
15 de Novembro de 2025
CARPINEJAR
Galinhas voam
Sou um mascate da palavra. O único Estado que ainda não visitei foi o Amapá. Nas demais 26 unidades federativas, já sou reincidente. Coleciono histórias inesquecíveis que teriam sido perrengues se não houvesse senso de humor. Meu lema é rir do que não aconteceu, e rir do que não estava previsto para acontecer.
A noção de que sou transitório erradica qualquer laivo de arrogância ou soberba. Não tenho controle majoritário sobre o destino, apenas improviso e acolho as consequências. Não é certo que será usado o que se carrega na bagagem. Planejamentos são meros rascunhos.
Minha viagem de carro de Teresina a Bom Jesus, para participar do Salão do Livro do Piauí, caiu bem no dia da final da Libertadores entre Flamengo e River Plate, em 23 de novembro de 2019. Eu enfrentaria oito horas de estrada por mais de 600 quilômetros.
O cansaço não faz cócegas enquanto há conexão: você se distrai e se comunica com o mundo. Depois, o sinal some, nem o rádio solta mais nenhum murmúrio, e a ansiedade de chegar começa a enlouquecer. Eu queria muito assistir a quem levantaria a taça. Naquela época, Rafael Borré ainda estufava as redes.
Durante quase todo o embate, o time argentino se manteve com vantagem, perto do seu pentacampeonato da América. Faltavam 10 minutos de bola rolando. Encontrava-me no meio do deserto, sem posto de gasolina, sem um outro veículo na pista, num calor escaldante de 40 graus. O asfalto zunia. Pirei com a minha condição desorbitada, alienado de notícias, e disse para o motorista:
Pare na primeira casa que surgir. Ele estranhou minha súplica, mesmo assim me obedeceu. Alguns quilômetros à frente, avistamos um casebre de madeira com verde descascado.
Bati à porta - cara de pau sempre esbanjei - e perguntei se podia me juntar à torcida. Pela algazarra que escapava pelas frestas da janela, aquela família realmente acompanhava os últimos instantes da decisão. O piauiense é flamenguista roxo.
Ninguém entendeu quem eu era, mas me permitiram entrar para não perderem tempo com conversa. Sentei apertado entre todos, no cantinho de um sofá lotado. Os homens estavam sem camisa. As crianças, com remela e ranho, choravam abandonadas pelos adultos. As mulheres se escoravam de pé nas paredes, em atenção aflita.
Até que vi galinhas atravessando a sala. Elas apareceram quando Gabriel Barbosa empatou, aos 89 minutos. O povo pirou com murros nas mesas e socos no ar. Veio o segundo gol de Gabriel com três minutos de diferença.As galinhas se assustaram com a explosão de berros e arriscaram voar. Penas caíram sobre nós, como se um travesseiro tivesse sido furado.
De repente, uma galinha pousou no meu colo. Eu não me mexia, esperando que ela tomasse a iniciativa. Eu, num lar de desconhecidos, chocado com a virada do placar, diante do bicampeonato rubro-negro - e ela me chocando.
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