegrense da Tinga fez acontecer. Multiplicou. Comprou casas e terrenos no Brasil. Eles foram resilientes. São. Não imagino que seja fácil viver longe da família e, me disse ele, do xis e do churrasco. Além da quadra do Estado Maior da Restinga.

Aproveitei a cobertura da eleição americana e entrevistamos o Éverton em plena Times Square, no Gaúcha Atualidade. Ele se emocionou e nos emocionou. Contou que o filho foi conviver com a avó só agora, numa visita que ela fez a Nova York. Foi o suficiente para se apaixonar por ela, como são as relações de netos com os avós. A distância foi o preço. Mas ele quer voltar: "Não quero ir só para enterrar meus pais", refletiu. O sonhador da Restinga segue sonhando. _

ANDRESSA XAVIER