WALCYR
CARRASCO
O dente e a
criatura
Não
sou santo. Aliás, quem é? Faz algum tempo uma criatura de 18 anos começou a me
escrever pelo Twitter.
Falava
de sua admiração por minhas novelas, por meus livros que leu quando criança.
Adorei os elogios. Concluí se tratar de uma figura inteligente e criativa.
Nunca senti atração por alguém tão mais jovem. Mas tremi nas bases quando a
criatura me enviou a seguinte mensagem privada: “Sonhei que nos encontramos na
praia. E nos beijamos. Depois...”.
O
“depois” vocês adivinham. Só conto que era um depois com tudo a que um depois
tem direito. Respondi, animado:
–
Pode me enviar suas fotos?
A
criatura mandou. Nenhuma explícita, mas... Propus:
–
Que tal a gente passar uns dias na praia?
–
Topo!
Preveni,
cauteloso: – Não tenho barriguinha de tanque. – Não me importo com essas
coisas.
–
Estou gordo. – O que vale é o seu espírito!
Resolvi
pedir conselho a meu amigo Júlio, que abençoa todas as loucuras. Outro qualquer
seria contra. – Você acha 42 anos de idade uma diferença grande para um casal?
–
Ahnnn? – Bem, não tanto assim. Só 41 e meio. – Ah, bom!
Respondeu
o que eu esperava: – Está na hora de você se apaixonar. Listamos exemplos de
felicidade entre gerações. Percorremos o rol de celebridades, como o
vice-presidente Michel Temer, de 70, casado com a gatíssima Marcela, de 27.
Falamos também dos mais próximos. “O que vale é a química”, concluí.
A
criatura veio do interior de São Paulo. Busquei-a no aeroporto e fomos
diretamente para minha casa no Litoral Norte de São Paulo. Chegamos ao
anoitecer. Tudo era romântico: a noite linda, a lua linda, as árvores lindas.
Já me via casado. Queria pegar na mão. Falar de coisas belas.
Antes
fui me exibir na cozinha. Assei um frango bem temperado. Fiz arroz e salada.
Abri um vinho. A criatura sentou-se à mesa, encantada. Destrinchei o frango. –
Só quero um pedacinho do peito – disse ela, que, é claro, vive de regime.
Busquei-a no aeroporto e fomos direto para a praia. Preparei um jantar. Mordi o
frango – e meu dente caiu
Servi.
Botei uma coxa no meu prato. Ela mordeu delicadamente um pedacinho de frango.
Agarrei a coxa com a mão e enfiei na boca. Adoro comer frango com a mão. Mordi.
Meu dente da frente caiu.
Tentei
encaixar. Impossível. Caiu de novo. Era uma prótese, claro. Só tenho a raiz. –
Meu dente caiu! – exclamei. A criatura
me avaliou com vagar. Sorri de boca torta.
–
Acho que dá para disfarçar. – Não tem jeito. Dá para ver a falha – respondeu. E
sorriu com seus lindos dentes de 18 aninhos. – Pelo menos você disse que o
importante é o espírito! Silêncio expressivo.
Respirei
fundo: – Quer dizer, lembrei da nossa conversa sobre barriguinha de tanque. A
gente já trocou mensagem e conversou no carro sobre assuntos profundos: sua
escova progressiva, embora eu prefira cabelos cacheados, o último filme de
Harry Potter que temos de ver juntos e o vestibular que você vai prestar.
A
gente não precisa de dente para se dar bem, não é? Silêncio ainda mais
expressivo.
Resolvi
ser romântico: – Vamos passear na praia, olhar a lua? Caminhamos pela orla, as
ondas batendo nos pés. – Aqui não dá para ver que perdi o dente. – Dá sim, por
causa do luar.
Quase
xinguei a lua. Parti para o ataque e a beijei. Já tentou beijar sem o dente da
frente? Entra um ventinho pela fresta. Parece que tem uma janela aberta na
boca. Nos afastamos constrangidos. Voltamos em silêncio. A criatura foi
diretamente para o quarto de hóspedes e se trancou. Ouvi o ruído do secador uns
50 minutos. Depois acho que adormeceu.
Acordei
tarde. A criatura já fora para a praia, tinha tomado sol e se enturmado com uma
galera com quem talvez jogasse videogame à tarde. Sentou-se, enquanto eu mordia
cuidadosamente uma fatia de mamão. Peguei os comprimidos de meu tratamento
ortomolecular. Um deles caiu no chão. – É outro dente? – quis saber.
Acabou
aí a viagem. Voltamos imediatamente. E a deixei no aeroporto. Tranquei-me até o
dentista restituir meu sorriso de piano. Se conto a minha saga é porque ela é
universal. Um dente pode simbolizar o abismo entre gerações. E não vamos nos
enganar.
Na
batalha entre o corpo e o espírito, algumas vezes o espírito pode vencer. Mas
só algumas. Banguela romântico não rola. O amor precisa de dentes.
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