sábado, 21 de junho de 2025


21 de Junho de 2025
J.J. CAMARGO

Do que a gratidão é capaz

A homenagem a um médico pode vir de formas inesperadas, como o pedido de assinatura em um atestado de óbito

A prática médica, tão estimulante e desafiadora, encontra na maneira de expressar gratidão um compartimento diferenciado. Desde o estímulo automático e previsível ao singelo muito obrigado quando tudo deu certo diante de uma situação banal, onde não se esperava outro desfecho, até a extraordinária exigência emocional para recrutar os sentimentos mais nobres, e com eles reconhecer o esforço despendido, mesmo quando tudo deu errado.

Esta lição aprendi com o João Batista, um paciente com enfisema pulmonar severo e que, depois de transplantado, viveu um mês de encantamento, quando pôde cantar e dançar, duas de suas paixões. E então, o imponderável prevaleceu, e uma infecção fúngica somada à rejeição aguda intensa o trouxeram de volta ao hospital, onde morreu em 48 horas.

Dois meses depois, uma filha muito querida dele voltou para agradecer e cumprir um pedido do pai, quando se deu conta de que ia morrer: "Aconteça o que acontecer, diga ao doutor que eu faria tudo outra vez por aquelas três semanas em que respirei feito gente". E a filha, mesmo tendo vivido a situação mais adversa, que é a reversão de expectativa, agora parecia aliviada, porque naquele pedido o pai, generosamente, oferecera um sentido ao seu sofrimento.

Sei, de experiência própria, que no início da vida profissional dependemos muito mais das manifestações de reconhecimento dos beneficiados para construirmos a sensação de segurança, que depende da reafirmação da qualidade do nosso trabalho. E então os anos passam, e um dia percebemos que mais importante do que os comentários alheios, elogiosos ou depreciativos, é a nossa própria consciência de termos feito o melhor que podíamos. E isso se chama maturidade profissional.

Entretanto, para mostrar que nunca estamos completamente prontos, independentemente do quanto tenhamos vivido, quando menos esperamos somos assaltados por gestos ou atitudes surpreendentes.

Foi a sensação confortadora que tive quando ouvi o relato do Ivan Antonello, meu modelo de humanismo médico, reportando em magnífica aula na última sessão do Curso A Medicina da Pessoa a experiência com o Cícero, um paciente de cerca de 60 anos com falência renal, com evolução desfavorável de uma neoplasia com má resposta à quimioterapia. Se tornaram amigos e, como costuma ocorrer quando o paciente percebe que está evoluindo para a morte, falavam de outras coisas, evitando comentários sobre a doença.

E então, às três horas de uma madrugada de inverno, chamaram-no ao hospital porque um paciente morrera. Era o Cícero, uma morte previsível, ainda que não numa madrugada tão fria. A explicação para o chamado fora o desentendimento da família com o plantonista que devia atestar o óbito. Sem alternativas, o Ivan foi ao hospital, e então um filho justificou a chamada, com um pedido do pai: "Quando eu morrer, não permita que outro médico, que não o doutor Ivan, assine meu atestado de óbito. Eu quero homenageá-lo".

Depois de uma conversa serena com a família, onde ficou claro que a gratidão vencera a morte, ele voltou para casa, com a sensação de que "aquela morte não me pesou, não sofri com ela, e eu estava feliz, porque ele continuava comigo!".

Aos comentários dos alunos, encantados com essa história, e de como seria possível construir uma relação médico/paciente tão densa, meu conselho: "Se exponham aos sentimentos dos pacientes em sofrimento, e ficarão impressionados com a grandeza das reações que só a gratidão, na sua expressão mais pura, é capaz de despertar. _

J.J. CAMARGO

Nenhum comentário: