
Mil desculpas
Tive a missão de convidar José Eduardo Agualusa para participar como atração surpresa do Festival Fronteiras do Pensamento, que alegrou o centro histórico da Capital com debates e duetos de pensadores no fim de maio. Quem me delegou a incumbência foi o amigo Pedro Longhi.
- Você é bom de papo - Pedro me elogiou. - E você é bom de treta - retribuí a gentileza.
A questão delicada é que, como Agualusa seria uma novidade de última hora, eu deveria convencer um dos mais elegantes autores da língua portuguesa - premiado pelo diário britânico The Independent por O Vendedor de Passados - a vir de Lisboa para Porto Alegre de um dia para o outro. Estávamos na quarta, o evento seria na sexta.
Comecei a abordagem despretensiosamente: - Oi, meu amigo, tudo bem? Uma sondagem: onde você estará na sexta?
Ele me respondeu que estaria fazendo uma colonoscopia. Segui a deixa: - Tudo é pretexto para adiar esse exame. Quer vir para POA?
Ele riu, alegou que não poderia adiar, que achara uma miraculosa brecha na agenda, que tinha protelado o exame mais de uma vez.
Acreditei que eu havia perdido a batalha. Mas insisti:
- Já tomou laxante?
Avisou que não.
- Então, aproveite a chance! Troque uma viagem por dentro por uma mais tranquila por fora.
Senti que ele vacilou. Investi com ânimo:
- Será lindo. Eu irei entrevistá-lo. Nem precisará de anestesia.
Ele passou a compactuar com a ideia:
- Pelo menos, você sabe como iniciar a conversa.
Eu metaforizei:
- O destino é o capricho do acaso.
Agualusa emendou:
- Se bem que não seria eu a viajar por dentro. Eu seria o dentro. Daí percebi que o conquistei: - Verdade. Você é o dentro disfarçado de fora. Como sempre.
Foi quando ele decidiu: - Ok, adiarei a colonoscopia. Agradeci oceanicamente. Em nosso diálogo no palco, ele me assustou um tanto. Não sei se foi para se vingar.
O escriba de boina e cavanhaque me descreveu o improvável. Ele contou que estava devaneando com Mia Couto, seu cúmplice de escrita, e, de repente, surgiu a dúvida:
- Quantos romances você já publicou? - perguntou Mia. Não se lembrava. Por preguiça, ou pressa (a preguiça é uma pressa para nenhum lugar), ele resolveu consultar o ChatGPT, que esclareceu:
"São 16 livros. Aqui está a lista".
José Eduardo Agualusa analisou a relação e não reconheceu um dos títulos. - ChatGPT, não escrevi este livro: O Mapa das Fissuras. Posso estar ficando louco, mas até procurei em minha biblioteca ou nas livrarias: simplesmente não existe!
O aplicativo tratou de se corrigir:
"Peço mil desculpas, tem toda a razão, esse livro não está nas livrarias porque você ainda não escreveu, vai escrever. Portanto, como ainda não foi escrito, ainda não está disponível".
Agualusa está atualmente escrevendo O Mapa das Fissuras. O primeiro caso em que a inteligência artificial encomendou um livro à inteligência humana - e não o contrário.
O futuro já aconteceu. _
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